sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Capítulo XVII

CAPÍTULO XVII


Creio que esse é o caso do famoso monge João, a quem o imperador Teodósio Magno consultou a respeito de uma guerra civil.

De fato, ele possuía o dom da profecia...

Mas eu não duvido que os dons [do Espírito] sejam distribuídos um por pessoa, isto é, acho que é possível a uma mesma pessoa receber diversos dons.

Certa vez, esse monge João soube que uma mulher muito piedosa desejava vê-lo.

Então, através de seu marido, ela insistiu em marcar uma entrevista, mas ele recusou, como costumava a fazer quando se tratava de mulheres.

Contudo, disse ao marido: "Ide e dize à tua esposa que ela me verá esta noite durante o sono".

E, de fato, ela o viu dando-lhe conselhos convenientes a uma mulher cristã casada.

Quando acordou, essa mulher contou tudo a seu marido, que conhecera pessoalmente esse homem de Deus e o reconheceu tal como ela o descreveu.

O casal, então, revelou esse fato a um senhor que me comunicou, senhor esse sério, nobre e digno de fé.

Ora, se me fosse possível encontrar esse santo monge que, como me disseram, se deixava interrogar pacientemente, sabendo responder tudo com grande sabedoria, perguntar-lhe-ia algo que nos interessa aqui: se ele realmente se apresentou a essa mulher que dormia, pessoalmente, sob os traços aparentes do seu corpo, tal como os nossos corpos se apresentam a nós mesmos durante nossos sonhos; ou se a visão ocorreu pelo ministério dos anjos ou outra modalidade, enquanto ele mesmo fazia outra coisa ou até mesmo dormia, tendo seus próprios sonhos...

E, caso confirmasse esta segunda hipótese, perguntar-lhe-ia se foi por uma revelação do Espírito de profecia que pôde prometer sua aparição naquela noite, durante o sonho da mulher.

Ora, se ele se apresentou pessoalmente em sonho à mulher, ele o fez por uma graça extraordinária e não por meios naturais, isto é, por um dom de Deus e não por seu próprio e natural poder.

Mas, se essa mulher o viu enquanto ele fazia uma outra coisa (por exemplo: estivesse ele dormindo e tendo seus próprios sonhos), o fato se assemelhará ao que lemos nos Atos dos Apóstolos, quando o Senhor Jesus, falando a Ananias sobre Saulo, revela-lhe que Saulo vê Ananias ir até ele, ao passo que este nada sabia sobre isso.

Porém, qualquer que fosse a resposta dada pelo monge João, esse homem de Deus, às minhas perguntas, eu ainda o teria questionado sobre os mártires.

Perguntar-lhe-ia se eles aparecem pessoalmente durante o sono ou outro modo, sob figura que lhes apraz.

E perguntaria, principalmente, como explicar o fato de dêmonios que habitam pessoas possessas queixarem-se de ser atormentados pelos mártires, a ponto de suplicarem que sejam poupados.

Ainda lhe perguntaria se a sua intervenção se produz por ordem de Deus e pelo ministério dos anjos, para a glorificação dos santos e utilidade dos homens, já que os mártires encontram-se em repouso, longe de nós, em visões mais altas, contentando-se em orar por nossa intenção.

De fato, em Milão, junto à sepultura de Gervásio e Protásio, quando se pronunciava os nomes desses heróis e dos falecidos comemorados com eles, os demônios gritavam o nome de Ambrósio, que ainda era vivo, suplicando-lhe que os poupasse.

E o bispo encontrava-se longe dali, ignorando o que se passava e entretido com outras ocupações...

Será que podemos pensar que os mártires às vezes agem por presença efetiva e outras vezes pelos ministérios dos anjos?

Podemos discernir o modo empregado por eles? Sob quais sinais podemos reconhecer isso?

Somente quem recebeu esse dom do Espírito Santo é que pode discernir, pois é o Espírito que distribui os favores particulares a cada um, conforme lhe apraz.

Creio que o monge João, a meu pedido, poderia me esclarecer sobre essas dificuldades.

