quarta-feira, 31 de março de 2010

Questão XXIII - Da predestinação

QUESTÃO XXIII — DA PREDESTINAÇÃO


Depois de termos tratado da divina providência, devemos tratar da predestinação e do livro da vida. Sobre a predestinação, discutem-se oito artigos:
  1. Se convém a Deus a predestinação;
  2. Que é a predestinação e se introduz algo no predestinado;
  3. Se compete a Deus a reprovação de certos homens;
  4. Relação entre a predestinação e a eleição; a saber, se os predestinados são eleitos;
  5. Se os méritos são a causa ou a razão da predestinação, da reprovação ou da eleição;
  6. Da certeza da predestinação; isto é, se os predestinados se salvam infalivelmente;
  7. Se é certo o número dos predestinados;
  8. Se a predestinação pode ser auxiliada pelas preces dos santos.

ART. I. — SE OS HOMENS SÃO PREDESTINADOS POR DEUS


(I Sent., dist. XL, q. 1, a. 2; III Contr. Gent., cap. CLXIII; De Verit.; q. 6, a. 1; Ad Rom., cap. I, lect. III)

O primeiro discute-se assim. — Parece que os homens não são predestinados por Deus.

1. — Pois, Damasceno diz: Devemos saber que Deus tem presciência de tudo, mas nem tudo predetermina; assim tem presciência do que existe em nós, mas não o predetermina. Ora, os méritos e os deméritos estão em nós, por sermos senhores dos nossos atos, pelo livre arbítrio. Logo, o que pertence ao mérito ou ao demérito não é predestinado por Deus; e, assim, desaparece a predestinação do homem.

2. Demais. — Todas as criaturas se ordenam aos seus fins pela divina providência, como se disse (q. 22, a. 1, 2). Ora, não dizemos que as outras criaturas são predestinadas por Deus. Logo, nem os homens.

3. Demais. — Os anjos são capazes de felicidade, como os homens. Ora, aos anjos não convém serem predestinados, segundo parece, por não ter nunca havido miséria neles, e por implicar a predestinação o propósito da comiseração, como diz Agostinho. Logo, os homens não são predestinados.

4. Demais. — Os benefícios conferidos por Deus aos homens são revelados aos varões santos pelo Espírito Santo, conforme aquilo do Apóstolo (1 Cor 2, 12): Ora, nós não recebemos o espírito deste mundo, mas sim, o espírito que vem de Deus, para sabermos as coisas que por Deus nos foram dadas. Logo, sendo a predestinação um benefício de Deus, se Deus predestinasse os homens, os predestinados o saberiam, o que é evidentemente falso. Mas, em contrário, a Escritura (Rm 8, 30): E aos que predestinou, a estes também chamou.

SOLUÇÃO. — Convém a Deus predestinar os homens. Pois, tudo está sujeito à divina providência, como estabelecemos (q. 22, a. 2). Ora, à providência pertence ordenar as coisas para um fim, conforme dissemos (Ibid, 1). Mas, duplo é o fim ao qual se ordenam os seres criados. Um excede à proporção e à faculdade da natureza criada. Esse fim é a vida eterna, consistente na visão divina, que excede à natureza de toda criatura, como vimos (q. 12, a. 4). Outro é o fim proporcionado à natureza, que a criatura pode atingir em virtude dessa mesma natureza.

Ora, para um ser alcançar um fim, a que não pode chegar em virtude da sua natureza, é preciso ser levado por outro, assim como a seta é impelida ao alvo pelo seteiro. Por onde, propriamente falando, a criatura racional, capaz da vida eterna, atinge-a, como que levada por Deus. E a razão dessa levada preexiste em Deus, como nele existe a razão da ordem de todas as coisas para o fim, a que chamamos providência. Pois, a razão de uma coisa ser feita, existente na mente do seu autor, é uma certa preexistência, neste, daquela. Por onde, à razão da referida levada da criatura racional para o fim da vida eterna chama-se predestinação; pois, destinar é levar. Portanto, é claro que a predestinação, quanto ao seu objeto faz parte da providência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Damasceno chama predestinação à imposição da necessidade, como se dá com os seres naturais, que são predeterminados a um fim; o que é claro, pelo que acrescenta: Pois nem quer a malícia, nem compele à virtude. Por onde, não exclui a predestinação.

