sexta-feira, 30 de julho de 2010

Questão XLVII - Da distinção das coisas em comum

QUESTÃO. XLVII – DA DISTINÇÃO DAS COISAS EM COMUM


Depois da produção do ser das criaturas, deve-se considerar a distinção das coisas. E esta consideração será tripartida. Pois, primeiro, consideraremos a distinção das coisas em comum. Segundo, a distinção do bem e do mal. Terceiro, a distinção da criatura espiritual e da corporal. Sobre o primeiro ponto quatro artigos se discutem:
  1. Da multidão mesma ou distinção das coisas;
  2. Da desigualdade das coisas;
  3. Da ordem das coisas;
  4. Da unidade do mundo.

ART. I. – SE A MULTIDÃO E A DISTINÇÃO DAS COISAS VÊM DE DEUS


(II Cont. Gent., cap. XXXIX usque XLV inclus.: III, cap. XCVII; De Pot., q. 3, a. 1, ad 9; art. 16; Compend. Theol., cap. LXXI, LXXII, CII, XII Metaphys., lect. II: De Causis, lect. XXIV)

O primeiro discute-se assim. – Parece que a multidão e a distinção das coisas não vêm de Deus.

1. – É natural à unidade produzir a unidade. Ora, Deus é maximamente um, como resulta do já provado (q. 11, a. 3). Logo, não produz senão um efeito.

2. Demais. – O exemplado assemelha-se ao seu exemplar. Ora, Deus é a causa exemplar do seu efeito, como já antes se disse (q. 44, a. 3). Logo, Deus, sendo único, também um só é o seu efeito e não vários.

3. Demais. – O que depende do fim ao fim se proporciona. Ora, o fim da criatura é só um, a saber, a divina bondade, como antes se demonstrou (q. 44, a. 4). Logo, o efeito de Deus não é mais de um.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Gn 1) que Deus separou a luz das trevas e dividiu as águas das águas. Logo, a distinção e a multidão das coisas vêm de Deus.

SOLUÇÃO. – Vários pensaram diversamente sobre a causa da distinção das coisas. Assim, alguns atribuíram-na à matéria só, ou de simultaneidade com um agente. À matéria só, como Demócrito e todos os antigos físicos, que só admitiam a causa material; e, de acordo com estes, a distinção das coisas provém do acaso, pelo movimento da matéria. Porém à matéria simultaneamente com um agente atribuiu Anaxágoras a multidão das coisas, ensinando que o intelecto distingue as coisas, separando o que estava de mistura com a matéria. Mas esta opinião não pode se manter, por duas razões. Primeira, é que já antes se demonstrou (q. 44, a. 2) ter sido também a própria matéria criada por Deus. Por onde, é necessário reduzir a uma causa mais alta a distinção que, por algum modo pertence à matéria. Segunda, que a matéria existe por causa da forma e não inversamente. Ora, as coisas se distinguem pelas formas próprias. Logo, não é a matéria que lhes dá a distinção, mas antes e inversamente, na matéria criada há deformidade para se acomodar às diversas formas.

Outros porém atribuíram a distinção das coisas aos agentes segundos, como Avicena ensinando que Deus, inteligindo-se, produziu a inteligência primeira, na qual, não sendo a essência idêntica à existência, teve necessariamente começo a composição de potência e ato, como a seguir se verá (q. 50, a. 2, 3). Assim, pois, a primeira inteligência, inteligindo a causa primeira, produziu a inteligência segunda; inteligindo-se a si mesma, no que tem de potência, produziu o corpo do céu que ela move; por fim, inteligindo-se a si mesma, no que têm de ato, produziu a alma do céu. Mas esta opinião não pode se manter, por duas razões. Primeira, porque, como já antes se demonstrou (q. 45, a. 5), só a Deus pertencendo o criar, as coisas que não podem ser causadas senão por criação são produzidas só por Deus. Ora, tais coisas são todas as que estão submetidas à geração e à corrupção. Segunda, porque, de acordo com tal posição, a universalidade das coisas não proviria da intenção do agente primeiro, mas do concurso de muitas causas agentes. Ora, isso é o mesmo que dizer que provêm do acaso; e assim, pois, o complemento do universo, consistente na diversidade das coisas, proviria do acaso, o que é impossível. Donde o dever-se admitir que a multidão e a distinção das coisas vêm da intenção do agente primeiro, Deus. Pois, trouxe as coisas ao ser, para comunicar a sua bondade às criaturas, que a representam. E, como esta não pode ser representada suficientemente por uma só criatura, produziu muitas e diversas; e assim o que falta a uma, para representar a divina bondade, é suprido por outra. Pois, a bondade, existente em Deus pura e simplesmente, bem como uniformemente, existe nas criaturas multíplice e divididamente. Por onde, com mais perfeição participa da divina bondade e a representa todo o universo do que outra criatura qualquer. – E por ser a divina sabedoria a causa da distinção das coisas, diz Moisés que as coisas são distintas pelo Verbo de Deus, que é a concepção da sabedoria; e isso mesmo diz a Escritura (Gn 1, 3): E disse Deus: Faça-se a luz... E dividiu a luz das trevas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O agente natural age pela forma pela qual existe, e esta sendo só uma para cada ser, só o ser uno é que age. Porém o agente voluntário, como Deus, segundo o que já antes se viu (q. 19, a. 4), age pela forma inteligida. Portanto, não repugnando à unidade e à simplicidade de Deus inteligir muitas coisas, como já vimos (q. 15, a. 2), resulta que Ele, embora seja único, pode fazer muitas coisas.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A objeção valeria quanto ao exemplado perfeitamente representativo do exemplar, que se não multiplica senão materialmente; por onde a imagem incriada, que é perfeita, é só uma. Porém nenhuma criatura representando perfeitamente o exemplar primeiro, a divina essência, esta pode ser representada por muitas. E contudo, chamando-se às idéias exemplares, à pluralidade das coisas corresponde na mente divina a das idéias.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Nas ciências especulativas, o meio da demonstração, o qual perfeitamente demonstra a conclusão, é só um; mas os meios prováveis são muitos. E semelhantemente, nas operações, não se exige que seja mais de um o meio que leva ao fim, quando esse meio é adequado, para que assim digamos, ao fim. Mas assim não se comporta a criatura com o fim, que é Deus. Por onde, é necessário sejam elas multiplicadas.

ART. II. – SE A DESIGUALDADE DAS COISAS PROVÉM DE DEUS


(Infra, q. 65. a. 2; II Cont. Gent., cap. XLIV, XLV; III, cap. XCVII; De Pot., q. 3, a. 16; De Anima, a. 7; Compend. Theol., cap. LXXIII, c. II; De Div. Nom., cap. IV. lect. XVI)

O segundo discute-se assim. – Parece não provém de Deus a desigualdade das coisas.

1. – Quem é ótimo produz coisas ótimas. Ora, entre coisas ótimas, uma não o é mais que outra. Logo Deus, que é ótimo, deve fazer todas as coisas iguais.

2. Demais. – A igualdade é efeito da unidade, como diz Aristóteles. Ora, Deus é um. Logo, fez todas as coisas iguais.

3. Demais. – A justiça consiste em dar a indivíduos desiguais coisas desiguais. Ora, Deus é justo em todas as suas obras. Como, porém, a sua operação, pela qual comunica o ser às coisas, não pressupõe nelas nenhuma desigualdade, resulta que as fez todas iguais. Mas, em contrário, a Escritura (Ecle 33, 7-8): Porque é que um dia é preferido a outro dia, uma luz a outra luz, e um ano a outro ano, provindo todos do mesmo sol? Foi a ciência do Senhor que os diferenciou.

SOLUÇÃO. – Orígenes, querendo excluir a opinião dos que admitem distinção nas coisas, pela contrariedade dos princípios do bem e do mal, ensinou que, no princípio, todas as coisas foram criadas por Deus iguais. Dizia, pois, que Deus primeiramente criou só as criaturas racionais, e todas iguais. Nelas nasceu a desigualdade primeiramente do livre arbítrio, por se converterem umas mais ou menos a Deus e se afastarem outras mais ou menos d'Ele. Donde, as criaturas racionais que, por livre arbítrio, se converteram para Deus, foram promovidas às diversas ordens de anjos, segundo a diversidade dos méritos. Porém, as que se afastaram de Deus foram ligadas a diversos corpos, segundo a diversidade do pecado; e tal diz ser a causa da criação e da diversidade dos corpos.

Mas, segundo essa opinião, a universalidade das criaturas corpóreas não teria como causa a bondade de Deus a elas comunicada, mas sim a punição do pecado, o que vai contra as palavras da Escritura (Gn 1, 31): Viu Deus todas as coisas que tinha feito e eram muito boas. E, como diz Agostinho, que há de mais insensato que pretender que este sol único neste mundo único não foi destinado pelo Artífice supremo ao ornamento e a utilidade da criação corpórea, mas que tal se deu por uma alma ter pecado? E por consequência, se cem almas tivessem pecado este mundo teria cem sóis?

Portanto devemos dizer que, assim como a sabedoria de Deus é a causa da distinção das coisas, assim também da desigualdade. O que do seguinte modo se esclarecerá. Há dupla distinção nas coisas: uma formal, para as que só especificamente diferem; outra, porém, material, para as que só numericamente diferem. Mas como a matéria existe pela forma, a distinção material existe pela formal. Por onde vemos que, nas coisas incorruptíveis, há um só indivíduo de uma espécie, porque esta em um só suficientemente se conserva; mas nos seres geráveis e corruptíveis são muitos os indivíduos de uma espécie, para a conservação desta. Por onde se vê que a distinção formal é mais importante que a material. Ora, a distinção formal sempre requer a desigualdade, porque, como diz Aristóteles, as formas das coisas são como os números, nos quais as espécies variam pela adição ou subtração da unidade. Por onde, nos seres naturais, vemos que as espécies são gradativamente ordenadas; assim, os compostos são mais perfeitos do que os elementos, as plantas do que os minerais, os animais do que as plantas e os homens do que os outros animais; e, em cada uma dessas classes, encontram-se espécies mais perfeitas do que as outras. Portanto, sendo a divina sabedoria a causa da distinção das coisas, para a perfeição do universo, assim o será da desigualdade. Pois, não seria perfeito o universo se nas coisas só se encontrasse um grau de bondade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O agente ótimo deve produzir o seu efeito total ótimo; não contudo que faça ótima, pura e simplesmente, qualquer parte do todo, mas ótima em proporção com o todo; assim, desapareceria a bondade do animal se qualquer parte dele tivesse a dignidade dos olhos. Assim, pois, Deus fez ótimo todo o universo, ao modo da criatura; não fez ótimas porém cada uma das criaturas, mas uma melhor que outra. E por isso de cada uma delas diz a Escritura (Gn 1, 4): Viu Deus que a luz era boa, e assim com outras. Mas de todas juntas diz: Viu Deus todas as coisas que tinha feito; e eram muito boas.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O que primeiro procede da unidade é a igualdade, e, depois, a multiplicidade. Por isso do Pai, a quem, segundo Agostinho, se apropria a unidade, procedeu o Filho, a quem se apropria a igualdade; e, depois procedeu a criatura, à qual convém a desigualdade. Contudo também a criatura participa de uma certa igualdade, a saber, a de proporção.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Foi essa razão a que moveu Orígenes. Mas não tem lugar senão na retribuição dos prêmios, cuja desigualdade é devida à desigualdade no mérito. Mas, na constituição das coisas, não há desigualdade das partes em virtude de qualquer desigualdade precedente, quer dos méritos, quer da disposição da matéria; mas em virtude da perfeição do todo. O que bem se vê nas obras da arte, pois não é por ter matéria diversa que o teto difere dos alicerces, mas o artífice busca matéria diversa para que a casa seja perfeita, pelas diversas partes e tal matéria ele a faria, se pudesse.

ART. III. – SE NAS CRIATURAS HÁ UMA ORDEM DOS AGENTES


O terceiro discute-se assim. – Parece que, nas criaturas não há ordem dos agentes.

1. – Pois, o agente que age sem intermediário é mais perfeito que o agente por intermediário. Ora, Deus é agente potentíssimo. Logo, não age por intermediário e, assim, uma criatura não age sobre outra.

2. Demais. – Um agente faz, por natureza, outro ser semelhante a si. Ora, aquilo à semelhança do que alguma coisa se faz é o exemplar. Se, pois, uma criatura é causa agente em relação a outra, segue-se que os seres mais dignos são os exemplares dos inferiores; opinião reprovada por Dionísio.

3. Demais. – Agente e fim incidem na mesma espécie, como diz Aristóteles. Se, pois, uma criatura é causa ativa de outra, será também uma a causa final da outra. O que vai contra a Escritura (Pr 16, 4): Tudo fez o Senhor por causa de si mesmo.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 13, 1): Todo homem esteja sujeito aos poderes superiores. E Dionísio diz que a lei da Divindade é reduzir a si os seres inferiores por meio dos superiores. Logo, uma criatura age sobre outra.