Em sua escola eu poderia aprender o verdadeiro e correto conhecimento, ou até mesmo poderia crer - mesmo sem o compreender - naquilo que me afirmasse saber com certeza.

Talvez até ele me responderia com as seguintes palavras da Escritura: "Não procures saber o que excede a tua capacidade e não especules o que ultrapassa as tuas forças; mas creia sempre no que Deus te mandou".

Com gratidão, eu também acolheria esse conselho, pois não é de pouco proveito, nas coisas obscuras e incertas - e que não podemos compreender, adquirir a convicção clara e correta de que elas não devem ser investigadas, ou seja, convencer-se de que não é nocivo ignorar aquilo que se quer saber, imaginando que poderíamos tirar proveito em o saber.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Capítulo XVI

CAPÍTULO XVI


Tudo o que foi escrito até agora serve para resolvermos esta questão: como os mártires que se interessam pelas coisas humanas se manifestam, atendendo as nossas orações, uma vez que os mortos ignoram o que fazem os vivos?

Com efeito, sabemos, não por vagos rumores, mas por testemunhas dignas de fé, que o confessor Félix - cujo túmulo tu veneras piedosamente como santo asilo - deu não apenas mostras de seus benefícios, mas até de sua presença, ao aparecer aos olhos dos homens durante o cerco da cidade de Nola pelos bárbaros.

Esses fatos excepcionais acontecem graças à permissão divina e estão longe de entrar na ordem normalmente estabelecida para cada espécie de criatura.

Não podemos concluir pelo fato da água ter se transformado em vinho pela palavra do Senhor, que a água tenha poder de operar por si mesma essa transformação pela propriedade natural de seus elementos, visto que tratou-se de uma operação divina excepcional e até única!

Também o fato de Lázaro ter ressuscitado não significa que todo morto possa se levantar quando quiser ou que possa ser normalmente acordado como qualquer homem adormecido.

Uns são os limites do poder humano; outras são as marcas do poder divino.

Uns são fatos naturais; outros, miraculosos, ainda que Deus esteja presente na natureza para a manter na existência e a natureza tenha seu lugar inclusive para os milagres.

Assim, é necessário não crer que todos os defuntos - sem excessão - podem intervir nos problemas dos vivos apenas pelo fato de que os mártires tenham obtido curas ou prestado outros socorros.

É preciso compreender, ao invés, que é por causa do poder de Deus que os mártires intervêem nos nossos interesses, pois os mortos não possuem tal poder por sua própria natureza.

Há, porém, uma questão que ultrapassa os limites da minha inteligência: como os mártires, que sem sombra de dúvida socorrem seus devotos, aparecem... em pessoa e no mesmo momento? em vários lugares e afastados uns dos outros? sua ação se faz notar apenas onde se encontra o seu túmulo ou em qualquer outro lugar? se permanecem confinados na morada reservada a seus méritos, longe de qualquer relacionamento com os mortais, contentam-se em interceder pelas necessidades daqueles que lhes suplicam? oram da mesma forma que nós oramos pelos mortos, sem estar presentes e sem saber onde estão e o que fazem?

Não será Deus, o Deus onipotente e onipresente, que não se acha confinado em nós e muito menos afastado de nós, que atende as orações dos mártires, servindo do ministério dos anjos, cuja ação se estende sobre todas as coisas, para distribuir o consolo aos homens que Ele julga ser necessário para enfrentar as misérias da vida presente?

Não será Ele que, com poder admirável e infinita bondade, faz resplandecer os méritos dos mártires onde Ele o quer, quando quer, como quer, especialmente nos locais onde se ergueram suas sepulturas, por saber que a lembrança dos sofrimentos suportados em confissão a Cristo, nos é útil para nos confirmar na fé?

Repito: esta é uma questão muito elevada e complexa para mim, de forma que não a posso explicá-la a fundo...

Dessas duas hipóteses que indiquei, qual será a verdadeira?

Talvez os dois processos sejam empregados em conjunto, de maneira que, às vezes, os mártires nos atendem com sua presença pessoal, e, às vezes, por intermédio dos anjos que tomam a sua forma.

Não ouso decidir e preferiria esclarecer-me junto a homens sábios que conheçam o assunto.

