quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Capítulo X

CAPÍTULO X


Também nos são relatadas várias aparições, que não podemos neglengenciar de abordar na presente dissertação.

Fala-se que certos falecidos manifestaram-se a pessoas vivas durante o sono ou através de outro modo.

E à essas pessoas, que ignoravam o lugar onde jazia os cadáveres insepultos, os mortos indicavam os lugares e pediam para que lhes providenciasse a sepultura da qual foram privados.

Dizer que tais visões são falsas parece-nos afrontar e contradizer testemunhos escritos de alguns autores cristãos, bem como a íntima convicção que têm as pessoas que testemunharam tais fatos.

Eis, portanto, a resposta mais sensata: não é necessário pensar que os falecidos agem na realidade, quando parecem dizer, indicar ou pedir em sonho aquilo que nos é relatado, pois muitas vezes as pessoas vivas também aparecem em sonhos, sem disso terem consciência.

E será dessas mesmas pessoas a quem apareceram nos sonhos que saberemos terem dito ou feito tal ou tal coisa durante a visão...

Portanto, alguém pode me ver, durante o sonho, anunciando certo acontecimento passado ou predizendo um fato futuro, sendo que eu mesmo ignore totalmente a coisa, sem poder questionar o próprio sonho que o outro teve, ou se ele estava acordado enquanto eu dormia, ou se ele dormia enquanto eu estava acordado, ou se nós dois estávamos dormindo ou acordados ao mesmo tempo ao ter ele o sonho em que me via.

Logo, o que há de estranho nos vivos verem os mortos em sonhos, que nada sabem ou sentem, dizendo certas coisas que, ao acordarem, percebem que são verdadeiras?

Eu estou mais inclinado a crer na mediação dos anjos, que receberiam do alto a permissão ou a ordem de se manifestarem em sonhos para indicar os corpos a serem enterrados, sendo que aqueles que viveram nesses corpos tudo ignoram a esse respeito.

Essas aparições podem ter sua utilidade, seja para o consolo dos vivos - que vêem a imagem dos seus falecidos queridos - seja para recordar aos homens o dever de humanidade que é o sepultamento dos falecidos.

Isso não traz auxílio para os mortos, mas a sua negligência poderia ser classificada de impiedade culposa.

Algumas vezes ocorrem visões que levam a cometer erros grosseiros aqueles que as tiveram.

Imaginemos alguém que teve o mesmo sonho que Enéas...

O poeta afirma ter visto no Inferno, em visão poética e falaciosa, a imagem de um morto que não fora sepultado e põe a mensagem na boca de Palinuro; e quando Enéas acorda, procura e encontra o corpo do defunto no exato lugar em que jazia, como soubera pelo aviso que teve no sonho, e o sepulta conforme o pedido que recebera no mesmo sonho.

Como a realidade era igual à que teve no sonho, passou a crer que é necessário sempre enterrar os mortos para que seja permitido às almas atingirem a sua última morada.

Sonhou, assim, que as leis do Inferno nos impedem de entrar na morada eterna enquanto os nossos corpos não recebem uma sepultura.

Ora, se algum homem adotar tal crença, não estará ele se afastando demais do caminho da Verdade?

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