RESPOSTA À SEGUNDA. — As criaturas irracionais não são capazes de alcançar aquele fim excedente à faculdade da natureza humana. Por isso, não dizemos propriamente, que são predestinadas; embora, por abuso de linguagem, falemos às vezes de predestinação, relativamente a qualquer outro fim.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Ser predestinado convém aos anjos, como aos homens, embora aqueles nunca fossem pecadores. Pois, o movimento não se especifica pela sua origem, mas, pelo seu termo. Assim, para o embranquecimento, em si mesmo, não importa ter sido negro, pálido ou ruivo aquilo que embranquece. Semelhantemente, em nada importa para a predestinação, em si mesma, que um ser seja predestinado de um estado miserável ou não, à vida eterna. Todavia, podemos dizer, que conferir a alguém um bem superior ao que lhe é devido, é próprio, como vimos (q. 21, a. 3, ad 2; a. 4), à misericórdia.

RESPOSTA À QUARTA. — Embora, por especial privilégio, a certos lhes seja revelada a predestinação, contudo não convém que o seja a todos; porque então os que não são predestinados desesperariam, e a certeza dos predestinados geraria a negligência.

ART. II. — SE A PREDESTINAÇÃO ATRIBUI ALGUMA REALIDADE AO PREDESTINADO


(I Sent., dist. XL, q. 1, a. 1)

O segundo discute-se assim.

— Parece que a predestinação algo atribui ao predestinado.

1. — Pois, toda ação produz uma paixão. Logo, se a predestinação é, em Deus, ação, deve ser nos predestinados, paixão.

2. Demais. — Orígenes comentando aquilo de S. Paulo (Rm 1, 4) - O que é predestinado, etc., diz: A predestinação concerne ao que não existe, mas a destinação, ao que existe. E Agostinho: A predestinação é a destinação de um ser que existe. Logo, a predestinação só é própria a algum ser que existe; e, portanto, atribui uma realidade ao predestinado.

3. Demais. — A preparação é uma realidade no preparado. Ora, a predestinação é a preparação dos benefícios de Deus, como diz Agostinho. Logo, a predestinação é uma realidade nos predestinados.

4. Demais. — O temporal não entra na definição do eterno. Ora, a graça, que é algo de temporal, entra na definição da predestinação; pois dizemos que a predestinação é a preparação da graça, nesta vida, e a da glória na outra. Logo, a predestinação nada tem de eterno. Portanto e necessariamente, não existe em Deus, em quem tudo é eterno, mas nos predestinados.

Mas, em contrário, diz Agostinho, que a predestinação é a presciência dos benefícios de Deus. Ora, a presciência não está no seu objeto, mas no presciente. Logo, também a predestinação não está nos predestinados, mas no predestinador.

SOLUÇÃO. — A predestinação não é uma realidade nos predestinados, mas somente no predestinador. Pois, como dissemos (a. 1), faz parte da providência. Ora, a providência não está nas coisas que constituem o seu objeto, mas é uma razão existente no intelecto do provisor, segundo ficou estabelecido (q. 22 a. 1). Mas, a execução da providência, a que se chama governo, passivamente está nos governados e ativamente, no governador. Por onde, é manifesto, que a predestinação é uma certa razão da ordem de determinados seres para a salvação eterna, existente na mente divina. Porém, a execução dessa ordem incumbe aos predestinados, passivamente, e a Deus, ativamente. Pois, a execução da predestinação se chama vocação e glorificação, conforme a Escritura (Rm 8, 30): E aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também glorificou.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As ações transeuntes à matéria exterior produzem uma paixão; assim, a calefação e a ação de cortar. Não porém as ações imanentes no agente, como inteligir e querer, segundo dissemos (q. 14, a. 2; q. 18, a. 3, ad 1). E tal ação é a predestinação. Por onde, nada atribui aos predestinados; mas, a execução dela, transeunte às coisas exteriores, produz neles algum efeito.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Às vezes, a destinação é tomada como a missão real de alguém para um termo e neste sentido só tem destinação o que existe. Outras vezes, tem o sentido de missão, concebida mentalmente; e então se diz, que destinamos aquilo que com firmeza mentalmente propomos. E nesta acepção, diz a Escritura (2 Mc 6, 20): Eleazar resolveu (destinou) não admitir coisas ilícitas por amor da vida. E assim a destinação pode se referir ao que não existe. Contudo, a predestinação, em virtude da precedência, que importa, pode convir ao não existente como quer que deste se compreenda a destinação.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Há dupla preparação. Uma, a do paciente para sofrer, e essa, está no preparado. Outra, a do agente para agir, e essa está no agente. E tal é a predestinação, pela qual dizemos que um agente dotado de inteligência se prepara a agir, preconcebendo a razão da obra a realizar. E assim, Deus, concebendo a razão da ordem de alguns para a salvação, desde a eternidade preparou, predestinando.