Não digo que ignore ou imagine que saiba pois é impossível que não haja alguém que saiba porque Deus, em suas liberalidades, concede certos dons a alguns e outros dons a outros, conforme o ensino do Apóstolo que diz que a ação do Espírito Santo manifesta-se em cada um de acordo com uma utilidade comum.

Eis o que diz Paulo: "Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para utilidade de todos. A um, o Espírito dá a mensagem da sabedoria; a outro, a palavra da ciência segundo o mesmo Espírito; a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro, ainda, o único e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, o dom de falar em línguas; a outro, ainda, o dom de as interpretar. Mas tudo isso é realizado pelo único e mesmo Espírito, que distribui os seus dons a cada um conforme lhe apraz".

Ora, entre todos esses dons elencados pelo Apóstolo, quem recebeu o dom do discernimento dos espíritos é que conhece essas questões - que agora tratamos - da forma como é necessário conhecer.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Capítulo XV

CAPÍTULO XV


Convenhamos que os mortos ignoram o que acontece na terra, pelo menos no momento em que ocorrem.

Pode vir a conhecer mais tarde, por intermédio daqueles que vão ao seu encontro, uma vez falecidos.

Certamente, não ficam sabendo de tudo, mas apenas aquilo que lhe for autorizado saber e que têm necessidade de saber.

Os anjos, que velam sobre as coisas deste mundo, também podem lhes revelar alguns pontos que julguem convenientes a cada um, por Aquele que tudo governa, pois se os anjos não tivessem o poder de estarem presentes tanto na morada dos vivos quanto na dos mortos, o próprio Senhor Jesus não teria dito: "Aconteceu que o pobre [Lázaro] morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão".

Eles estão, assim, ora na terra, ora no céu, já que foi da terra que levaram aquele homem que Deus os confiou.

As almas dos mortos também podem conhecer alguns acontecimentos aqui da terra por revelação do Espírito Santo, acontecimentos estes cujo conhecimento seja necessário.

E isto não se restringe somente a fatos passados ou presentes, mas também futuros.

É assim que os homens - não todos, mas apenas os profetas - conheceram durante sua vida mortal, não todas as coisas, mas apenas aquelas que a Providência Divina julgava bom lhes revelar.

A Sagrada Escritura atesta-nos que alguns mortos foram enviados a certas pessoas vivas e, da mesma forma, algumas pessoas foram até a morada dos mortos: Paulo foi arrebatado até o Paraíso; e o profeta Samuel, após sua morte, apareceu a Saul, ainda vivo, e lhe predisse o futuro.

É bem verdade que alguns não admitem que tenha sido Samuel que apareceu, já que sua alma não acatava a tais procedimentos mágicos, como dizem.

Julgam, assim, que foi outro espírito que se submete a essa arte maléfica que se revestiu de uma imagem semelhante a dele.

Mas o livro do Eclesiástico, atribuído a Jesus, filho de Sirac - cujas semelhanças de estilo poderiam ser do próprio Salomão -, relata-nos um elogio aos Patriarcas onde afirma que "Samuel profetizou mesmo depois de morrer", e isto não poderia se referir a outra coisa a não ser essa aparição do defunto Samuel a Saul.

Alguém poderia discutir a autoridade desse livro, sob o pretexto de que não se encontra no cânon dos hebreus, mas existe um outro texto que nos convida a admitir esse envio de mortos aos vivos: trata-se da passagem das aparições de Moisés e Elias no [monte] Tabor.

O que dizer de Moisés, cujo livro do Deuteronômio nos certifica da sua morte, aparecendo vivo ao lado de Elias - que não morreu - como lemos no Evangelho?

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Capítulo XIV

CAPÍTULO XIV


Alguém me dirá por objeção: se os mortos não se interessam pelos vivos então porque aquele rico que passava tormentos no Inferno suplicou a Abraão para que enviasse Lázaro a seus cinco irmãos vivos, para convencê-los a mudar de vida e, assim, evitarem aquele lugar de sofrimentos?

Será que é possivel deduzir dessa passagem que ele sabia o que seus irmãos faziam ou sofriam nesse tempo?