SOLUÇÃO. – Alguns, opinando segundo a lei dos Mouros, ensinaram que as criaturas nenhuma ação têm; assim diziam que o fogo não aquece, mas Deus pelo fogo. – Ora, segundo estes, seriam em vão atribuídas às coisas as virtudes ativas, as qualidades e as formas. Por onde, deve-se dizer que a desigualdade mesma constituída nas coisas criadas pela divina sabedoria, como já se viu (a. 2), exige que uma criatura atue sobre outra. Pois, a desigualdade das criaturas resulta de ser mais perfeita uma do que outra. Ora, o mais perfeito está para o menos perfeito como o ato para a potência. E como é da natureza do existente em ato agir sobre o existente em potência, é necessário que uma criatura atue sobre outra. Mas assim como a criatura, pelo seu ser atual, participa de Deus, ato puro, assim também de Deus participa quanto à virtude de agir, e age por virtude de Deus como a causa segunda por virtude da causa primeira.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Tudo o que se faz pela ação da criatura Deus pode fazer sem a criatura. Não é portanto por deficiência do seu poder que age mediante a criatura; mas por abundância da sua bondade; donde provém que não somente comunica à criatura que seja em si boa, mas ainda a dignidade de ser causa de bondade para outras.

RESPOSTA À SEGUNDA. – É reprovada por Dionísio a opinião dos que ensinavam que certas inteligências separadas são exemplares primeiros; porque o primeiro de todos os exemplares é Deus. Nada porém impede que, secundariamente, uma criatura seja o exemplar de outra.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O fim último de todos os seres é Deus. Há todavia outros fins subordinados a este, enquanto uma criatura é ordenada para outra como para o seu fim; isto é, as mais imperfeitas ordenadas às mais perfeitas, como a matéria para a forma; os simples para o composto; as plantas para os animais; os animais para os homens, como se vê na Escritura (Gn 1). Por onde se vê, que a ordem do universo se manifesta no agir uma criatura sobre outra, no ser uma feita à semelhança de outra e no ser uma o fim de outra.

ART. IV. – SE HÁ UM MUNDO SÓ OU VÁRIOS


(De Pot., q. 3, a. 16, ad 1: XII Metaphys., lect. X; I De Cael. et Mund., lect. XVI sqq.)

O terceiro discute-se assim. – Parece que não há só um mundo, mas vários.

1. – Pois, como diz Agostinho, é inconveniente dizer que Deus criou as coisas sem razão. Mas, pela mesma razão por que criou um mundo podia criar muitos, por não estar o seu poder limitado à criação de um só, e ser infinito, como antes se demonstrou (q. 25, a. 2). Logo, Deus criou vários mundos.

2. Demais. – A natureza faz o que é melhor, e, com maioria de razão, Deus. Ora, melhor é haver vários mundos que um só, porque melhor é haver muitos do que um só. Logo vários mundos foram feitos por Deus.

3. Demais. – Tudo o que teve uma forma numa matéria pode ser numericamente multiplicado, permanecendo a espécie a mesma, porque a multiplicação numérica vem da matéria. Ora, o mundo tem uma forma material. Pois, assim como dizendo homem exprimo a forma, e dizendo este homem exprimo a forma na matéria; assim, dizendo mundo exprimo a forma, e dizendo este mundo exprimo a forma na matéria. Logo, nada impede haja diversos mundos. Mas, em contrário, diz a Escritura (Jo 1, 10): O mundo foi feito por ele; falando do mundo no singular, como se só existisse um.

SOLUÇÃO. – A ordem existente nas coisas criadas por Deus manifesta a unidade do mundo. Pois, se diz uno este mundo pela unidade da ordem, segundo a qual uns seres se ordenam a outros. Porque todos os seres criados por Deus mantêm entre si e para com Ele uma ordem, como já antes se demonstrou (a. 3). Por onde, é necessário que todas as coisas pertençam a um só mundo. E só puderam admitir vários mundos os que admitiam não ser uma sabedoria ordenadora, mas o acaso, a causa do mundo; como Demócrito, dizendo que do concurso dos átomos nasceu este mundo e poderiam resultar infinitos outros.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A razão de ser o mundo um só é que todas as coisas devem ser ordenadas por uma só ordem e em relação a um ser. E por isso Aristóteles concluiu a unidade de Deus governador, da unidade da ordem existente nas coisas; e Platão pela unidade do exemplar prova a unidade do mundo, que é como exemplado.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Nenhum agente visa a pluralidade material como fim, porque a multidão material não tem termo certo, mas, por si, tende ao infinito; ora, este repugna à noção de fim. Mas quando se diz que é melhor existirem muitos mundos que um só, isso se diz segundo a multidão material. Ora, tal melhoria não está na intenção de Deus agente; porque, pela mesma razão se poderia dizer, se Deus tivesse feito dois mundos, que melhor teria sido se tivesse feito três, e assim ao infinito.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O mundo consta da sua matéria total. Pois, não é possível existir outra terra diferente desta, porque qualquer outra, onde quer que se achasse, tenderia para o centro desta. E a mesma razão vale para os outros corpos, que são partes do mundo.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Capítulo IX

CAPÍTULO IX

Foi graças a esse sentimento de misericordiosa compaixão, que acabo de citar, que o rei Davi louvou e bendisse aqueles que caridosamente forneceram uma sepultura aos ossos secos de Saul e Jônatas.

Mas que tipo de caridade se pode testemunhar para com aqueles que nada mais sentem? Seria, por acaso, retornar àquela concepção de que os falecidos privados da sepultura não podem cruzar o rio do Hades?

Rejeitamos essa idéia contrária à fé cristã!

De outra maneira, teríamos que considerar que o pior castigo imposto aos mártires fora justamente o fato de terem sido privados da sepultura e, nesse caso, a Verdade os teria enganado ao dizer: "Não temais aqueles que matam o corpo e depois disso nada mais podem fazer", pois seus perseguidores teriam conseguido impedir-lhes de chegar à morada tão desejada.

Isso tudo é de uma falsidade evidente: os fiéis nada sofrem por estarem privados da sepultura da mesma forma como os infiéis nada aproveitam por a receberem.

Perguntemo-nos, então, por que aqueles que enterraram Saul e seu filho Jônatas foram louvados, por executarem uma obra de misericórdia, e abençoados pelo piedoso rei Davi...

Ocorre que os corações piedosos obedecem a uma boa inspiração quando, levados pelo sentimento de que "ninguém odeia a própria carne", sofrem ao verem os cadáveres dos outros receberem maus cuidados, pois não gostariam que seu próprio corpo sem vida recebessem tal tratamento.

E o que desejam que lhes proporcionem quando não mais existirem, cuidam de proporcionar aos que já não existem, enquanto eles mesmos ainda gozam dos sentidos.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Questão XLVI - Do princípio da duração das coisas criadas

QUESTÃO. XLVI – DO PRINCÍPIO DA DURAÇÃO DAS COISAS CRIADAS


Conseqüentemente devemos considerar o princípio da duração das coisas criadas. E sobre este assunto, três questões se discute:
  1. Se as criaturas sempre existiram;
  2. Se é artigo de fé que elas começaram;
  3. De que modo se diz que Deus, no princípio, criou o céu e a terra.

ART. I. – SE A UNIVERSALIDADE DAS CRIATURAS, DESIGNADA ATUALMENTE PELA DENOMINAÇÃO DE MUNDO, COMEÇOU OU EXISTIU ABETERNO


(II Sent .. dist. I, q. 1, a. 5; II Cont. Gent., cap. XXXI; seqq.; De Pot., q. 3, a. 17; Quodl., III, q. 14, a. 2; Compend. Theol., cap. XCVIII; VIII Phys., Lect. II; I De coel. et mund., 1ect. VI, XXIX; XII Metaphys., lect. V)

O primeiro discute-se assim. – Parece que a universalidade das criaturas, atualmente designada pela denominação de mundo, não começou, mas existe abeterno.

1. – Tudo o que começou a existir foi, antes, possível; do contrário seria impossível o existir. Ora, o ser possível é a matéria, potencial em relação ao ser que existe pela forma, e ao não-ser que é privação. Se pois o mundo começou a existir, antes foi matéria. Mas não pode ser matéria sem forma. Ora, a matéria do mundo com a forma é o mundo. Logo, o mundo existiu antes de começar a existir, o que é impossível.

2. Demais. – O que tem a virtude de existir sempre não pode ora ser e ora não ser, porque uma coisa perdura no ser enquanto a virtude dela o permite. Mas todo incorruptível tem a virtude de existir sempre, pois esta não se limita a um determinado tempo de duração. Logo, nenhum incorruptível pode ora ser e ora não ser. Mas tudo o que começa a existir, ora é e ora não é. Por onde, nenhum incorruptível começa a existir. Há porém muito seres incorruptíveis no mundo, como os corpos celestes, e todas as substâncias intelectuais. Logo, o mundo, não começou a existir.

3. Demais. – Nada do que é ingênito começou a existir. Mas o Filósofo diz que a matéria e o céu são ingênitos. Logo, a universalidade das coisas não começou a existir.

4. Demais. – Vácuo é onde não há, mas pode haver corpo. Ora, se o mundo começou a existir, onde agora está o corpo do mundo antes não havia corpo nenhum, embora pudesse havê-lo; pois, do contrário, agora aí não estaria. Logo, antes do mundo, havia o vácuo, o que é impossível.

5. Demais. – O começar de novo a ser movido é em virtude do princípio que o motor ou o móvel tem atualmente em estado que antes não tinha; pois por isso um ser é movido. Por onde, antes de qualquer movimento de novo incipiente, houve outro e, logo, o movimento sempre existiu. E portanto também o móvel, pois o movimento não existe senão no móvel.

6. Demais. – Todo movente ou é natural ou voluntário. Ora, nenhum começa a mover sem que preexista algum movimento, pois a natureza sempre opera do mesmo modo. Por onde, sem que preceda alguma mutação em a natureza do movente ou no móvel, não começa a existir, pelo movente natural, um movimento que antes não existia. Mas, a vontade, sem imutação própria pode retardar em fazer o que propõe. Ora, tal não se dá senão em virtude de alguma imutação imaginada pelo menos, relativamente ao tempo. Assim, quem quer fazer uma casa amanhã e não hoje, espera exista amanhã, o que hoje não existe; e, ao menos, espera que dia de hoje passe e o de amanhã chegue; ora, isto não vai sem mudança, pois o tempo é o número do movimento. Conclui-se portanto que, antes de qualquer movimento incipiente de novo, existiu outro. E assim conclui-se o mesmo que antes.

7. Demais. – Tudo o que está sempre no seu princípio e sempre no seu fim não pode começar nem acabar; pois, o que começa não está no fim, e o que acaba não está no princípio. Ora, o tempo sempre está no seu princípio e no seu fim, pois não existe do tempo senão o momento presente, fim do pretérito e princípio do futuro. Logo, o tempo não pode começar nem acabar. E, por consequência, nem o movimento, do qual o tempo é o número.

8. Demais. – Deus é anterior ao mundo, ou por natureza somente ou também por duração. Se só por natureza, então, sendo Ele abeterno, também o mundo o é. Se porém é anterior pela duração, como o anterior e o posterior na duração constituem o tempo, então antes do mundo existia o tempo, o que é impossível.

9. Demais. – Posta a causa suficiente, posto fica o efeito; pois a causa à qual se não segue o efeito é imperfeita e necessita de outra que o faça seguir-se. Ora, Deus é a causa suficiente do mundo: final, em razão da sua bondade; exemplar, em razão da sua sabedoria; e efetiva, em razão do seu poder, como resulta do que já antes se viu (q. 44, a. 1, 3, 4). Como, porém, Deus é abeterno, também o mundo o é.

10. Demais. – De quem a ação é eterna também o efeito o é. Ora, a ação de Deus é a sua substância eterna. Logo, também o mundo é eterno. Mas, em contrário, a Escritura: (Jo 17, 5) Pai, glorificai-me a mim em ti mesmo, com aquela glória que eu tive em ti antes que houvesse mundo, e (Pr 8, 22): O Senhor me possui no princípio de seus caminhos, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma.

SOLUÇÃO. – Nada existe abeterno, exceto Deus; o que não é impossível de se provar. Pois, já se demonstrou antes (q. 19, a. 4) que a vontade de Deus é a causa das coisas. Portanto, existem necessariamente as coisas que Deus quiser necessariamente, porque a necessidade do efeito depende da necessidade da causa, como diz Aristóteles. Ora, já antes se demonstrou (q. 19, a. 3) que, falando em absoluto, Deus não quer necessariamente senão a si mesmo. Logo, não é necessário Deus querer que o mundo sempre existisse; mas o mundo existe enquanto Deus assim o quiser, porque a existência do mundo depende da vontade de Deus como da sua causa. Logo, não é necessário que o mundo tenha existido sempre; e isso não pode ser provado por demonstração.