RESPOSTA À QUARTA. — Não é como existente, por essência, que a graça entra na definição da predestinação. Mas enquanto esta diz respeito à graça, como a causa ao efeito e o ato ao objeto. Donde não se conclui que a predestinação seja algo de temporal.

ART. III. — SE DEUS REPROVA ALGUÉM


(I Sent., dist. XL, q. 4, a. 1; III Cont. Gent., cap. CLXIII; ad Rom., cap. IX, lect. II)

O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus não reprova ninguém.

1. — Pois, ninguém reprova a quem ama, segundo aquilo da Escritura (Sb 11, 25): Porque tu amas todas as coisas que existem e não aborreces nada de quanto fizeste. Logo, Deus não reprova ninguém.

2. Demais. — Se Deus reprova alguém, a reprovação necessariamente está para os reprovados, como a predestinação, para os predestinados. Ora, a predestinação é a causa da salvação dos predestinados. Logo, a reprovação é a da perdição dos réprobos. O que é falso, segundo a Escritura (Os 13, 9): A tua perdição, ó Israel, toda vem de ti; só em mim está o teu auxílio. Logo, Deus não reprova ninguém.

3. Demais. — A ninguém se lhe deve imputar o que não pode evitar. Ora, quem Deus reprovasse pereceria inevitavelmente, segundo a Escritura (Eccle 7, 14): Considera as obras de Deus; porque ninguém pode corrigir a quem ele desprezou. Logo, não se lhes pode imputar aos homens o perecerem, o que é falso. Logo, Deus não reprova ninguém. Mas, em contrário, a Escritura (Ml 1, 2-3): Eu amei a Jacó e aborreci a Esaú.

SOLUÇÃO. — Deus reprova certos homens. Porque, como dissemos (a. 1), a predestinação faz parte da providência. Ora, esta pode permitir alguns defeitos nas coisas que lhe estão sujeitas, segundo ficou estabelecido (q. 22, a. 2, ad 2). Por onde, como pela divina providência é que os homens alcançam a vida eterna, pode também ela permitir que certos não a alcancem. E a isto se chama reprovar. Se pois, a predestinação, concernente aos que Deus ordenou à salvação eterna, faz parte da providência, também o faz a reprovação, concernente aos que aberram do fim. Logo, reprovação não somente significa presciência, mas algo lhe acrescenta racionalmente, como a providência, conforme dissemos (q. 22, a. 1, ad 3). Assim, pois, como a predestinação inclui a vontade de conferir a graça e a glória, assim a reprovação a de permitir a incidência na culpa, e a de infligir a esta a pena do dano.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Deus ama a todos os homens, e mesmo a todas as criaturas, por lhes querer algum bem; mas, nem por isso quer a todos qualquer bem. Assim, aos que não quer o bem da vida eterna dizemos que os odeia ou reprova.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O causar da reprovação não é o mesmo que o da predestinação. Pois, esta é causa, tanto da glória esperada pelos predestinados na vida futura, como da graça recebida na vida presente. Aquela porém não é causa da culpa, na vida presente, mas sim do abandono de Deus. É, contudo, causa da pena eterna, que lhe é aplicada na vida futura. Ora, a culpa provém do livre arbítrio do reprovado, que é abandonado da graça. E assim se verifica o dito do Profeta: A tua perdição, ó Israel, vem de ti.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A reprovação de Deus não priva de nada a capacidade do reprovado. E assim, quando se diz que o reprovado não pode alcançar a graça, devemos entendê-lo não, por impossibilidade absoluta, mas condicional. No sentido em que dissemos acima, que necessariamente se salva o predestinado, por necessidade condicionada, que não tira a liberdade do arbítrio. Por onde, embora o reprovado por Deus não possa alcançar a graça, contudo, só por seu livre arbítrio é que cai em determinados pecados. O que merecidamente se lhe imputa por culpa.