Estava ele preocupado com os vivos, sem saber o que faziam, da mesma forma como nos preocupamos com os mortos, sem sabermos o que fazem?

Na verdade, se não nos interessássemos por eles, também não oraríamos na intenção deles.

Aliás, Abraão não enviou Lázaro à terra, mas respondeu ao condenado que seus irmãos tinham Moisés e os profetas; deveriam ouvi-los se desejassem escapara daqueles suplícios...

Neste ponto, pode-se novamente objetar: "como poderia Abraão ignorar o que se passava sobre a terra, já que sabia viver Moisés e os profetas, isto é, seus escritos, e que, seguindo-os, escapariam dos tormentos do Inferno?

Ele não sabia também que o rico havia gozado as delícias e que o pobre Lázaro vivera na miséria e no sofrimento, pois disse: 'Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida e Lázaro, por sua vez, os males'?

Logo, Abraão conhecia os fatos referentes aos vivos e não aos mortos".

É certo, mas esses fatos ele podia não ter conhecimento no momento em que ocorreram, mas após o falecimento dos dois e sob as indicações do próprio Lázaro.

Desse modo, a palavra do profeta não está desmentida: "Abraão não nos conheceu".

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Capítulo XIII

CAPÍTULO XIII


Por que não podemos atribuir a anjos essas operações permitidas pela Providência Divina, que sabe se servir sabiamente dos bons e dos maus, conforme a inescrutável profundidade de seus julgamentos?

Essas visões podem servir tanto para instruir quanto para enganar os vivos, para consolá-los ou assustá-los, sendo cada um tratado com misericórdia ou com rigor por aquele que a Igreja não celebra em vão "a misericórdia e a justiça".

Entenda como quiser isto que vou falar agora: se acaso os mortos intervissem nos problemas dos vivos, aparecendo-nos e falando-nos durante o sono, a minha piedosa mãe (para não falar de outras pessoas) não me abandonaria uma noite sequer, pois ela sempre me seguiu por terra e mar, sempre partilhou comigo a sua vida.

Para mim é difícil crer que uma vida mais feliz a tornou indiferente para comigo, a ponto de não mais me consolar nas tristezas, justo eu que fui seu grande amor e a quem ela jamais quis ver triste!

Certamente as palavras do Salmo são verdadeiras: "Meu pai e minha mãe me abandonaram, mas o Senhor me acolheu".

Ora, se os nossos pais nos abandonaram, como podem eles se interessarem por nossos problemas?

E se ficam indiferentes, que outros mortos poderiam se inquietar pelo que fazemos ou sofremos?

Assim declara o profeta Isaías: "Porque tu é que és o nosso Pai.

Abraão não nos conheceu, nem Israel soube de nós".

Se os grandes patriarcas desconheceram o destino do povo do qual eram a fonte e cuja raça saiu como fruto de sua fé em Deus, como seria possível aos mortos intervir, para conhecer e proteger nos negócios e empreendimentos dos vivos?

E como poderíamos declarar bem-aventurados os santos que morreram antes das nossas infelicidades se eles continuassem sensíveis às desolações da vida humana?

Acaso não estaríamos enganados se disséssemos que eles se encontram em um lugar de absoluta tranquilidade se porventura eles se inquietassem com a atormentada existência dos vivos?

O que significaria, então, esta promessa feita por Deus em benefício do piedoso rei Josias, de que ele morreria antes dos males que estavam para se abater sobre sua nação e seu povo, para que não sentisse tristeza de ver tal tragédia?

Eis a Palavra de Deus: "Direis ao rei de Judá que vos enviou a consultar o Senhor: 'Eis o que diz o Senhor Deus de Israel: como ouviste as palavras do livros e o teu coração se atemorizou a ponto de te humilhares diante do Senhor, após ouvir as palavras contra esta terra e seus habitantes, que virão a ser objeto de espanto e reprovação, e também por rasgardes as vestes e chorardes diante de Mim, eu te escutei - diz o Senhor - e por isso te farei descansar com teus pais e sereis sepultado em paz, para que teus olhos não vejam o mal que farei cair sobre esta terra".