Nem as razões que para isso apresenta Aristóteles são demonstrativas pura e simplesmente, mas só de certo modo, isto é, para contraditar as razões dos antigos que ensinavam que o mundo começou; mas segundo certos modos na verdade impossíveis. O que se verá por uma tríplice consideração. – Primeira, porque tanto na Física como tratado Do céu, rejeita certas opiniões, como as de Anaxágoras, Empédocles e Platão, contra as quais apresenta razões contraditórias. – Segunda, porque, sempre que trata desta matéria, traz os testemunhos dos antigos; o que não é próprio de quem demonstra, mas de quem persuade com probabilidade. – Terceira, porque expressamente diz haver certos problemas dialéticos dos quais não temos as razões; como – se o mundo é eterno.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O mundo, antes de existir, foi possível, não por certo pela matéria, potência passiva, mas pela potência ativa, Deus. E também no sentido em que se diz que alguma coisa é absolutamente possível, mas não por alguma potência, senão pela só natureza dos termos, que não se repugnam entre si; sentido em que o possível se opõe ao impossível, como é claro pelo Filósofo.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O que tem a virtude de existir sempre, desde que a tem, não pode ora existir e ora não existir; mas, antes que a tivesse, não existia. Por onde, a razão apresentada por Aristóteles não conclui pura a simplesmente que os seres incorruptíveis não começaram a existir; mas que não começaram a existir, ao modo natural pelo qual o começam os seres geráveis e corruptíveis.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Aristóteles na Física, prova que a matéria é ingênita porque não tem um sujeito do qual ela seja; no tratado Do Céu, porém, que o céu é ingênito porque não é gerado de nenhum contrário. Por onde, é claro que de nenhum modo se conclui senão que a matéria e o céu não começaram por geração, como alguns ensinavam, sobretudo do céu. Nós, porém, dizemos que a matéria e o céu vieram ao ser pela criação, como resulta claro do que já foi dito (q. 45, a. 2).

RESPOSTA À QUARTA. – Para a noção do vácuo não basta defini-lo como aquilo no que nada está; mas se requer que ele seja um espaço capaz de conter um corpo e no qual não haja nenhum corpo, como é claro por Aristóteles. Nós, porém, dizemos que não houve lugar nem espaço antes do mundo.

RESPOSTA À QUINTA. – O motor primeiro existiu sempre do mesmo modo; não assim, porém, o primeiro móvel que, tendo começado a existir, antes não existia. Contudo não começou a existir por mutação, senão por criação, que não é mutação, como já antes se disse (q. 45, a. 2 ad 2). Por onde, é claro que a razão dada por Aristóteles procede contra os que admitiam os móveis eternos, mas o movimento não-eterno, como se vê pelas opiniões de Anaxágoras e Empédocles. Nós, porém, ensinamos que, desde que os móveis começaram, o movimento sempre existiu.

RESPOSTA À SEXTA. – O agente primeiro é um agente voluntário; e embora tivesse a vontade eterna de produzir algum efeito, contudo não o produziu eterno. E nem é necessário pressupor-se qualquer mutação, mesmo por imaginação de tempo. Pois, um é o modo de se inteligir o agente particular, que pressupõe alguma coisa para causar outra; e outro o de se inteligir o agente universal, que produz o todo. Assim, o agente particular produz a forma e pressupõe a matéria; e por isso importa que produza uma forma proporcionada à matéria devida. Por onde, e racionavelmente, nele se leva em conta o produzir a forma em tal matéria e não em tal outra, pela diferença que vai de matéria a matéria. Não é, porém, racionável a Deus, que simultaneamente produza a forma e a matéria; mas o é dele pensar-se que produz a natureza congruente com a forma e com o fim. Porém o agente particular pressupõe o tempo, como pressupõe a matéria. Por onde, e racionavelmente, nele se leva em conta ao agir num tempo posterior e não no anterior, por imaginação de suceder o tempo ao tempo. Mas do agente universal, que produz o ser e o tempo, não se pode pensar que atue agora e não antes, por imaginação de um tempo depois de outro, como se o tempo se lhe propusesse à ação; e deve-se pensar que deu ao seu efeito, quanto e quando quis, o tempo, conforme julgava conveniente para demonstrar o seu poder. Assim, o mundo leva mais manifestamente ao conhecimento do divino criador, não tendo existido sempre, do que sempre tendo existido; pois se é manifesto, do que não existiu sempre, que tem causa, não o é do que sempre existiu.

RESPOSTA À SÉTIMA. – Como diz Aristóteles, a anterioridade e a posterioridade existem no tempo do mesmo modo que no movimento. Por onde, princípio e fim devem ter, no tempo, a mesma acepção que têm no movimento. Suposta porém a eternidade do movimento, é necessário que qualquer momento, em relação ao movimento, seja deste princípio e termo; o que se não dará se o movimento começou. E a mesma é a noção do momento do tempo. Assim, é claro que a objeção, instando quanto ao momento, como sendo sempre o princípio e o fim do tempo, pressupõe a eternidade do tempo. Por isso Aristóteles apresenta essa objeção contra os que, admitindo a eternidade do tempo, negavam a do movimento.

RESPOSTA À OITAVA. – Deus é anterior ao mundo pela duração. Anterior, porém, não designa a anterioridade do tempo, mas a da eternidade. – Ou, ainda, designa a eternidade do tempo imaginado e não realmente existente; assim como quando se diz “acima do céu nada há”, acima designa um lugar imaginário somente, segundo o que, é possível imaginarem-se outras dimensões acrescentadas às do corpo celeste.

RESPOSTA À NONA. – Assim como o efeito resulta da causa agente natural, ao modo da forma desta; assim resulta do agente voluntário segundo a forma por este preconcebida e definida, como já antes se viu (q. 14, a. 4; q. 41, a. 2). Embora, pois, Deus seja abeterno a causa suficiente do mundo, deve-se, contudo, admitir o mundo produzido por ele enquanto isso estava na predefinição da sua vontade; isto é, tendo o ser depois de não o ter tido, para que mais manifestamente declare o seu autor.

RESPOSTA À DÉCIMA. – Posta a ação segue-se o efeito, segundo a exigência da forma, que é princípio da ação. Mas nos agentes voluntários, o que é concebido e predefinido é tomado como a forma, que é princípio da ação. Logo, da ação eterna de Deus não resulta um efeito eterno, mas o efeito que Deus quiser, como, p. ex., existir depois de não ter existido.

ART. II. – SE É ARTIGO DE FÉ OU CONCLUSÃO DEMONSTRÁVEL QUE O MUNDO COMEÇOU


(II Sent., dist. I, q. 1. art. 5; II Cont. Gent., cap. XXXVIII; De Pot., q. 3, a. 14; Quodl., XII, q. 6, a. 1; Opusc. XXVII, De AEternitate Mundi)

O segundo discute-se assim. – Parece não ser artigo de fé – que o mundo começou – mas conclusão demonstrável.

1. – Pois tudo o que é feito tem o princípio da sua duração. Ora, pode-se provar demonstrativamente que Deus é a causa efetiva do mundo; e, mesmo, assim o admitiram os filósofos mais prováveis. Logo, pode-se provar demonstrativamente que o mundo começou.

2. Demais. – Se é necessário admitir-se o mundo como feito por Deus, ou o foi do nada ou de alguma coisa. Ora, não de alguma coisa, porque então a matéria do mundo lhe seria anterior; contra o que, procedem as razões de Aristóteles ensinando que o céu é ingênito. Logo, é necessário admitir-se o mundo como feito do nada, e, assim, tendo o ser depois do não-ser e, portanto, como tendo começado.

3. Demais. – Tudo o que opera pelo intelecto opera começando de um certo princípio, como é claro por todas as coisas artificiais. Ora, Deus é agente pelo intelecto. Logo, opera começando de um certo princípio. E portanto o mundo, que é seu efeito, nem sempre existiu.

4. Demais. – É manifesto que certas artes e a habitação das regiões começaram em determinados tempos. Ora, isto não se daria se o mundo sempre tivesse existido. Logo, é manifesto que ele nem sempre existiu.

5. Demais. – É certo que nada pode se equiparar a Deus. Mas, se o mundo sempre existiu equipara-se a Deus pela duração. Logo, é certo que ele nem sempre existiu.

6. Demais. – Se o mundo sempre existiu, dias infinitos precederam um determinado dia. Ora, não se pode percorrer o infinito. Logo, nunca se teria chegado a esse determinado dia, o que é manifestamente falso.

7. Demais. – Se o mundo é eterno também a geração o é. Logo, um homem foi gerado por outro, ao infinito. Ora, o pai é a causa eficiente do filho, como diz Aristóteles. Logo, nas causas eficientes, pode-se proceder até ao infinito, o que é refutado pelo mesmo filósofo.

8. Demais. – Se o mundo e a geração sempre existiram, infinitos homens já existiram. Ora, a alma do homem é imortal. Logo, existiriam atualmente infinitas almas humanas, o que é impossível. Por onde e necessariamente, pode-se saber, e sem que o seja somente pela fé, que o mundo começou.

Mas, em contrário. – Os artigos da fé não se podem provar demonstrativamente, porque a fé se refere ao que se não vê, como diz a Escritura (Heb 11). Mas que Deus é o Criador do mundo, de modo que este tenha começado, é artigo de fé; pois dizemos – Creio em um só Deus etc.; e, demais, Gregório escreve que Moisés profetou do passado, dizendo – No princípio criou Deus o céu e a terra – por onde exprimiu a novidade do mundo. Logo, o começo do mundo só se conhece pela revelação. E logo, não pode ser provado demonstrativamente.

SOLUÇÃO. – Que o mundo não existiu sempre só se sabe pela fé e não pode ser demonstrativamente provado, como já antes se disse do mistério da Trindade (q. 32, a. 1). E a razão disto é que não se pode dar uma demonstração de que o mundo começou, tirada do próprio mundo. Pois o princípio da demonstração é aquilo que a coisa é. Ora, cada ser, segundo a natureza da sua espécie, faz abstração do lugar e do tempo e, por isso, se diz que os universais existem em toda parte e sempre. Por onde, não se pode demonstrar que o homem, o céu ou a pedra não existissem sempre. Semelhantemente, também a demonstração não pode ser tirada do agente voluntário. Pois, a vontade de Deus não pode ser investigada pela razão, senão no tocante às coisas que, em absoluto, são necessariamente queridas por Ele, como já se disse (q. 19, a. 3). Pode, porém, a vontade divina ser manifestada ao homem pela revelação, na qual se apóia a fé. Por onde, pode-se acreditar que o mundo começou, não porém demonstrá-lo nem o saber pela ciência. E é útil atentemos nisto, não vá alguém, presumindo demonstrar o que é de fé, apresentar razões não necessárias, matéria de irrisão aos infiéis, que ficariam pensando que nós cremos, por tais razões, nas coisas de fé.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como diz Agostinho, dupla é a opinião dos filósofos que ensinaram a eternidade do mundo. Pois admitiam que a substância do mundo não provém de Deus; e destes o erro é intolerável e, portanto, por si mesmo refutado. Outros admitiam o mundo eterno, mas diziam que foi feito por Deus. Pois não querem tenha o mundo início no tempo, mas início na sua criação; assim que, de um modo apenas inteligível, ele sempre seja feito. E, como diz o mesmo autor, encontraram um meio para explicarem o seu pensamento. Pois assim como, dizem, um pé calcando desde toda a eternidade na poeira, sempre estaria por baixo o vestígio, que ninguém duvidaria ter sido causado pelo pé; assim também o mundo sempre existiu, se sempre existiu quem o fez. Mas para o entendermos devemos considerar que a causa eficiente, que age por movimento, necessariamente precede no tempo o seu efeito, pois este existe no termo da ação e é necessário seja todo agente princípio da ação. Se a ação, porém, for instantânea e não sucessiva, não é necessário a causa eficiente seja anterior ao que é feito, como é patente na iluminação. Por onde dizem que, de ser Deus a causa ativa do mundo não se segue necessariamente seja anterior ao mundo na duração, porque a criação que produziu o mundo não é uma mutação sucessiva, como já antes se disse (q. 45, a. 3 ad 3).

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os que admitem o mundo eterno dizem que ele foi feito, por Deus, do nada; não que tenha sido feito depois do nada, no sentido em que entendemos o vocábulo criação; mas porque não foi feito de alguma coisa. Assim, alguns deles não recusam o nome de criação, como se vê claramente em Avicena.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Essa é a objeção de Anaxágoras, que apresenta Aristóteles. Mas não conclui com necessidade senão quanto ao intelecto que, deliberando, investiga o que deva ser feito; o que é semelhante ao movimento. Ora, tal é o intelecto humano, mas não o divino, como já antes se viu (q. 14, a. 7).

RESPOSTA À QUARTA. – Os que admitem a eternidade do mundo admitem que uma região infinitas vezes se mudou de inabitável para habitável, e vice-versa. E semelhantemente, que as artes, por diversas corrupções e acidentes, infinitas vezes foram inventadas e de novo corrompidas. Donde vem o dizer Aristóteles que é ridículo concluir de tais mutações particulares, a novidade total do mundo.

