CAPÍTULO XII
Algumas visões, ocorridas durante o estado de vigília, são semelhantes aos sonhos.
Acontecem a pessoas que estão com os sentimentos conturbados, como os frenéticos e os loucos de todo gênero.
Conversam consigo mesmos, como se falassem com outras pessoas presentes ou ausentes, vivas ou falecidas, cujas imagens aparecem-lhes à frente dos olhos.
Mas os vivos não sabem que essas pessoas imaginam estar conversando com eles, já que de fato não se encontram lá, nem falam nada.
Essas visões imaginárias surgem da perturbação dos sentidos.
Do mesmo modo, aqueles que já deixaram esta vida aparecem a pessoas que têm o cérebro perturbado, como se estivessem presentes, sendo que, de fato, não estão lá, mas bem longe, e nem supõem que alguém tenha percebido as suas imagens em uma visão imaginária.
Abordemos um outro fato semelhante: existem pessoas que ficam sem o domínio dos sentidos ainda mais do que ao dormir.
Absorvidas que ficam em suas visões imaginárias, julgam ver vivos e mortos.
Ao retornar ao uso da razão, declaram os nomes dos falecidos que viram, e as pessoas que os escutam acreditam que realmente tal fato se verificou.
Os ouvintes, contudo, não percebem que nessas mesmas visões apareceram pessoas vivas que não estiveram lá de verdade e que sequer souberam do ocorrido.
Isso aconteceu com um homem chamado Curma, habitante de Tullium, município próximo a Hipona, que era membro do Conselho Municipal, pequeno magistrado da aldeia e simples camponês.
Caindo doente, entrou em profundo estado de letargia e ficou como que morto durante vários dias; como exalava pouquíssimo ar pelas narinas, indicando um grau mínimo de vida, não foi sepultado; mas não mexia nenhum membro e seus olhos e outros sentidos permaneciam insensíveis a qualquer tipo de estímulo.
Mesmo assim, tinha visões como aqueles que dormem e as contou alguns dias depois, quando se libertou do sono.
Assim disse quando abriu os olhos: "Vão imediatamente à casa do Curma ferreiro e vejam o que está acontecendo por lá".
Ao chegarem lá, ficaram sabendo que esse Curma havia falecido no exato momento em que o primeiro saía do estado letárgico e retornava à vida com sentidos.
Interessados pelo ocorrido, os assistentes interrogaram-no e ele lhes disse que o Curma ferreiro havia recebido ordem de comparecer perante Deus no mesmo momento em que ele havia sido reenviado para este mundo.
Lá, no outro mundo que voltara, ficara sabendo que não era o Curma da Cúria Municipal que deveria se apresentar à mansão dos mortos, mas o Curma ferreiro.
Nas visões que teve durante os sonhos, o Curma da Cúria Municipal reconheceu entre os mortos alguns vivos que conhecera aqui, sendo tratados de acordo com os méritos que cada um teve durante a vida.
Eu talvez acreditaria nessa história se todas as pessoas que viu fossem realmente falecidas, isto é, se o doente não tivesse visto em seus sonhos outras pessoas que ainda vivem, como, por exemplo, clérigos da sua região e, entre outros, um padre que lhe disse para se batizar em Hipona, a quem ele respondeu: "Eu já fui batizado".
Portanto, em sua visão, ele percebera também padres, clérigos e eu mesmo, ou seja, seres vivos.
E entre estes, vira outros mortos.
Portanto, por que não havemos de crer que ele viu esses mortos da mesma forma como viu a nós, isto é, viu uns e outros sem que ninguém soubesse disso e estando todos eles distantes?
Pois tivera para si uma representação imaginária de pessoas e lugares; ele viu a propriedade onde aquele padre morava com seus clérigos, viu Hipona onde eu o tinha batizado - como alegara.
Mas, de fato, ele não estivera nesses lugares onde tinha a ilusão de ter estado; ele ignorava o que aí se fazia no momento da visão.
Se ele realmente tivesse estado ali, certamente saberia o que ali se fazia.
Portanto, foi uma espécie de visão em que os objetos não se apresentam como são na realidade, mas sob a sombra de suas imagens.
Finalmente, esse homem ainda contou que, na última das suas visões, ele fora levado ao Paraíso e lá lhe disseram, antes de o devolverem aos seus: "Ide e faze-te batizar se quiserdes um dia estar nesta morada de bem-aventurados".
Avisado de receber o batismo de minhas mãos, ele respondeu que já o recebera, mas a voz que lhe falava insistiu: "Ide e faze-te batizar realmente porque o teu batismo é imaginário".
Assim, após sua cura, ele veio a Hipona próximo do tempo da Páscoa; e fez-se inscrever na lista dos aspirantes [ao batismo], sendo desconhecido de mim e de muitos outros.
Não confiou suas visões a mim ou a outros padres...
Recebeu o batismo e, terminados os dias santos, retornou para a sua casa.
Fiquei sabendo da história dois anos depois - ou até mais - por um amigo comum que foi fazer uma refeição em minha casa, quando falávamos sobre esse tipo de assunto.
Mais tarde, consegui, depois de muita insistência, que me contasse a história, na presença de seus concidadãos, gente honrada, que se apresentaram como testemunhas da realidade dos fatos: a sua estranha doença, seus longos dias de morte aparente, o caso do outro Curma, ferreiro - conforme narrado acima -, enfim, todos os pormenores que se lembrava.
E todos testemunharam já terem ouvido essa narração de sua boca, à medida que ele a divulgava.
Conclui-se, assim, que ele vira seu batismo, a mim, Hipona, a basílica e o batistério não na realidade, mas na imagem, da mesma forma como vira outras pessoas vivas, sem que elas tenham percebido isto.
Logo, por que não admitir que ele viu os mortos sem que estes tenham percebido?
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