ART. IV. — SE OS PREDESTINADOS SÃO ELEITOS POR DEUS


(I Sent., dist. XLI, a. 2; De Verit., q. 6, a. 2; ad Ram., cap. IX, lect. II)

O quarto discute-se assim. — Parece que não são os predestinados eleitos por Deus.

1. — Pois, Dionísio diz que assim como o sol material projeta luz em todos os corpos, sem os eleger, assim, Deus, a sua bondade. Ora, esta se comunica precipuamente aos participantes da graça e da glória. Logo, Deus comunica, sem eleição, a graça e a glória, o que constitui a predestinação.

2. Demais. — Elegemos o que existe. Ora, mesmo os seres que não existem são predestinados abeterno. Logo, certos são predestinados sem eleição.

3. Demais. — Eleição supõe discriminação. Ora, Deus quer que todos os homens se salvem, como está na Escritura (1 Ti 2, 4). Logo, na predestinação, que preordena os homens a que se salvem, não há eleição. Mas, em contrário, a Escritura (Ef 1, 4): Assim como nos elegeu mesmo antes do estabelecimento do mundo.

SOLUÇÃO. — O conceito de predestinação pressupõe a eleição, e esta, o amor. Porque, segundo dissemos (a. 1), a predestinação faz parte da providência. Ora, como a prudência, a providência é a razão existente no intelecto e que determina que certos seres se ordenem ao seu fim, como vimos (q. 22, a. 1). Ora, sem preexistir a vontade do fim, nada pode ser determinado a se ordenar para ele. Por onde, a predestinação de certos, a que se salvem, pressupõe racionalmente, que Deus lhes quer a salvação, o que inclui a eleição e o amor.

O amor, por querer-lhes Deus o bem da salvação eterna; pois, amar é querer um bem a alguém, como dissemos (q. 20, a. 2, 3). A eleição, por querer-lhes tal bem a uns de preferência a outros; pois, certos são reprovados, conforme vimos (a. 3). Mas a eleição e o amor não se exercem do mesmo modo em nós e em Deus. Porque a nossa vontade não causa o bem que ama; ao contrário, o bem preexistente é que nos incita a amá-lo. Por isso, elegemos a quem amamos. Por onde, em nós, a eleição precede o amor, mas o inverso se dá com Deus, cuja vontade, querendo bem a quem ama é causa de que este, de preferência a outro, possua esse bem. E portanto é claro que o amor, racionalmente, é anterior à eleição, e esta, à predestinação. Por onde, todos os predestinados são eleitos e amados.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Considerada em geral a comunicação da bondade divina, Deus a comunica sem eleição, porque nenhum ser há que, de algum modo, não participe dela, conforme dissemos (q. 6, a. 4). Mas, considerada a comunicação de um determinado bem, Deus não o concede sem eleição; pois, dá certos bens a uns, que não dá a outros. Por onde, é mister levar em conta a eleição, na atribuição da graça e da glória.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Necessariamente a eleição concerne ao que existe quando, como acontece conosco, a vontade é a ela provocada pelo bem preexistente realmente. Ora, em Deus não é assim, como vimos (In corp.; et q. 20, a. 2). E por isso, diz Agostinho: Deus, elegendo o que não existe, nem por isso erra.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como já vimos (q. 19, a. 6), Deus quer por vontade antecedente, que todos os homens se salvem; o que não é querer de modo absoluto, mas relativo. Mas, não o quer por vontade consequente, o que seria querer de modo absoluto.

ART. V. — SE A PRESCIÊNCIA DOS MÉRITOS É CAUSA DA PREDESTINAÇÃO


(I Sent., dist. XLI, a. 3; III Cont. Gent., cap. CLXIII; De Verit., q. 6, a. _ 2; in Ioan., cap. XV, lect. III ad Ram., cap. I, 1ect. III; cap. VIII, 1ect. VI; cap. IX, 1ect. III; ad Ephes., cap. 1, lect. I, IV)

O quinto discute-se assim. — Parece que a presciência dos méritos é a causa da predestinação.

1 - Pois, diz a Escritura (Rm 8, 29): porque os que ele conheceu na sua presciência também os predestinou. E àquilo do Apóstolo (Rm 9, 15) — Eu terei misericórdia com quem me aprouver, etc., diz a Glosa: Terei misericórdia com aquele que prevejo voltará a mim, de todo o coração. Logo, a presciência dos méritos é a causa da predestinação.