RESPOSTA À QUINTA. – Mesmo que o mundo sempre tenha existido, nem por isso se equipararia à Deus na sua eternidade, como diz Boécio; porque o ser divino é o ser totalmente simultâneo, sem sucessão, o que se não dá com o mundo.

RESPOSTA À SEXTA. – Um percurso sempre se entende de termo a termo. Ora, sejam quantos forem os dias passados que se quisessem, daí até o dia atual é finito o número dos dias e puderam ser percorridos. Porém a objeção procederia se, postos os extremos, os meios fossem infinitos.

RESPOSTA À SÉTIMA. – Nas causas eficientes em si mesmas é impossível proceder até ao infinito, como, p. ex., se as causas requeridas para um efeito se multiplicassem ao infinito; assim, se, uma pedra fosse movida por um bastão e este pela mão, e isto ao infinito. Mas não se reputa por impossível o poder proceder-se até ao infinito, por acidente, nas causas agentes; de modo que, por exemplo, todas as causas, multiplicadas ao infinito se ordenem a uma só causa, sendo porém a multiplicação delas acidental. Assim, se um artífice usa de muitos martelos, por acidente, porque um se quebra após outro, resulta por consequência que tal martelo entra em ação depois de tal outro. E semelhantemente sucede a tal homem, capaz de gerar, o ser gerado por outro, pois gera enquanto homem e não enquanto filho de outro homem. Por onde, todos os homens, que geram, têm o mesmo grau, nas causas eficientes a saber, o grau de gerador particular. E, portanto, não é impossível que o homem seja gerado pelo homem, ao infinito. Mas sê-lo-ia, se a geração de tal homem dependesse de tal outro e do corpo elementar e do sol e assim ao infinito.

RESPOSTA À OITAVA. – Os que admitem a eternidade do mundo fogem, de muitas maneiras, a esta objeção. Assim, uns não reputam por impossível existirem infinitas almas em ato, como se vê em Algazel, por se tratar, dizem, de um infinito por acidente. Mas isto já foi refutado antes (q. 7, a. 4). Outros, porém, afirmam que a alma se corrompe com o corpo. Outros, ainda, que, de todas as almas só remanesce uma. Outros, por fim, como se refere Agostinho, admitiam que haja um circuito de almas, por isto que as almas separadas dos corpos, após um determinado currículo temporal, de novo voltam a eles. E de todas estas opiniões vamos tratar nos artigos seguintes (q. 75, a. 6; q. 76, a. 2; q. 118, a. 6). Devemos todavia considerar que a objeção supra é particular; por ela poderia dizer alguém que o mundo foi eterno, ou, pelo menos, alguma criatura, como o anjo; mas não o homem. Nós porém indagamos universalmente, se alguma criatura existe abeterno.

ART. III. – SE A CRIAÇÃO DAS COISAS TEVE UM PRINCÍPIO TEMPORAL


(II Sent., dist. 1, q. 1, a. 6)

O terceiro discute-se assim. – Parece que a criação das coisas não teve um princípio temporal.

1. – Pois, o que não está no tempo não está em algum tempo. Ora, a criação das coisas não foi no tempo; porque, por ela, a substância é produzida quanto ao ser, e o tempo não mede a substância das coisas, sobretudo das incorpóreas. Logo, a criação não teve um princípio temporal.

2. Demais. – O Filósofo prova que tudo o que está vindo a ser esteve vindo a ser, e, assim, todo vir à ser implica anterioridade e posterioridade. Ora, o principio do tempo, sendo indivisível, não tem anterior e posterior. Logo, como o ser criado é de certo modo vir à ser, parece que as coisas não tiveram um princípio temporal.

3. Demais. – Também o próprio tempo foi criado. Ora, o tempo, sendo divisível, não pode ter um princípio temporal, pois o princípio do tempo é indivisível. Logo, a criação das coisas não teve um princípio temporal. Mas, em contrário, diz a Escritura (Gn 1, 1): No princípio criou Deus o céu e a terra.

SOLUÇÃO. – As palavras da Escritura – No princípio criou Deus o céu e a terra – são construídas de tríplice maneira, para excluir três erros. – Pois, alguns ensinaram que o mundo sempre existiu e o tempo não teve princípio. E para excluir esse erro se constrói – No princípio – isto é, do tempo. – Outros, porém, ensinaram serem dois os princípios da criação: um, dos bens; outro, dos males. E, para excluir este se constrói: No princípio, isto é, no Filho. Pois assim como o princípio efetivo é apropriado ao Pai, por causa do seu poder; assim, o princípio exemplar o é ao Filho, por causa da sua sabedoria. De modo que o dito da Escritura (Sl 103, 24), Todas as coisas fizeste com sabedoria, se entenda no sentido que Deus fez tudo no Princípio, isto é, no Filho, segundo as palavras do Apóstolo (Cl 1, 16): Nele, isto é, no Filho, foram criadas todas as coisas. – Outros, por fim, disseram que os seres corpóreos foram criados por Deus, me-diante as criaturas espirituais. E, para excluir este erro constrói-se: No princípio criou Deus o céu e a terra, isto é, antes de todas as coisas. Pois quatro seres se admitem como simultaneamente criados, a saber: o céu empíreo, a matéria corpórea chamada terra, o tempo e a natureza angélica.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Não se diz que as coisas foram criadas num princípio temporal, como se o princípio do tempo fosse a medida da criação; mas que, simultaneamente com o tempo, foram criados o céu e a terra.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Essa expressão do Filósofo se entende do vir a ser por movimento ou que é termo deste. Porque, como é forçoso admitir, em qualquer movimento, uma posição de anterioridade e outra de posterioridade, antes de qualquer movimento imaginado, isto é enquanto alguma coisa é movida e vem a ser – deve-se admitir um anterior e também algo que virá depois. Pois o princípio ou o termo do movimento, não é movimento em ato, como já antes se disse (q. 45, a. 2, ad 3; a. 3). Por onde, alguma coisa é criada, que anteriormente não o era.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Nada vem a ser senão segundo o que é. Ora, da essência do tempo é o momento; por onde, não pode ele vir a ser senão segundo algum momento; não que no tempo o momento seja primariamente tempo, mas que, por ele, começa o tempo.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII

Porém, os mártires venceram esse apêgo ao próprio corpo, em sua luta pela verdade.

Não é de surpreender que tenham desprezado as honras reservadas aos seus despojos.

Só estariam insensíveis a elas após a morte, pois enquanto viviam e tinham sensibilidade, não se deixaram vencer pelo suplício.

O Senhor não permitiu ao leão tocar no cadáver daquele homem de Deus, morto por essa mesma fera assassina que logo depois se tornou seu guardião.

Do mesmo modo, Deus poderia, se quisesse, ter afastado os cadáveres de seus fiéis dos cães aos quais foram jogados.

Ele poderia, de mil maneiras, dominar a crueldade dos carrascos, impedindo-os de queimar aqueles corpos e dispersar suas cinzas.

Porém, foi necessário que essa provação se acrescentasse ainda à múltipla diversidade das tribulações, a fim de que a firmeza da ferocidade da perseguição, armada contra o corpo deles, não temesse diante da privação das honras fúnebres do sepultamento.

Em outras palavras: era necessário que a fé na ressurreição não fosse abalada pela destruição do corpo.

Logo, todas essas provações foram permitidas para que os mártires, após demonstrarem tão grande coragem nos sofrimentos, se tornassem ainda mais fervorosos para confessar a Cristo, tornando-se testemunhas também desta verdade: os que matam o corpo, nada mais podem fazer.

Qualquer que seja o tratamento imposto aos corpos sem vida, em nenhum efeito resultará pois sendo o corpo desprovido de vida, que se separou dele, nada mais pode sentir.

E aquele que o criou nada pode perder.

Mas enquanto tratavam com tanta crueldade os corpos das vítimas - e os mártires suportavam com grande coragem tais tormentos - entre os irmãos erguia-se grande lamentação.

Estavam aflitos por não terem a liberdade para prestar os deveres fúnebres aos santos, como é de justiça.

A vigilância dos guarda proibia-os de subtrair às escondidas algum resto mortal desses mártires, como nos atesta a mesma História.

Após sua morte, os mártires não padeciam mais nenhum sofrimento, nem mesmo do esfacelamento dos seus membros, nem das chamas que transformaram em cinzas os seus ossos, e nem da dispersão destas cinzas.

Mas os cristãos eram atormentados por grande dor e piedade por não poderem sepultar a mínima porção de suas relíquias.

Eles sentiam em sua misericordiosa compaixão todos os sofrimentos que aqueles mortos não mais podiam experimentar.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Questão XLV - Do modo da emanação das coisas do primeiro princípio

QUESTÃO XLV. – DO MODO DA EMANAÇÃO DAS COISAS, DO PRIMEIRO PRINCÍPIO


Em seguida discute-se sobre o modo da emanação das coisas, do primeiro princípio, que se chama criação. Sobre o que oito artigos se discutem:
  1. Que é a criação;
  2. Se Deus pode criar alguma coisa;
  3. Se a criação é algum ser em a natureza das coisas;
  4. A quem compete criar;
  5. Se só Deus pode criar;
  6. Se isso é comum a toda a Trindade ou é próprio de uma das Pessoas;
  7. Se há algum vestígio da Trindade nas coisas criadas;
  8. Se a obra de criação vai junto com as obras da natureza e da vontade.

ART. I – SE CRIAR É FAZER ALGUMA COISA DO NADA


(II Sent., dist. I, q. 1, a. 2)

O primeiro discute-se assim. – Parece que criar não é fazer alguma coisa do nada.

1. – Pois, diz Agostinho: fazer é produzir o que antes de nenhum modo existia; ao passo que criar é constituir alguma coisa, tirando-a do que já existia.

2. Demais. – A nobreza da ação e do movimento depende do seu termo. Por onde, mais nobre é a ação que parte de um bem para outro e de um para outro ser, do que a transitiva do nada para alguma coisa. Ora, a criação é a nobilíssima das ações e a primeira de entre todas. Logo, não é a passagem do nada para o ser, mas antes, de um ser para outro.

3. Demais. – Esta preposição – de (ex) – implica relação de alguma causa, e sobretudo da causa material, como quando falamos de uma estátua feita de bronze. Ora, não pode o nada ser matéria do ser, nem de nenhum modo causa dele. Logo, criar não é fazer alguma coisa, do nada. Mas em contrário, àquilo da Escritura (Gn 1) – no princípio criou Deus o céu, etc. – diz a Glossa; criar é fazer alguma coisa, do nada.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos (q. 44, a. 2), não devemos considerar somente a emanação de qualquer ser particular, de um agente particular, mas também o da totalidade dos seres, da causa universal, que é Deus; e é a esta emanação que designamos com o nome de criação. Pois, o procedente a modo de emanação particular não lhe é pressuposto a esta; assim, à geração do homem não é pressuposta a existência do homem, mas o homem é feito do não-homem, e o branco, do não-branco. Por onde, considerando-se a emanação universal de todos os seres, do primeiro princípio, é impossível seja pressuposto qualquer ser a essa emanação. Pois, o nada é o mesmo que nenhum ente. Por onde, assim como o homem é gerado do não-ser, que é não-homem, assim também a criação, que é a emanação do ser total, procede do não-ser que é o nada.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Agostinho emprega, em sentido equívoco, o nome de criação, no sentido em que dizemos serem criadas as coisas que se mudam para melhor, como quando dizemos ter sido alguém criado bispo. Ora, não é neste sentido que agora tratamos da criação, como dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. – As mudanças recebem a sua espécie e dignidade, não do termo de origem (a quo), mas do termo final (ad quem). Por onde, tanto mais perfeição e prioridade tem uma mudança, quanto mais o seu termo final tem nobreza e prioridade, embora seja mais imperfeito o termo de origem, oposto ao termo final. Pois, embora a geração, absolutamente, tenha maior nobreza e prioridade que a alteração por ser a forma substancial mais nobre que a acidental, contudo a privação da forma substancial, termo originário da geração, é maior imperfeição que o contrário, termo originário da alteração. Semelhantemente, a criação tem maior perfeição e prioridade que a geração e a alteração, porque o termo final é a substância total da coisa; ao passo que o considerado termo originário é, absolutamente, não-ser.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Quando se diz que alguma coisa é feita do nada, a preposição de (ex) não designa a causa material, mas somente a ordem; como quando dizemos que da manhã se faz o meio dia, i. é., o meio dia vem após a manhã. Devemos, porém, entender que a preposição de (ex) pode incluir a negação implicada na expressão nada, ou ser incluída por ela. Se for o primeiro o sentido, então há ai a afirmação da ordem e indica a ordem daquilo que é, relativamente, ao não ser precedente. Se porém a negação incluir a preposição, então a ordem é negada, e o sentido da expressão – feito do nada, é: não é feito de alguma coisa, como se disséssemos: este fala do nada, porque não fala de ninguém. E ambos esses modos de nos exprimirmos se verificam, quando dizemos que alguma coisa é feita do nada. Mas, no primeiro sentido, a preposição de (ex) implica a ordem, como se disse. O segundo sentido importa a relação de causa material, que é negada.

