quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Capítulo XVI

CAPÍTULO XVI


Tudo o que foi escrito até agora serve para resolvermos esta questão: como os mártires que se interessam pelas coisas humanas se manifestam, atendendo as nossas orações, uma vez que os mortos ignoram o que fazem os vivos?

Com efeito, sabemos, não por vagos rumores, mas por testemunhas dignas de fé, que o confessor Félix - cujo túmulo tu veneras piedosamente como santo asilo - deu não apenas mostras de seus benefícios, mas até de sua presença, ao aparecer aos olhos dos homens durante o cerco da cidade de Nola pelos bárbaros.

Esses fatos excepcionais acontecem graças à permissão divina e estão longe de entrar na ordem normalmente estabelecida para cada espécie de criatura.

Não podemos concluir pelo fato da água ter se transformado em vinho pela palavra do Senhor, que a água tenha poder de operar por si mesma essa transformação pela propriedade natural de seus elementos, visto que tratou-se de uma operação divina excepcional e até única!

Também o fato de Lázaro ter ressuscitado não significa que todo morto possa se levantar quando quiser ou que possa ser normalmente acordado como qualquer homem adormecido.

Uns são os limites do poder humano; outras são as marcas do poder divino.

Uns são fatos naturais; outros, miraculosos, ainda que Deus esteja presente na natureza para a manter na existência e a natureza tenha seu lugar inclusive para os milagres.

Assim, é necessário não crer que todos os defuntos - sem excessão - podem intervir nos problemas dos vivos apenas pelo fato de que os mártires tenham obtido curas ou prestado outros socorros.

É preciso compreender, ao invés, que é por causa do poder de Deus que os mártires intervêem nos nossos interesses, pois os mortos não possuem tal poder por sua própria natureza.

Há, porém, uma questão que ultrapassa os limites da minha inteligência: como os mártires, que sem sombra de dúvida socorrem seus devotos, aparecem... em pessoa e no mesmo momento? em vários lugares e afastados uns dos outros? sua ação se faz notar apenas onde se encontra o seu túmulo ou em qualquer outro lugar? se permanecem confinados na morada reservada a seus méritos, longe de qualquer relacionamento com os mortais, contentam-se em interceder pelas necessidades daqueles que lhes suplicam? oram da mesma forma que nós oramos pelos mortos, sem estar presentes e sem saber onde estão e o que fazem?

Não será Deus, o Deus onipotente e onipresente, que não se acha confinado em nós e muito menos afastado de nós, que atende as orações dos mártires, servindo do ministério dos anjos, cuja ação se estende sobre todas as coisas, para distribuir o consolo aos homens que Ele julga ser necessário para enfrentar as misérias da vida presente?

Não será Ele que, com poder admirável e infinita bondade, faz resplandecer os méritos dos mártires onde Ele o quer, quando quer, como quer, especialmente nos locais onde se ergueram suas sepulturas, por saber que a lembrança dos sofrimentos suportados em confissão a Cristo, nos é útil para nos confirmar na fé?

Repito: esta é uma questão muito elevada e complexa para mim, de forma que não a posso explicá-la a fundo...

Dessas duas hipóteses que indiquei, qual será a verdadeira?

Talvez os dois processos sejam empregados em conjunto, de maneira que, às vezes, os mártires nos atendem com sua presença pessoal, e, às vezes, por intermédio dos anjos que tomam a sua forma.

Não ouso decidir e preferiria esclarecer-me junto a homens sábios que conheçam o assunto.

Não digo que ignore ou imagine que saiba pois é impossível que não haja alguém que saiba porque Deus, em suas liberalidades, concede certos dons a alguns e outros dons a outros, conforme o ensino do Apóstolo que diz que a ação do Espírito Santo manifesta-se em cada um de acordo com uma utilidade comum.

Eis o que diz Paulo: "Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para utilidade de todos. A um, o Espírito dá a mensagem da sabedoria; a outro, a palavra da ciência segundo o mesmo Espírito; a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro, ainda, o único e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, o dom de falar em línguas; a outro, ainda, o dom de as interpretar. Mas tudo isso é realizado pelo único e mesmo Espírito, que distribui os seus dons a cada um conforme lhe apraz".

Ora, entre todos esses dons elencados pelo Apóstolo, quem recebeu o dom do discernimento dos espíritos é que conhece essas questões - que agora tratamos - da forma como é necessário conhecer.

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