2. Demais. — A predestinação divina, sendo o propósito de se comiserar, como diz Agostinho, inclui a vontade divina, que não pode ser irracional. Ora, nenhum outro fundamento pode ter a predestinação senão a presciência dos méritos. Logo, esta é a causa ou a razão da predestinação.

3. Demais. — Como diz a Escritura (Rm 9, 14), não há injustiça em Deus. Ora, é injusto que a iguais se dêem coisas desiguais. Mas todos os homens são iguais por natureza e pelo pecado original; ao passo que a desigualdade deles se funda no mérito e no demérito dos próprios atos. Logo, só pela presciência dos diferentes méritos é que Deus prepara situações desiguais aos homens, predestinando e reprovando. Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Tt 3, 5): Não por obras de justiça que tivéssemos feito nós outros, mas, segundo a sua misericórdia, nos salvou. Ora, se nos salvou, nos predestinou à salvação. Logo, não é a presciência dos méritos a causa ou a razão da predestinação.

SOLUÇÃO. — Incluindo a predestinação a vontade, como dissemos (a. 3, 4), devemos perquirir a noção da predestinação, como perquirimos a da vontade divina. Ora, segundo ficou dito (q. 19, a. 5), não podemos descobrir nenhuma causa do ato de querer da divina vontade; mas podemos descobrir-lhe a razão de querer, relativamente às coisas queridas, enquanto Deus quer uma coisa por causa de outra. Ora, ninguém houve nunca, tão insano de mente, a ponto de dizer que os méritos, quanto ao ato do Predestinador, fossem a causa da divina predestinação. Mas o que se discute é saber se, relativamente ao efeito, a predestinação tem alguma causa. O que é o mesmo que indagar se Deus, pelos méritos de alguém preordenou dar-lhe o efeito da predestinação.

Ora, alguns disseram, que tal efeito se preordena a alguém por causa dos méritos preexistentes em outra vida. Tal foi a opinião de Orígenes, ensinando que as almas humanas, criadas desde o início, recebem, quando neste mundo unidas ao corpo, diversos estados correspondentes à diversidade das suas obras. Mas, esta opinião é rejeitada pelo Apóstolo, quando diz (Rm 9, 11-13): Porque não tendo elas ainda nascido, nem tendo ainda feito bem ou mal... não por respeito às suas obras, mas por causa da vocação de Deus lhe foi dito a ela: O mais velho, pois, servirá ao mais moço. Outros dizem, que os méritos preexistentes nesta vida são a causa e razão do efeito da predestinação. Assim, os Pelagianos ensinavam, que do bem fazer está em nós o início, mas, em Deus, a consumação. Donde resulta ser o efeito da predestinação dado a quem se preparou inicialmente, e recusado a qualquer outro.

Mas, contra esta opinião diz o Apóstolo (2 Cor 3, 5): Não que sejamos capazes de nós mesmos, de ter algum pensamento como de nós mesmos. Ora, não podemos descobrir nenhum princípio anterior ao pensamento. Por onde, não podemos dizer exista em nós algum início, razão do efeito da predestinação. E, por isso, opinaram outros, que os méritos consequentes ao efeito da predestinação é que são a razão dela. E querem dizer com isso, que Deus, tendo preordenado a dar a graça, e sabendo quem haverá de usar bem dela, a esse a dá. Como um rei que desse um cavalo ao soldado que soubesse haveria de usá-lo bem. — Mas estes distinguem entre o efeito da graça e o do livre arbítrio, como se não pudesse daquela e deste provir um mesmo efeito. Ora, é claro, que o resultado da graça, sendo o próprio efeito da predestinação, a este não lhe pode servir de causa, pois, nela se inclui. Logo, se alguma outra causa em nós causar a predestinação será diferente do efeito desta.

Mas não diferem os efeitos do livre arbítrio, dos da predestinação, como os da causa segunda não diferem dos da causa primeira. Pois como já dissemos (q. 22, a. 3), a divina providência produz os seus efeitos, mediante as operações das causas segundas. Por onde, o que fazemos por livre arbítrio provém da predestinação.