ART. II – SE DEUS PODE CRIAR ALGUMA COISA


(II Sent., dist. I, q. 1, a. 2; II Cont., Gent., cap. XVI; De Pot., q. 3, a. 1; Compend. Theol., cap. LXIX; Opusc. XXXVII. De Quatuor Opposit., Ca; p. VIII Phys., lect. III)

O segundo discute-se assim. – Parece que Deus não pode criar nada.

1. – Pois, segundo o Filósofo, os antigos filósofos admitiram como concepção comum do espírito que do nada nada se faz. Mas o poder de Deus não se estende até contrariar os primeiros princípios, de modo a fazer, por exemplo, com que o todo não seja maior que sua parte; ou que a afirmação e a negação sejam simultaneamente verdadeiras. Logo, Deus não pode fazer alguma coisa do nada, ou criar.

2. Demais. – Se criar é fazer alguma coisa do nada, então ser alguma coisa criada é vir-a-ser. Ora, todo vir-a-ser é mudar-se. Logo, criação é mutação. Mas toda mutação está em algum sujeito, como é claro pela definição de movimento, pois movimento é o ato do que existe em potência. Logo, é impossível que alguma coisa seja feita do nada por Deus.

3. Demais. – O que está feito necessariamente esteve, em algum tempo, para vir-a-ser. Ora, não se pode dizer que aquilo que é criado venha a ser e esteja feito simultaneamente; pois, nos seres permanentes, o que vem a ser não é, e o que já está feito já é; do contrário alguma coisa seria e não seria simultaneamente. Logo, se alguma coisa vem a ser, o seu vir-a-ser precede sua existência. Mas tal é impossível, sem que preexista um sujeito em que se sustente o próprio vir-a-ser. Logo, é impossível que alguma coisa se faça do nada.

4. Demais. – Não se pode percorrer uma distância infinita. Ora, é infinita a distância entre o ser e o nada. Logo, não é possível que do nada alguma coisa se faça. Mas, em contrário, a Escritura (Gn 1, 1): No princípio criou Deus o céu e a terra; a isso diz a Glossa que criar é fazer alguma coisa do nada.

SOLUÇÃO. – Não somente não é impossível que alguma seja criada por Deus, mas é necessário admitir-se que todos os seres foram criados por Deus, como resulta do que já foi estabelecido (q. 44). Pois, se alguém faz alguma coisa de outra, aquela da qual faz é pressuposta à ação de quem faz e não é produzida por tal ação. Assim, o artífice opera com as coisas naturais, p. ex., a madeira e o ar, que não são causados pela ação da arte, mas pela da natureza; por sua vez, a própria natureza causa os seres naturais, quanto à forma, mas pressupõe a matéria. Se pois Deus não atuasse senão sobre algum pressuposto, seguir-se-ia que esse pressuposto não foi causado por ele. Pois, já mostramos antes (q. 44, a. 1, 2), que nada pode existir nos seres que não provenha de Deus, causa universal de todo o ser. Donde, necessário é dizer-se que Deus, do nada, traz as coisas ao ser.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os antigos filósofos como já antes se disse (q. 44, a. 2), só consideraram o emanarem os efeitos particulares das causas particulares, que, na sua ação, devem pressupor alguma coisa; e, assim, era comum opinião deles que do nada, nada se faz. Mas isto não se dá com a primeira emanação, do princípio universal das coisas.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A criação é mutação somente segundo o modo de se inteligir. Pois, é da essência da mutação que um mesmo ser seja diferente, agora, do que era antes. Assim, ora um mesmo ser atual é diferente agora do que era antes, como se dá com os movimentos segundo a quantidade, a qualidade e a ubiquação; outras vezes o ser é o mesmo só em potência, como na mutação substancial, cujo sujeito é a matéria. Mas na criação, pela qual é produzida toda a substância da coisa, só pelo intelecto é que se pode admitir que um mesmo ser seja agora diferentemente do que foi antes; como se entender que alguma coisa, que não existiu antes totalmente, agora exista. Mas, como a ação e a paixão convenham na substância una do movimento, e difiram somente segundo relações diversas, como diz Aristóteles, necessário é que, subtraído o movimento, não remanesçam senão relações diversas no criador e no criado. Como, porém, o modo de exprimir siga o inteligir, como já se disse (q. 13, a. 1), a criação é expressa a modo de mutação; e por isso se diz que criar é fazer alguma coisa do nada. Embora, neste assunto, mais convenha se diga fazer e ser feito do que mudar e ser mudado; porque fazer e ser feito importam relação de causa e efeito e de efeito a causa, mas a mutação importa consequência.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Nas coisas que vem a ser, sem movimento, simultâneos são o virem a ser e o serem feitas; quer tal feitura seja o termo do movimento, como a iluminação, pois simultaneamente uma coisa se ilumina e está iluminada; quer não seja termo do movimento, como simultaneamente se forma o verbo na mente e está formado. Assim, em tais casos, o que vem a ser é; mas, quando se diz vir-a-ser, quer-se significar que alguma coisa provém de outra e que antes não existia. Donde, realizando-se a criação sem movimento, simultaneamente alguma coisa é criada e está criada.

RESPOSTA À QUARTA. – Tal objeção procede de uma falsa imaginação, como se existisse algum termo médio infinito entre o nada e o ser, o que é claramente falso. E tal falsa imaginação provém de que a criação é expressa como certa mutação existente entre dois termos.

ART. III – SE A CRIAÇÃO É ALGUMA COISA NA CRIATURA


(I Sent., dist. XL. Q. 1, a. 1, ad 1, II, dist. I q. 1, a. 2, ad 4, 5; II Cont., Gent., cap. XVIII; De Pot., q. 3, a. 3)

O terceiro discute-se assim. – Parece que a criação não é alguma coisa na criatura.

1. – Pois, assim como a criação, em acepção passiva, é atribuída à criatura, assim, em acepção ativa, é atribuída ao Criador. Mas a criação, em acepção ativa, não é alguma coisa no Criador, porque então se seguiria que em Deus há algo temporal. Logo, a criação, em acepção passiva, não é alguma coisa na criatura.

2. Demais. – Não há meio termo entre o Criador e a criatura. Ora, criação exprime um meio termo entre ambos, pois não é Criador por não ser eterna; nem criatura, porque então seria necessário, pela mesma razão, admitir outra criação pela qual ela fosse criada, e assim ao infinito. Logo, a criação não é alguma coisa.

3. Demais. – Se a criação é alguma coisa, além da substância criada, é necessário seja acidente desta. Ora, todo acidente está num sujeito. Logo, a coisa criada seria o sujeito da criação e assim se identificariam o sujeito e o termo da criação, o que é impossível. Porque o sujeito é anterior ao acidente e o conserva; porém o termo é posterior à ação ou à paixão da qual é termo e, desde que existe, cessa a ação ou a paixão. Logo, a criação mesma não é alguma coisa. Mas, em contrário. – Fazer-se alguma coisa, em toda a sua substância, é mais do que só pela sua forma substancial ou acidental. Ora, a geração pura e simples ou condicionada, pela qual alguma coisa se faz, na forma substancial ou acidental, é algo no ser gerado. Logo, com a maioria de razão a criação, pela qual alguma coisa se faz em toda a sua substância, é algo no criado.

SOLUÇÃO. – A criação introduz alguma coisa no criado, mas só relativamente. Pois, o que é criado não o é por movimento ou por mutação, porque o feito por movimento ou por mutação o é por algo preexistente, e tem lugar nas produções particulares de certos entes. Ora, tal se não pode dar na produção do ser total pela causa universal de todos os entes, que é Deus. Por onde Deus, criando, produz as coisas sem movimento. Ora, eliminando o movimento à ação e à paixão, não remanesce senão a relação, como já se disse (a. 2, ad 2). Donde resulta que a criação, na criatura, não é senão uma certa relação com o Criador como com o princípio do seu ser; assim como a paixão, que supõe o movimento, importa relação com o princípio deste.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A criação, em acepção ativa, significa a ação divina, que é a sua essência, em relação à criatura. Mas, em Deus, a relação com a criatura não é real, senão somente racional. Porém, a relação da criatura com Deus é real, como já antes se disse quando se tratou dos nomes divinos (q. 13, a. 7).

RESPOSTA À SEGUNDA. – Sendo a criação significada como mutação, como já se disse (a. 2 ad 2); e sendo a mutação um termo médio, de certo modo, entre o movente e o movido, resulta que a criação é significada como termo médio entre o Criador e a criatura. E contudo a criação, em acepção passiva, está na criatura e é criatura.

E nem por isso é necessário que esta seja criada por uma outra criação; porque as relações, referindo-se a outra coisa, pelo fato mesmo de serem tais, não se referem por algumas outras relações, mas por si mesmas, como já antes se disse, quando se tratou da igualdade das pessoas (q. 2, a. 2, ad 4).

RESPOSTA À TERCEIRA. – O ser criado é termo da criação enquanto esta significa mutação; mas enquanto verdadeiramente ela é relação, o criado é o sujeito dela e anterior a ela no ser, como o sujeito é anterior ao acidente. Mas a criação tem certa razão de prioridade, por parte do objeto ao qual se refere, porque é princípio do criado. Mas nem por isso há-se necessariamente de dizer que, enquanto existe a criatura é criada, pois a criação importa de novo ou em começo, a relação da criatura com o Criador.

ART. IV. – SE SER CRIADO É PRÓPRIO DOS SERES COMPOSTOS E SUBSISTENTES


(De Pot., q. 3, a. 1, ad 12; a. 3, ad 2; a. 8, ad 3; De Verit., q. 27, a. 3, ad 9; Quot., IX, q. 5, a. 1; Opusc. XXXVII; De Quatuor Opposit., cap. IV)

O quarto discute-se assim. – Parece que ser criado não é próprio dos seres compostos e subsistentes.

1. – Pois, se diz no livro De causis: A primeira das coisas criadas é o ser. Ora, o ser da coisa criada não é subsistente. Logo, a criação não é própria do ser subsistente e composto.

2. Demais. – É criado o que vem do nada. Ora, os seres compostos não provêm do nada, mas dos seus componentes. Logo, não convém aos entes compostos o serem criados.

3. Demais. – É propriamente produzido pela primeira emanação, o que é suposto na segunda; assim, a coisa natural é produzida pela geração natural, que é suposta na operação da arte. Ora, o que é suposto na geração natural é a matéria. Logo, a matéria é que propriamente é criada e não o composto.

Mas, em contrário, a Escritura (Gn 1, 1): No princípio criou Deus o céu e a terra. Ora, o céu e a terra são coisas compostas subsistentes. Logo, são propriamente criadas.

SOLUÇÃO. – Como já se disse (a. 2 ad 2), ser criado é de certo modo vir a ser. Ora, este se ordena ao ser da coisa. Por onde, convém propriamente o vir a ser e o ser criado aos entes aos quais convém o ser. Ora, tal convém propriamente aos seres subsistentes, quer simples como as substâncias separadas, quer compostos como as substâncias materiais. Pois, o ser propriamente convém ao que o tem, e esse é subsistente no seu ser. Porém as formas, os acidentes e outras coisas semelhantes não se chamam seres, como se por si existissem, mas porque por elas alguma coisa existe; assim à brancura se chama ser porque por ela um sujeito é branco. Donde, segundo o Filósofo, do acidente mais propriamente se diz que é do ser, do que ser. Portanto, assim como os acidentes, as formas e atribuições semelhantes, não subsistentes, são mais coexistentes do que entes; assim, mais se devem chamar concriadas do que criadas. Pois propriamente criados são os seres subsistentes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Quando se diz que a primeira das coisas criadas é o ser, a palavra ser não importa a substância criada, mas a razão própria do objeto da criação. Pois, uma coisa se diz criada porque é ser, e não porque é tal ser; porquanto a criação é o emanar o ser total do ser universal, como já se disse (a. 1). Um modo semelhante de falar seria dizer que o primeiro visível é a cor, embora o que propriamente é visto seja um objeto colorido.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Criação não significa constituição de uma coisa composta por princípios preexistentes; mas se diz que um composto é criado quando é produzido para o ser simultaneamente com todos os seus princípios.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção não prova que só a matéria seja criada; mas que a matéria não existe senão por criação. Pois a criação é a produção do ser total e não só da matéria.

ART. V. – SE SÓ DEUS PODE CRIAR


(Infra. q. 65, a. 3; 90, a. 3; II Sent., dist. I, q. 1, a. 3; IV, dist. V, q. 1, a. q.ª 3; II Cont. Gent., cap. XX, XXI, De Verit., q. 5, a. 9, De Pot., q. 3, a. 4; Quodl., III, q. 3, a. 1; Compend. Theol., cap. LXX; Opusc. XV, De Angelis, cap. X; XXXVII, De Quatuor Opposit., cap. VI)

O quinto discute-se assim. – Parece que nem Só Deus pode criar.