Aterrorizado por essas ameaças de Deus, Josias chorou e rasgou suas vestes, mas a certeza de que sua morte precederia as desgraças que estavam por vir, bem como a certeza de que fora chamado a gozar a paz no repouso, sem ter que ver aqueles males, devolveram-lhe a serenidade da alma.

Portanto, as almas dos mortos encontram-se em um lugar onde não podem ver o que se passa ou acontece aos homens da terra.

E como poderiam partilhar das misérias dos vivos se estão a suportar as próprias penas, caso as tenham merecido, ou estão em paz repousando, como foi prometido a Josias?

Aí não sofrem nem por si, nem por outros, pois se livraram de todas as penas por suportarem a dor pessoal e a compaixão por outrem quando viviam sobre a terra.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Capítulo XII

CAPÍTULO XII


Algumas visões, ocorridas durante o estado de vigília, são semelhantes aos sonhos.

Acontecem a pessoas que estão com os sentimentos conturbados, como os frenéticos e os loucos de todo gênero.

Conversam consigo mesmos, como se falassem com outras pessoas presentes ou ausentes, vivas ou falecidas, cujas imagens aparecem-lhes à frente dos olhos.

Mas os vivos não sabem que essas pessoas imaginam estar conversando com eles, já que de fato não se encontram lá, nem falam nada.

Essas visões imaginárias surgem da perturbação dos sentidos.

Do mesmo modo, aqueles que já deixaram esta vida aparecem a pessoas que têm o cérebro perturbado, como se estivessem presentes, sendo que, de fato, não estão lá, mas bem longe, e nem supõem que alguém tenha percebido as suas imagens em uma visão imaginária.

Abordemos um outro fato semelhante: existem pessoas que ficam sem o domínio dos sentidos ainda mais do que ao dormir.

Absorvidas que ficam em suas visões imaginárias, julgam ver vivos e mortos.

Ao retornar ao uso da razão, declaram os nomes dos falecidos que viram, e as pessoas que os escutam acreditam que realmente tal fato se verificou.

Os ouvintes, contudo, não percebem que nessas mesmas visões apareceram pessoas vivas que não estiveram lá de verdade e que sequer souberam do ocorrido.

Isso aconteceu com um homem chamado Curma, habitante de Tullium, município próximo a Hipona, que era membro do Conselho Municipal, pequeno magistrado da aldeia e simples camponês.

Caindo doente, entrou em profundo estado de letargia e ficou como que morto durante vários dias; como exalava pouquíssimo ar pelas narinas, indicando um grau mínimo de vida, não foi sepultado; mas não mexia nenhum membro e seus olhos e outros sentidos permaneciam insensíveis a qualquer tipo de estímulo.

Mesmo assim, tinha visões como aqueles que dormem e as contou alguns dias depois, quando se libertou do sono.

Assim disse quando abriu os olhos: "Vão imediatamente à casa do Curma ferreiro e vejam o que está acontecendo por lá".

Ao chegarem lá, ficaram sabendo que esse Curma havia falecido no exato momento em que o primeiro saía do estado letárgico e retornava à vida com sentidos.

Interessados pelo ocorrido, os assistentes interrogaram-no e ele lhes disse que o Curma ferreiro havia recebido ordem de comparecer perante Deus no mesmo momento em que ele havia sido reenviado para este mundo.

Lá, no outro mundo que voltara, ficara sabendo que não era o Curma da Cúria Municipal que deveria se apresentar à mansão dos mortos, mas o Curma ferreiro.

Nas visões que teve durante os sonhos, o Curma da Cúria Municipal reconheceu entre os mortos alguns vivos que conhecera aqui, sendo tratados de acordo com os méritos que cada um teve durante a vida.

Eu talvez acreditaria nessa história se todas as pessoas que viu fossem realmente falecidas, isto é, se o doente não tivesse visto em seus sonhos outras pessoas que ainda vivem, como, por exemplo, clérigos da sua região e, entre outros, um padre que lhe disse para se batizar em Hipona, a quem ele respondeu: "Eu já fui batizado".