1. – Pois, segundo o Filósofo, perfeito é o que pode fazer algo de semelhante a si. Ora, as criaturas imateriais são mais perfeitas que as materiais; e estas últimas fazem outras semelhantes a si, pois o fogo gera o fogo e o homem, o homem. Logo, a substância imaterial pode fazer outra semelhante a si; mas não o pode fazer senão por criação, porque não tem matéria com que faça. Portanto, alguma criatura pode criar.

2. Demais. – Quanto maior é a resistência por parte da coisa feita, tanto maior virtude se requer no que faz. Ora, mais resiste o contrário do que o nada. Logo, maior virtude há em fazer alguma coisa de um contrário – o que todavia a criatura faz – do que fazer alguma coisa do nada. Portanto, com maioria de razão, a criatura pode fazer tal.

3. Demais. – A virtude de quem faz se considera segundo a medida do que é feito. Ora, o ser criado é finito, como já se provou quando se tratou da infinidade de Deus (q. 7, a. 2). Logo, para produzir por criação algo criado, não se requer mais que uma virtude finita. Mas ter uma virtude finita não é contra a natureza da criatura. Logo, não é impossível a criatura criar.

Mas, em contrário, diz Agostinho que nem os bons nem os maus anjos podem ser criadores de nada. Portanto, muito menos as outras criaturas.

SOLUÇÃO. – Como aparece logo, à primeira vista e segundo o que já se demonstrou (a. 1; q. 44, a. 1, 20), criar não pode ser ação própria senão de Deus somente. Pois, é necessário que os efeitos mais universais sejam reduzidos a causas mais universais e primeiras. Ora, dentre todos os efeitos, o mais universal é o ser em si mesmo. Por onde, importa seja ele o efeito próprio da causa primeira e universalíssima que é Deus. E por isso também se diz que nem a inteligência nem a alma nobre dá o ser senão enquanto opera por operação divina. Porém, produzir o ser em absoluto, e não enquanto tal ou tal, pertence à noção de criação. Por onde é manifesto, que a criação é ação peculiar do próprio Deus.

Pode dar-se, porém, que uma coisa participe da ação peculiar a outra, não por virtude própria, mas instrumentalmente, enquanto age por virtude dessa outra; assim o ar, por virtude do fogo, pode aquecer e queimar. E por isso alguns opinaram que, embora a criação seja ação própria de uma causa universal, contudo uma causa inferior, enquanto age em virtude da causa primeira, pode criar. E assim ensinou Avicena que a substância primeira separada, criada por Deus, cria outra depois de si, e a substância do orbe com a sua alma; e que a substância do orbe cria a matéria dos corpos inferiores. E também, do mesmo modo, o Mestre das Sentenças diz que Deus pode comunicar à criatura o poder de criar, de modo a criar por ministério e não por autoridade própria.

Mas isto não pode ser. Pois, a causa segunda instrumental não participa da ação da causa superior, senão enquanto, por alguma causa que lhe é própria, coopera para o efeito do agente principal. Pois, se assim não agisse, segundo o que lhe for próprio, em vão se esforçaria para agir; e nem seria necessário haver instrumentos determinados de determinadas ações. Assim vemos que o machado, cortando a madeira, fabrica um escabelo, efeito próprio do agente principal. Mas o efeito próprio de Deus criador – o ser em absoluto – é pressuposto a todos os outros. Por onde não pode nenhum outro ser cooperar dispositiva e instrumentalmente para tal efeito, porque a criação não depende de um pressuposto que possa ser disposto por ação do agente instrumental. Assim que é impossível convenha a alguma criatura o criar, quer por virtude própria, quer instrumentalmente, quer por ministério. E, sobretudo, é impróprio dizer que um corpo crie, pois nenhum corpo age senão por contato ou movendo; e assim requer para a sua ação algo de preexistente que possa ser tocado ou movido; o que é contra a noção de criação.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Um ser perfeito, participante de alguma natureza, faz outro semelhante a si; não por certo produzindo absolutamente tal natureza, mas aplicando-a a alguma coisa. Assim tal homem não pode ser causa da natureza humana absolutamente, porque então seria causa de si mesmo; mas é causa de existir a natureza humana num outro homem gerado, pressupondo, portanto, para a sua ação uma matéria determinada pela qual é tal homem. Mas, assim como o homem participa da natureza humana, assim também qualquer ser criado participa, para que assim digamos, da natureza de existir, porquanto só Deus é o ser, como antes se viu (q. 7, a. 1, ad 3; a. 2). Por onde, nenhum ser criado pode produzir algum ente absolutamente, senão enquanto causa neste o ser; e assim é necessário que aquilo pelo que alguma coisa é tal ser se preintelija à ação pela qual faz algo de semelhante a si. Ora, na substância imaterial não se pode preinteligir nada pelo que ela seja tal, porque ela é tal pela sua forma, pela qual tem o ser, pois as substâncias imateriais são formas subsistentes. Logo, a substância imaterial não pode produzir outra semelhante a si, quanto ao ser desta, mas quanto a alguma perfeição superveniente, como se dissermos que um anjo superior ilumina o inferior, segundo está em Dionísio. E conforme tal modo também nos seres celestes há paternidade, consoante as palavras do Apóstolo (Ef 3, 15): Do qual toda a paternidade toma o nome nos céus e na terra. E disto evidentemente resulta que nenhum ser criado pode causar alguma coisa, salvo pressupondo-se outra coisa; o que repugna à noção de criação.

RESPOSTA À SEGUNDA. – De um contrário alguma coisa se faz por acidente, como diz Aristóteles; porém, em si, alguma coisa se faz de um sujeito em potência. Pois, o contrário resiste ao agente, privando a potência do ato ao qual o agente tende a reduzir a matéria; assim o fogo tende a reduzir a água a um ato semelhante a ele, mas é impedido pela forma e pelas disposições contrárias pelas quais a potência é como que ligada para que se não reduza ao ato. E quanto mais ligada estiver a potência, tanto maior virtude se requer no agente para reduzir a matéria ao ato. Por onde, muito maior virtude se requer no agente se não preexistir nenhuma potência. E assim é claro que muito maior virtude é fazer alguma coisa do nada do que do contrário.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A virtude de quem faz não se considera somente na substância da coisa feita, mas também no modo de fazer; assim, o maior calor não somente aquece mais senão ainda mais rapidamente. Embora, pois, causar um efeito finito não demonstre poder infinito, todavia causá-lo do nada demonstra tal poder, o que resulta claro do já dito (ad 2). Se pois, tanto maior virtude se requer no agente quanto mais remota do ato estiver a potência, necessário é que a virtude de um agente, nenhuma potência sendo pressuposta, como é o agente infinito, seja infinita; porque nenhuma proporção entre uma potência e outra, que pressupõe a virtude de um agente natural, é como a proporção entre o não-ser e o ser. E como nenhuma criatura tem pura e simplesmente um poder infinito, nem um ser infinito, conforme já antes se provou (q. 7, a. 2), resulta que nenhuma criatura pode criar.

ART. VI. – SE CRIAR É PRÓPRIO DE UMA DAS PESSOAS


(II Sent., prol.; De Pot., q. 9, a. 5. ad 20)

O sexto discute-se assim. – Parece que criar é próprio de uma das Pessoas.

1. – Pois, o anterior é causa do posterior, e o perfeito, do imperfeito. Ora, a processão da divina Pessoa é anterior à da criatura e mais perfeita; porque a divina Pessoa procede por semelhança perfeita do seu princípio, ao passo que a criatura procede por semelhança imperfeita. Logo, as processões das divinas Pessoas são a causa da processão das coisas. E assim, criar é próprio da pessoa.

2. Demais. – As Pessoas divinas não se distinguem entre si senão pelas suas processões e relações. Portanto, o que é diferentemente atribuído às divinas Pessoas convém-lhes segundo as processões e relações delas. Ora, a causalidade das criaturas lhes é diversamente atribuída; pois, no Símbolo da fé (Niceno) atribui-se ao Pai o ser Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; ao Filho, porém, que por ele todas as coisas foram feitas; e por fim ao Espírito santo, que é o Senhor e o vivificador. Logo, a causalidade das criaturas convém às Pessoas segundo processões e relações.

3. Demais. – Se se disser que a causalidade da criatura é considerada segundo algum atributo essencial apropriado a uma das Pessoas, isso não parece suficiente. Porque qualquer efeito divino é causado por qualquer atributo essencial, a saber, o poder, a bondade e a sapiência e, assim, não pertence mais a um que a outro. Logo, um determinado modo de causalidade não deve ser atribuído a uma Pessoa antes que a outra, salvo se se distinguirem as Pessoas, na criação, segundo relações e processões.

Mas, em contrário, diz Dionísio que todas as causalidades são comuns a toda a divindade.

SOLUÇÃO. – Criar é propriamente causar ou produzir o ser das coisas. Ora, como todo agente age conforme a natureza que tem, o princípio da ação podemos considerá-la pelo efeito da mesma; assim, é o fogo que gera o fogo. Portanto, criar convém a Deus segundo o seu ser, que é a sua essência, a qual é comum às três Pessoas. Por onde, criar não é próprio a uma qualquer das Pessoas, mas comum à toda a Trindade. Contudo, as divinas Pessoas, segundo a natureza da processão delas, exercem a causalidade em relação à criação das coisas. Pois, como já se demonstrou antes (q. 14, a. 8; q. 19, a. 4), quando se tratou da ciência e da vontade de Deus, Deus é a causa das coisas pelo intelecto e pela vontade, assim como o artífice é causa das coisas artificiadas. Mas este opera pelo verbo concebido no intelecto e pelo amor da vontade referido a algum objeto. Por onde, Deus Pai fez a criatura pelo seu Verbo que é o Filho; e pelo seu Amor, que é o Espírito santo. E, deste modo, as processões das Pessoas são as razões da produção das criaturas, enquanto incluem os atributos essenciais, que são a ciência e a vontade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As processões das divinas Pessoas são a causa da criação, conforme foi dito.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como a natureza divina, embora comum às três Pessoas, convém-lhes contudo numa certa ordem, enquanto o Filho recebe a natureza divina do Pai, e o Espírito Santo, de ambos; assim também, a virtude de criar, embora comum às três pessoas, convém-lhes contudo numa certa ordem, pois o Filho a tem do Pai, e o Espírito Santo, de ambos. Por onde, o ser Criador se atribui ao Pai como a quem não recebe de outrem a virtude de criar. Do Filho porém se diz – Todas as coisas foram feitas por ele, – enquanto tem a mesma virtude, mas recebida de outrem; pois a preposição por denota de ordinário a causa média ou o princípio proveniente de outro princípio. Mas ao Espírito Santo, que recebe de ambos a mesma virtude, atribui-se-lhe, que, dominando, governe e vivifique as coisas criadas pelo Pai por meio do Filho. – E também pode a razão comum desta atribuição ser deduzida da apropriação dos atributos essenciais. Pois, como já antes se disse (q. 39, a. 8), ao Pai é atribuído e apropriado o poder, que se manifesta maximamente na criação; e por isso lhe é atribuído o ser Criador. Ao Filho, porém, apropria-se a sabedoria, em virtude da qual o agente opera pelo intelecto; e por isso se diz do Filho: Todas as coisas foram feitas por ele. Ao passo que ao Espírito Santo se apropria a bondade, à qual pertence o governo, que conduz as coisas aos devidos fins, e a vivificação, porque a vida consiste num movimento interior, e o primeiro movente é o fim e a bondade.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora qualquer efeito de Deus proceda de qualquer dos atributos, contudo cada efeito se reduz ao atributo com o qual tem conveniência, segundo a razão própria; assim a ordenação das coisas, com a sabedoria; e a justificação do ímpio, com a misericórdia e a bondade que se difunde com super-abundância. Porém a criação, produção da própria substância da coisa, reduz-se ao poder.

ART. VII. – SE NECESSARIAMENTE SE ENCONTRA NAS CRIATURAS O VESTÍGIO DA TRINDADE


(Infra, q. 93, a. 6; I Sent., disto III, q. 2, a. 2; IV Cont. Gent., cap. XXVI: De Pot., q. 9, a. 9)

O sétimo discute-se assim. – Parece não se encontrar necessàriamente nas criaturas o vestígio da Trindade.

1. – Qualquer ser pode se investigar pelos seus vestígios. Ora, a Trindade das Pessoas não pode ser investigada partindo das criaturas, como já antes se disse (q. 32, a. 1). Logo, vestígios da Trindade não há nas criaturas.

2. Demais. – Tudo o que há na criatura é criado. Se, pois, o vestígio da Trindade se encontra nas criaturas, por alguma das propriedades destas, é forçoso haja também em cada uma delas o vestígio da Trindade; e assim ao infinito.

3. Demais. – Um efeito não representa senão a sua causa. Ora, a causalidade das criaturas pertence à natureza comum, mas não às relações pelas quais as Pessoas se distinguem e enumeram. Logo, na criatura não se encontra o vestígio da Trindade, mas somente da unidade de essência.

Mas, em contrário, diz Agostinho, que o vestígio da Trindade aparece nas criaturas.

SOLUÇÃO. – Todo efeito representa de certa maneira a sua causa, mas de diversos modos. Pois, tal efeito representa somente a causalidade e não a forma da causa; assim, o fumo representa o fogo. E tal representação se chama representação do vestígio; pois, o vestígio indica o passar de algum transeunte, não porém qual este seja. Mas tal outro efeito representa a causa quanto à semelhança da forma dela; assim o fogo gerado representa o fogo gerador e a estátua de Mercúrio, Mercúrio. E esta é a representação da imagem. Ora, as processões das divinas Pessoas se consideram relativamente aos atos do intelecto e da vontade, como já se disse (q. 27). Pois, o Filho procede como Verbo do intelecto e o Espírito Santo, como Amor da vontade. Por onde, nas criaturas racionais, em que há intelecto e vontade, encontra-se a representação da Trindade, a modo de imagem, enquanto nelas se encontram o verbo concebido e o amor procedente. Porém em todas as criaturas se encontra a representação da Trindade a modo de vestígio, enquanto que em qualquer delas se encontram certos aspectos que de necessidade se hão de reduzir às divinas Pessoas como à causa. Pois, qualquer criatura subsiste no seu ser, tem uma forma pela qual está numa determinada espécie, e se ordena a algum outro ser. Portanto, enquanto é uma certa substância criada, representa a causa e o princípio e demonstra, assim, a pessoa do Pai, que é princípio sem princípio. Enquanto porém tem uma certa forma e espécie, representa o Verbo, porque a forma do artificiado provém da concepção do artífice. E, por fim, enquanto ordenada, representa o Espírito Santo, que é Amor; porquanto a ordem do efeito para outra coisa, provém da vontade do criador. E por isso diz Agostinho, que o vestígio da Trindade se encontra em cada criatura, enquanto é alguma coisa determinada, é formada por alguma espécie e tem uma certa ordem. E a isto se reduzem aqueles três aspectos – número, peso e medida – de que fala a Escritura (Sb 9); pois a medida se refere à substância da coisa limitada pelos seus princípios; o número, à espécie; o peso, à ordem. E ainda a estes três aspectos se reduzem outros três de que fala Agostinho: o modo, a espécie e a ordem. Assim como o de que fala alhures: o que consta, o que é discernido e o que é congruente: pois alguma coisa subsiste, pela sua substância; é discernida, pela forma, é congruente, pela ordem. Sendo que a isto facilmente pode ser reduzido tudo o que de semelhante for dito.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A representação do vestígio funda-se nas coisas apropriadas; desse modo se pode chegar, pelas criaturas, à Trindade das divinas pessoas, como já se disse (q. 32, a. 1 ad 1).

RESPOSTA À SEGUNDA. – A criatura é um ser propriamente subsistente, na qual se encontram os três aspectos referidos; nem é necessário que em cada uma das propriedades da criatura se encontrem os três aspectos; mas, na medida deles é que o vestígio se atribui à coisa subsistente.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Também as processões das Pessoas são causa e razão da criação, de certo modo, como se disse.

ART. VIII. – SE HÁ CRIAÇÃO NAS OBRAS DA NATUREZA E DA ARTE


(II Sent., dist. I. q. 1, a. 3, ad 5; a. 4, ad 4; De Pot., q. 3, a. 8; VII Metaphys., Lect. VII)

O oitavo discute-se assim. – Parece haver criação nas obras da natureza e da arte.

1. – Pois, em qualquer obra da natureza e da arte se produz alguma forma. Ora, esta não é produzida de alguma coisa, porque, por sua parte, não tem matéria. Logo, é produzida do nada. Assim que, em qualquer operação da natureza e da arte há criação.

2. Demais. – O efeito não é mais poderoso que a causa. Ora, nas coisas naturais só se encontra, como agente, a forma acidental, que é forma ativa ou passiva. Logo, por operação da natureza, não se produz nenhuma forma substancial. Resta, portanto, que o seja por criação.

3. Demais. – A natureza faz o semelhante a si. Ora, encontram-se certos seres gerados, em a natureza, que não o são por algo de semelhante a eles, como é claro nos animais gerados por putrefação. Logo, a forma deles não provém da natureza, mas existe por criação. E idêntica é a razão em casos similares.

4. Demais. – O que não é criado não é criatura. Se, pois nos seres da natureza não há criação, segue-se que não são criaturas; o que é herético.

Mas, em contrário, Agostinho distingue a obra da propagação, que é obra da natureza, da de criação.

SOLUÇÃO. – A dúvida presente é suscitada por causa das formas. Sobre as quais alguns, admitindo-as como latentes, ensinaram que não começam por ação da natureza, mas que já existiam anteriormente na matéria. E estes assim ensinaram por ignorância do que seja a matéria, não sabendo distinguir entre a potência e o ato. Pois, por preexistirem as formas potencialmente na matéria, admitiram-nas como absolutamente preexistentes. Outros, porém, ensinaram que as formas são produzidas ou causadas por um agente separado, a modo de criação; e, segundo estes, há criação em qualquer operação da natureza. Mas assim o ensinaram por ignorarem o que seja a forma. Pois, não consideravam que a forma natural do corpo não é subsistente, mas é o meio pelo qual alguma coisa existe. Assim, pois, que, como o ser feito e o ser criado convenham propriamente só ao ser subsistente, como já se disse (a. 4), não é próprio das formas o serem feitas nem criadas, mas o serem concriadas. O que, porém, se faz por um agente natural é composto, porque é feito da matéria. Por onde, nas obras da natureza, não há criação, mas algo se pressupõe à operação da natureza.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As formas começam a existir em ato quando os compostos estão feitos; não que elas sejam feitas por si, mas somente por acidente.

RESPOSTA À SEGUNDA. – As qualidades ativas em a natureza agem em virtude das formas substanciais. Por onde, o agente natural não somente produz um semelhante a si pela qualidade, mas pela espécie.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Para a geração dos animais imperfeitos basta o agente universal, que é a virtude celeste, à qual eles se assemelham, não pela espécie, mas por certa analogia; nem vale dizer que as formas deles são criadas por um agente separado. Porém para a geração dos animais perfeitos não basta o agente universal, mas se requer um agente próprio, que é um gerador unívoco.

RESPOSTA À QUARTA. – A operação da natureza pressupõe princípios criados; assim que, as coisas feitas pela natureza se chamam criaturas.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Capítulo VII

CAPÍTULO VII


Existe no coração humano um sentimento natural que não permite ninguém detestar sua própria carne. Assim, se alguém vem a saber que, após sua morte, seu corpo não receberá as honras de sepultura, conforme o costume de cada raça e nação, sente-se perturbado como homem.

Teme que seu corpo, antes da morte, não atinja o destino pretendido após a morte.

É isto que lemos no livro dos Reis, quando Deus envia um profeta a outro profeta (um homem de Deus) que havia transgredido a Sua Palavra, para anunciar-lhe que seu corpo, como castigo, não seria levado à sepultura de seus pais.

Eis o que diz as Escrituras: "Aquele profeta disse ao homem de Deus que tinha vindo de Judá: 'Eis o que diz o Senhor: porque não obedeceste à Palavra do Senhor e não guardaste o mandamento que o Senhor, teu Deus, havia te imposto, voltando e comendo pão e tomando água, o teu cadáver não será levado ao sepulcro de teus pais'".

Medindo a importância desta punição em relação ao Evangelho - onde está escrito que, estando morto o corpo, os membros nada devem temer - não podemos dizer que isso tenha sido uma punição, exceto se considerarmos o amor que todo homem tem por sua própria carne: o profeta, em vida, com certeza sentiu temor e tristeza com a idéia de um tratamento que não poderia sentir após a morte.

E era justamente essa a sua punição; esse sentimento de dor diante da idéia do que sofreria o seu corpo, ainda que, de fato, não viesse a sofrer em absoluto no momento em que a ameaça se concretizasse.

Ora, o Senhor quis apenas punir a desobediência do seu servo, não por má vontade, mas por ter sido enganado pela mentira de um outro profeta. Não se pode pensar que a mordida da fera selvagem o tenha matado para que a sua alma fosse lançada no Inferno, pois o mesmo leão que o agredira montou guarda de seu corpo, sem fazer mal algum ao jumento que assistia destemidamente ao funeral do seu dono, ao lado da terrível fera. Esse fato notável é sinal de ter sofrido o profeta tal morte como castigo temporal e não como punição eterna.

O Apóstolo lembra que muitos são punidos com doença ou morte por causa de seus pecados, fazendo esta observação: "Se nos examinássemos a nós mesmos, não seríamos julgados; mas com seus julgamentos, o Senhor nos corrige, para que não sejamos condenados com o mundo".

O velho profeta, que enganara o homem de Deus, sepultou-o com muita honra e tomou os procedimentos necessários para que, mais tarde, ele mesmo fosse sepultado junto a aquele. Esperava que aqueles ossos encontrariam graça quando chegasse o tempo em que, conforme a profecia do homem de Deus, Josias, rei de Judá, exumaria os ossos de muitos mortos para profanar com eles os altares sacrílegos erguidos aos ídolos. Contudo, passados mais de 300 anos, Josias poupou o sepulcro onde havia sido enterrado o homem de Deus que predissera esse fato. E, assim, graças a esse homem de Deus, a sepultura do profeta que o enganara não foi violada.

O efeito que leva alguém a odiar a própria carne, o havia feito prever o destino do seu corpo, mesmo tendo matado sua alma por uma mentira.

Cada um ama sua própria carne por instinto. Assim, um profeta sofreu à idéia de que não iria repousar no sepulcro de seus pais e o outro tomou o cuidado de prover à segurança de seus ossos, fazendo-se enterrar em sepulcro que ninguém haveria de violar.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Questão XLIV - De como procedem de Deus as criaturas e da causa primeira de todos os seres

QUESTÃO XLIV. – DE COMO PROCEDEM DE DEUS AS CRIATURAS E DA CAUSA PRIMEIRA DE TODOS OS SERES


Após a consideração das Divinas Pessoas, resta considerar como procedem de Deus as criaturas. E esta consideração será tripartida: primeiro, consideraremos a produção das criaturas; segundo, a distinção delas; terceiro, a conservação e o governo. A respeito do primeiro ponto, três outros se devem considerar: primeiro, qual seja a causa primeira dos seres; segundo, de como procedem da causa primeira as criaturas; terceiro, do princípio da duração das coisas. A respeito do primeiro quatro artigos se discutem:
  1. Se Deus é a causa eficiente de todos os seres;
  2. Se a matéria prima é criada por Deus, ou é um princípio com ele igualmente coordenado;
  3. Se Deus é a causa exemplar das coisas, ou se há outros exemplares além dele;
  4. Se Deus é a causa final das coisas.

ART. I – SE É NECESSÁRIO SEJAM TODOS OS SERES CRIADOS POR DEUS


(Infra, q. 65, a. 1; II Sent., dist. 1. q. 1, a. 2; dist. XXXVII, q. 1, a. 2; II Cont. Gent., cap. XV; De Pot., q. 3, a. Compend. Theol., cap. LXVIII; Opusc. XV. De Angelis, cap. IX; De Div. Nom., cap. V, lect I)

O primeiro discute-se assim. – Não parece necessário sejam todos os seres causados por Deus.

1. – Nada impede existir uma coisa sem o que não é da sua essência, como, um homem sem a brancura. Ora, a relação do causado com a causa não parece ser da essência dos seres, pois, sem ela, compreendem-se alguns seres. Logo, podem existir sem ela. Por onde, nada impede existam alguns seres não causados por Deus.

2. Demais. – Um ser precisa da causa eficiente para existir. Logo, o que não pode deixar de existir não precisa de causa eficiente. Mas nada do que é necessário pode deixar de existir, pois o que necessariamente existe não pode deixar de existir. Como, porém, muitas coisas sejam necessárias, nos seres, parece que nem todos provêm de Deus.

3. Demais. – Os seres que tem causa podem por esta ser demonstrados. Ora, nas matemáticas não há demonstração pela causa agente, como se vê no Filósofo. Logo, nem todos os seres provêm de Deus como de causa agente. Mas, em contrário, a Escritura (Rm 9, 36): Porque dele, e por ele, e nele existem todas as coisas.