Portanto, em sua visão, ele percebera também padres, clérigos e eu mesmo, ou seja, seres vivos.

E entre estes, vira outros mortos.

Portanto, por que não havemos de crer que ele viu esses mortos da mesma forma como viu a nós, isto é, viu uns e outros sem que ninguém soubesse disso e estando todos eles distantes?

Pois tivera para si uma representação imaginária de pessoas e lugares; ele viu a propriedade onde aquele padre morava com seus clérigos, viu Hipona onde eu o tinha batizado - como alegara.

Mas, de fato, ele não estivera nesses lugares onde tinha a ilusão de ter estado; ele ignorava o que aí se fazia no momento da visão.

Se ele realmente tivesse estado ali, certamente saberia o que ali se fazia.

Portanto, foi uma espécie de visão em que os objetos não se apresentam como são na realidade, mas sob a sombra de suas imagens.

Finalmente, esse homem ainda contou que, na última das suas visões, ele fora levado ao Paraíso e lá lhe disseram, antes de o devolverem aos seus: "Ide e faze-te batizar se quiserdes um dia estar nesta morada de bem-aventurados".

Avisado de receber o batismo de minhas mãos, ele respondeu que já o recebera, mas a voz que lhe falava insistiu: "Ide e faze-te batizar realmente porque o teu batismo é imaginário".

Assim, após sua cura, ele veio a Hipona próximo do tempo da Páscoa; e fez-se inscrever na lista dos aspirantes [ao batismo], sendo desconhecido de mim e de muitos outros.

Não confiou suas visões a mim ou a outros padres...

Recebeu o batismo e, terminados os dias santos, retornou para a sua casa.

Fiquei sabendo da história dois anos depois - ou até mais - por um amigo comum que foi fazer uma refeição em minha casa, quando falávamos sobre esse tipo de assunto.

Mais tarde, consegui, depois de muita insistência, que me contasse a história, na presença de seus concidadãos, gente honrada, que se apresentaram como testemunhas da realidade dos fatos: a sua estranha doença, seus longos dias de morte aparente, o caso do outro Curma, ferreiro - conforme narrado acima -, enfim, todos os pormenores que se lembrava.

E todos testemunharam já terem ouvido essa narração de sua boca, à medida que ele a divulgava.

Conclui-se, assim, que ele vira seu batismo, a mim, Hipona, a basílica e o batistério não na realidade, mas na imagem, da mesma forma como vira outras pessoas vivas, sem que elas tenham percebido isto.

Logo, por que não admitir que ele viu os mortos sem que estes tenham percebido?

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Capítulo XI

CAPÍTULO XI


O homem é tão fraco que crê que viu a alma de alguém caso este morto lhe apareça em sonho.

Mas se sonha com uma pessoa viva, fica-se demonstrado que não viu nem o corpo nem a alma dela, mas somente a sua imagem, como se os mortos não pudessem aparecer do mesmo modo que os vivos, sob a forma de imagens semelhantes.

Eis a narração de um fato que ouvi em Milão: certo credor reclamava o pagamento de uma dívida e exibia a cautela assinada por um senhor recém-falecido ao seu filho, que ignorava que o pai havia efetuado o pagamento do empréstimo [antes de falecer].

O jovem, muito aborrecido, estranhava o fato de seu pai não ter-lhe falado nada sobre a existência dessa dívida, embora o testamento tenha sido feito.

Em sua extrema angústia, eis que vê o seu pai aparecer-lhe em sonho indicando o lugar onde se encontrava o recibo que anulava a cautela; ao encontrar o recibo, mostrou-o ao credor e anulou a reclamação mentirosa, recuperando o documento assinado que não fora devolvido a seu pai quando do pagamento da dívida.

Eis aí um fato em que se supõe que a alma do defunto tenha se preocupado com o seu filho, vindo a seu encontro enquanto dormia, para avisar-lhe o que este ignorava, livrando-o de uma séria preocupação.

Praticamente na mesma época em que me contaram esse fato, enquanto eu ainda residia em Milão, aconteceu a Eulógio, ótimo professor de Cartago e meu discípulo nessa arte, como ele mesmo me recordou, o seguinte acontecimento (que ele próprio me narrou quando retornei à África): ele estava fazendo um curso sobre as obras de Cícero e preparava uma lição sobre certa passagem obscura que não conseguia compreender.