SOLUÇÃO. – Necessário é admitir-se como causado por Deus tudo o que de qualquer modo existe. Pois, a coisa existente em outra por participação, é nessa outra causada necessariamente pelo ser ao qual ela essencialmente convém; assim, o ferro torna-se ígneo pelo fogo. Ora, já quando antes se tratou da divina simplicidade (q. 3, a. 4) demonstrou-se que Deus é o ser mesmo por si subsistente; e demonstrou-se também (q. 7, a. 1 ad 3; a. 2; q. 11, a. 3) que o ser subsistente não pode ser mais de um; assim, se fosse subsistente, a brancura não podia ser mais de uma, pois as brancuras se multiplicam pelos seres que as contém. Donde se conclui que todos os seres, exceto Deus, não tem o ser por si mesmo, mas por participação. Logo, todos os seres diversificados, por participarem diversificadamente do ser, e, assim, mais ou menos perfeitos, necessariamente devem ser causados por um ser primeiro perfeitíssimo. – Por onde, disse Platão ser necessário admitir a unidade como anterior a toda multidão. E Aristóteles diz que o ser maximamente ser e verdadeiro é causa de todos os seres e de toda a verdade; assim como, o maximamente cálido é causa de toda a calidez.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Embora a relação com a causa não entre na definição do causado, contudo resulta da essência deste; pois do ser por participação resulta que é causado por outro. Por onde, tal ente não pode existir sem que seja causado; assim como não o pode o homem sem que seja capaz de rir-se. Mas como o ser causado não é da essência de um ente puro e simples, daí resulta que certo ser não é causado.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Por esta objeção muitos foram levados a admitir que o necessário não tem causa, como se diz na Física de Aristóteles. Mas tal aparece manifestamente como falso nas ciências demonstrativas, nas quais princípios necessários são causas de conclusões necessárias. Por onde, diz Aristóteles, que há certos seres necessários que encerram a causa da sua necessidade. Pois não só por poder o efeito não existir é que se requer a causa agente, mas porque o efeito não existiria se a causa não existisse. E esta condicional é verdadeira, quer sejam o antecedente e o consequente possíveis ou impossíveis.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Consideradas abstratas pela razão, as entidades matemáticas não são abstratas pelo ser. Ora, um ser tem causa agente na medida em que tem o ser. Assim, pois, embora as entidades matemáticas tenham causa agente, contudo não é pela relação que tem com tal causa que caem sob a consideração do matemático. Por onde, nas ciências matemáticas, nada se demonstra pela causa agente.

ART. II – SE A MATÉRIA PRIMA É CAUSADA POR DEUS


(II Cont. Gent., cap. XVI; De Pot., q. 3, a. 5; Compend. Theol., cap. LXIX; VIII Phys., lect II)

O segundo discute-se assim. – Parece que a matéria prima não é causada por Deus.

1. – Tudo o que é feito compõe-se de um sujeito e de alguma outra coisa, como diz Aristóteles. Ora, a matéria prima não tem nenhum sujeito. Logo, não pode ser feita por Deus.

2. Demais. – A ação e a paixão dividem-se por oposição mútua. Mas assim como o primeiro princípio ativo é Deus, assim o primeiro princípio passivo é a matéria. Logo, Deus e a matéria prima são dois princípios divididos por oposição mútua, sem provir um do outro.

3. Demais. – Todo agente age semelhantemente a si; e assim como todo agente age enquanto está em ato, segue-se que tudo o que é feito está, de algum modo, em ato. Ora, a matéria prima, como tal, só existe em potência. Logo, é contra a essência da matéria prima o ser feita. Mas, em contrário, diz Agostinho: Duas coisas fizeste, Senhor: uma semelhante a ti, isto é, o anjo; outra semelhante ao nada, isto é, a matéria prima.

SOLUÇÃO. – Os antigos filósofos aos poucos, e como pé por pé, entraram no conhecimento da verdade. Assim, a princípio, como que, mais grosseiros de existência, não reputavam entes senão os corpos sensíveis. E dentre eles, os que em tais corpos admitiam o movimento, consideravam-no a este somente segundo certos acidentes, p. ex., segundo a raridade e a densidade, por congregação e segregação. E supondo sem causa a substância mesma dos corpos, buscavam certas causas a tais transmutações acidentais, como a amizade, a luta, a inteligência e coisas semelhantes. Outros filósofos, porém, mais em progresso, distinguiram, pelo intelecto, entre a forma substancial, e a matéria sem causa; e perceberam transmutação nos corpos segundo formas essenciais. Dessas transmutações admitiam certas causas mais universais como o círculo oblíquo, segundo Aristóteles, ou as Idéias, segundo Platão. Deve-se, porém, considerar que a matéria é limitada pela forma a uma determinada espécie; assim como a substância de uma espécie é limitada, por acidente superveniente, a um determinado modo de ser; p. ex., homem é limitado por branco. Uns e outros filósofos, portanto, consideraram o ser por certa consideração particular, seja enquanto este ser, seja enquanto tal ser. E, por isso, atribuíram às coisas causas agentes particulares. Mas ulteriormente alguns se alçaram a considerar o ser enquanto ser e consideraram a causa das coisas não só enquanto estas ou tais, mas enquanto entes. Ora, a causa das coisas enquanto entes deve sê-lo não somente enquanto são tais coisas, pelas formas acidentais, nem somente enquanto são estas coisas, pelas formas substanciais; mas também segundo tudo o que lhes pertence ao ser de qualquer modo. Assim que, é necessário também admitir a matéria prima como causada pela causa universal dos seres.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Filósofo, no lugar citado, fala do vir a ser particular, que é o da forma, em forma acidental ou substancial. No caso vertente, porém, falamos das coisas segundo a emanação delas do princípio universal do ser; de cuja emanação nem a matéria é excluída, embora o seja do primeiro modo de facção.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A paixão é efeito da ação. Por onde, é racional que o primeiro princípio passivo seja efeito do primeiro princípio ativo, pois tudo o que é imperfeito é causado pelo perfeito. Ora, é necessário que o primeiro princípio seja perfeitíssimo, como diz Aristóteles.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Tal objeção não prova que a matéria não seja causada, mas que não é causada sem forma; pois embora tudo o que é causado exista em ato, não é todavia ato puro. Por onde necessariamente, também aquilo que se comporta como potência é causado, se o todo do qual o seu ser faz parte é causado.

ART. III – SE A CAUSA EXEMPLAR É ALGO DIVERSO DE DEUS


(Supra, q. 15; I Sent., dist. XXXVI, q. 2; I Cont. Gent., cap. LIV; De Verit., q. 3, a. 1, 2; De Div. Nom., cap. V, lect. III; I Metaphys., lect. XV)

O terceiro discute-se assim. – Parece que a causa exemplar é algo diverso de Deus.

1. – Pois, o exemplado tem a semelhança do exemplar. As criaturas, porém, muito distam da divina semelhança. Logo, Deus não é a causa exemplar delas.

2. Demais. – Tudo o que existe por participação se reduz a algo que é existente por si, como o que é ígneo se reduz ao fogo, como já se disse (a. 1). Ora, todas as coisas sensíveis só existem por participação de alguma espécie, como claramente se depreende de se não encontrar, em nenhuma delas, somente o pertencente à essência da espécie, mas de se acrescentarem princípios individuantes aos princípios da espécie. Logo, é necessário admitirem-se as espécies mesmas como existentes por si, como, o homem em si e o cavalo em si e assim por diante. Ora, tais entidades se chamam exemplares. Por onde, há, fora de Deus, certas coisas que são causas exemplares.

3. Demais. – As ciências e as definições se referem às espécies em si mesmas e não enquanto existentes em seres particulares, pois dos particulares não há ciência nem definição. Logo, há certos entes que são entes ou espécies não existentes nos seres singulares, e tais se chamam exemplares. Por onde, conclui-se o mesmo que antes.

4. Demais. – Isto mesmo se lê em Dionísio dizendo, que o ser que o é por si mesmo é anterior ao que é a vida em si mesma e ao que é a sapiência em si mesma.

Mas, em contrário, é que o exemplar é idêntico à idéia. Ora, as idéias, como diz Agostinho, são as formas principais contidas na inteligência divina. Logo, os exemplares das coisas não existem fora de Deus.

SOLUÇÃO. – Deus é a causa exemplar primeira de todas as coisas. Para evidenciá-lo devemos considerar que para a produção de qualquer coisa é necessário um exemplar, para que o efeito resulte de uma forma determinada. Assim o artífice produz uma determinada forma na matéria, por causa do exemplar considerado, quer esse exemplar lhe seja exterior, quer seja concebido interiormente na sua mente. Ora, é manifesto que as coisas existentes em a natureza resultam de formas determinadas; e é necessário seja essa determinação das formas reduzida, como ao primeiro princípio, à divina sabedoria, que cogitou a ordem do universo, consistente na distinção das coisas. E, portanto, é necessário admitir-se que na divina sabedoria estão as razões de todas as coisas, a que chamamos antes idéias, isto é, formas exemplares existentes na mente divina. E essas, embora multiplicadas enquanto referidas às coisas, contudo não são realmente diversas da essência divina, pois a semelhança desta pode ser participada diversamente por seres diversos. Assim, pois, Deus é o exemplar primeiro de todas as coisas. Mas também, entre os seres criados, uns podem chamar-se exemplares de outros, enquanto estes tem com aqueles semelhanças, ou segundo a mesma espécie ou segundo a analogia de alguma imitação.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Embora as criaturas não alcancem o serem semelhantes a Deus segundo a natureza delas, por semelhança específica, como o homem gerado é semelhante ao homem gerador; alcançam, contudo, a semelhança com Deus segundo a representação da essência inteligida por Ele, como a casa existente na matéria é semelhante à existente na mente do artífice.

RESPOSTA À SEGUNDA. – É da essência do homem existir na matéria; por isso não se pode encontrar um homem sem matéria. Embora, pois, tal homem exista por participação da espécie, não pode contudo ser reduzido a algo existente por si, na mesma espécie, mas a uma espécie superexcedente, como são as espécies separadas. E a mesma é a natureza dos outros seres sensíveis.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora a ciência e a definição seja só dos seres, não é necessário contudo que as coisas tenham o mesmo modo de existir que o intelecto, de inteligir. Pois nós, por virtude do intelecto agente, abstraímos as espécies universais das condições particulares. Não é necessário todavia que os universais subsistam sem os particulares, como exemplares destes.

RESPOSTA À QUARTA. – Como diz Dionísio, a vida em si mesma e a sapiência em si mesma, ora designa o próprio Deus, ora virtudes inerentes às coisas mesmas; não porém coisas subsistentes, como queriam os antigos.

ART. IV – SE DEUS É A CAUSA FINAL DE TODAS AS COISAS


(Infra, q. 65, a. 2; q. 103, a. 2; II Sent., dist. 1, q. 2, a. 1, 2; Cont. Gent., cap. XVII; Compend. Theol., cap. C, CI)

O quarto discute-se assim. – Parece não seja Deus a causa final de todas as coisas.

1. – Pois, agir por um fim parece ser próprio de um ser que precisa de um fim. Ora, Deus de nada precisa. Logo, não lhe cabe agir por um fim.

2. Demais. – O fim da geração e a forma do gerado, e o agente não são numericamente idênticos, como diz Aristóteles; pois o fim da geração é a forma do gerado. Ora, Deus é o primeiro de todos os agentes. Logo, não é a causa final de todas as coisas.

3. Demais. – Todas as coisas desejam o fim, mas nem todas desejam Deus, porque nem todas o conhecem. Logo, Deus não é o fim de todas as coisas.

4. Demais. – A causa final é a primeira das causas. Se, pois, Deus for causa agente e causa final, segue-se que há n’ele anterior e posterior, o que é impossível. Mas, em contrário, a Escritura (Pr 16, 4): Tudo fez o Senhor por causa de si mesmo.

SOLUÇÃO. – Todo agente age por um fim; ao contrário, da ação do agente não resultaria antes uma que outra coisa senão pelo acaso. Ora, o agente e o paciente como tais têm idêntico fim, mas em sentidos diferentes. Pois uma e mesma coisa é o que o agente visa imprimir e o que o paciente visa receber. Há, porém, certos seres que simultaneamente agem e sofrem a ação, e são os agentes imperfeitos; e a esses convém que, mesmo no agir, visem alguma aquisição. Mas ao agente primeiro, que é somente agente, não cabe agir para a aquisição de algum fim; mas ele visa somente comunicar a sua perfeição, que é a sua bondade. E cada uma das criaturas visa conseguir a própria perfeição, que é semelhança da perfeição e da bondade divina. Assim, pois, a divina bondade é o fim de todas as coisas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Agir por indigência só é próprio do agente imperfeito, a que é natural agir e sofrer a ação. Mas tal não cabe em Deus. Por onde, só ele é maximamente liberal, porque não age para sua utilidade, mas só por sua bondade.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A forma do gerado só é o fim da geração enquanto é semelhança da forma do generante, que visa comunicar a sua semelhança. Do contrário, a forma do gerado seria mais nobre que a do generante, pois o fim é mais nobre do que as coisas que dele dependem.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Todas as coisas desejam Deus como fim, desejando qualquer bem, quer pelo apetite inteligível, quer pelo sensível, quer pelo natural, que é sem conhecimento; pois nada tem a natureza de bom e de desejável senão enquanto participa da semelhança de Deus.

RESPOSTA À QUARTA. – Sendo Deus a causa eficiente, exemplar e final de todas as coisas, e provindo d’ele a matéria prima, segue-se que o primeiro princípio de todas as coisas é só um na realidade. Pois, nada impede que em Deus se considerem muitas coisas, pela razão, das quais algumas caem, antes de outras, sob a apreensão da nossa inteligência.