Tal preocupação não o deixava dormir, mas eis que, de repente, eu lhe apareço durante o sono e explico-lhe as frases que lhe eram incompreensíveis.

Ora, certamente não era eu, mas a minha imagem - sem eu o saber!

Eu estava bem longe, do outro lado do mar, ocupado com um outro trabalho ou talvez dormindo, sem sentir qualquer tipo de preocupação com as dificuldades dele...

Como, então, se produziram tais fenômenos?
Não sei.

Mas seja como for, por que razão devemos acreditar que os mortos nos aparecem em sonhos, na mesma forma de imagem, como acontece com os vivos?

Uns e outros ignoram completamente serem objeto de aparições e também não se preocupam em saber para quem, onde e quando aconteceram.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Capítulo X

CAPÍTULO X


Também nos são relatadas várias aparições, que não podemos neglengenciar de abordar na presente dissertação.

Fala-se que certos falecidos manifestaram-se a pessoas vivas durante o sono ou através de outro modo.

E à essas pessoas, que ignoravam o lugar onde jazia os cadáveres insepultos, os mortos indicavam os lugares e pediam para que lhes providenciasse a sepultura da qual foram privados.

Dizer que tais visões são falsas parece-nos afrontar e contradizer testemunhos escritos de alguns autores cristãos, bem como a íntima convicção que têm as pessoas que testemunharam tais fatos.

Eis, portanto, a resposta mais sensata: não é necessário pensar que os falecidos agem na realidade, quando parecem dizer, indicar ou pedir em sonho aquilo que nos é relatado, pois muitas vezes as pessoas vivas também aparecem em sonhos, sem disso terem consciência.

E será dessas mesmas pessoas a quem apareceram nos sonhos que saberemos terem dito ou feito tal ou tal coisa durante a visão...

Portanto, alguém pode me ver, durante o sonho, anunciando certo acontecimento passado ou predizendo um fato futuro, sendo que eu mesmo ignore totalmente a coisa, sem poder questionar o próprio sonho que o outro teve, ou se ele estava acordado enquanto eu dormia, ou se ele dormia enquanto eu estava acordado, ou se nós dois estávamos dormindo ou acordados ao mesmo tempo ao ter ele o sonho em que me via.

Logo, o que há de estranho nos vivos verem os mortos em sonhos, que nada sabem ou sentem, dizendo certas coisas que, ao acordarem, percebem que são verdadeiras?

Eu estou mais inclinado a crer na mediação dos anjos, que receberiam do alto a permissão ou a ordem de se manifestarem em sonhos para indicar os corpos a serem enterrados, sendo que aqueles que viveram nesses corpos tudo ignoram a esse respeito.

Essas aparições podem ter sua utilidade, seja para o consolo dos vivos - que vêem a imagem dos seus falecidos queridos - seja para recordar aos homens o dever de humanidade que é o sepultamento dos falecidos.

Isso não traz auxílio para os mortos, mas a sua negligência poderia ser classificada de impiedade culposa.

Algumas vezes ocorrem visões que levam a cometer erros grosseiros aqueles que as tiveram.

Imaginemos alguém que teve o mesmo sonho que Enéas...

O poeta afirma ter visto no Inferno, em visão poética e falaciosa, a imagem de um morto que não fora sepultado e põe a mensagem na boca de Palinuro; e quando Enéas acorda, procura e encontra o corpo do defunto no exato lugar em que jazia, como soubera pelo aviso que teve no sonho, e o sepulta conforme o pedido que recebera no mesmo sonho.

Como a realidade era igual à que teve no sonho, passou a crer que é necessário sempre enterrar os mortos para que seja permitido às almas atingirem a sua última morada.

Sonhou, assim, que as leis do Inferno nos impedem de entrar na morada eterna enquanto os nossos corpos não recebem uma sepultura.

Ora, se algum homem adotar tal crença, não estará ele se afastando demais do caminho da Verdade?