Devemos, pois, dizer que podemos considerar o efeito da predestinação à dupla luz. Primeiro, em particular. E assim, nada impede seja um efeito dela a razão de outro; o posterior, do anterior, na ordem da causa final; por seu lado, o anterior, do posterior, na ordem da causa meritória, que se reduz à disposição da matéria. Assim se disséssemos, que Deus preordenou haver de dar a alguém, por causa dos seus méritos, a glória; e que preordenou haver de dar a alguém a graça, para que merecesse a glória. De outro modo, podemos considerar o efeito da predestinação em geral. E então é impossível que todo o efeito da predestinação em geral tenha alguma causa dependente de nós. Pois tudo o que há no homem, ordenando-o à salvação, está compreendido no efeito da predestinação, até mesmo a preparação para a graça. E nem isto se opera senão por auxílio divino, conforme aquilo da Escritura: Converte-nos, Senhor, a ti, e nós nos converteremos.

Contudo, o efeito da predestinação neste sentido tem como causa a divina bondade, à qual se ordena como ao fim, na sua totalidade; e da qual procede, como do princípio primeiro motor.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O uso previsto da graça não é a razão de ela ser conferida, senão na ordem da causa final, como dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Em geral, o efeito da predestinação tem na própria bondade divina a sua razão. Em particular, porém, um efeito é a razão de outro, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Da própria bondade divina podemos deduzir a razão de serem uns predestinados e outros, reprovados. Pois, dizemos que Deus fez todas as coisas por causa da sua bondade, i. é, para que elas a manifestem. Ora, é forçoso que as criaturas, não podendo atingir a simplicidade divina, representem de maneira multiforme a una e simples divina bondade. Por isso, a bem do acabamento do universo, requerem-se diversos graus de seres, dos quais uns nele ocupam lugar preeminente e outros, ínfimo. E para que os seres conservem a variedade dos graus, Deus permite aconteçam certos males, para que se não impeçam muitos bens, como dissemos (q. 2, a. 3, ad 1; q. 22, a. 2). Consideremos, pois, todo o gênero humano, como consideramos a universalidade das coisas. Assim quanto aos homens, Deus quis mostrar a sua bondade, pela misericórdia, perdoando os predestinados e pela justiça, punindo os réprobos.

E esta é a razão de eleger Deus a uns e reprovar a outros; a qual assinala o Apóstolo quando diz (Rm 9, 22-23): Querendo Deus mostrar a sua ira, (i. é, a vindicta da justiça), e fazer manifesto o seu poder, sofreu (i. é, permitiu) com muita paciência, os vasos de ira aparelhados para a morte, a fim de mostrar as riquezas da sua glória, sobre os vasos de misericórdia, que preparou para a glória. E noutro lugar (2 Ti 2, 20): Ora, numa grande casa não há somente vasos de ouro e de prata, mas também vasos de pau e de barro; e uns por certo são destinados a usos de honra, outros, porém, a usos de desonra.

Mas, só a divina vontade é a razão da eleição de uns para a glória e da reprovação de outros. Por isso, diz Agostinho: Se não queres errar, não te metas a indagar porque Deus chama a si uns e não outros. Como também, apesar de a matéria prima ser toda e em si mesma uniforme, podemos, na ordem dos seres naturais, assinalar uma razão por que uma parte dessa matéria Deus a criou desde o princípio sob a forma de fogo, e outra, sob a de terra; e essa razão é a diversidade específica desses seres. Mas, só da simples vontade de Deus depende o ter esta parte da matéria uma forma, e aquela, outra. Como da simples vontade do artífice depende a posição de tal pedra nesta parte da parede e de tal outra, naquela; embora a arte exija que numa e noutra parte estejam algumas pedras.

Mas nem por isso Deus é injusto, por preparar coisas desiguais a seres desiguais. Pecaria ele contra a noção de justiça, se o efeito da predestinação fosse pago como um débito e não, dado de graça. Ora, o que alguém dá gratuitamente pode dá-lo a seu talante e sem lesar a justiça a quem lhe aprouver; mais ou menos, contanto que a ninguém prive do que é devido. E é o que diz o pai da família no Evangelho (Mt 20, 14-15): Toma o que te pertence e vai-te... não me é lícito fazer o que quero?

ART. VI. — SE A PREDESTINAÇÃO É CERTA


(I Sent., dist. XL, q. 3; De Vert., q. 6, a. 3; Quodl., XI, q. 3; XII, q. 3)

O sexto discute-se assim. — Parece que não é certa a predestinação.

1. — Pois, sobre aquilo do Apocalipse (Ap 3, 11): Guarda o que tens, para que ninguém tome a tua coroa, diz Agostinho: Outro não receberá se este não perder. Logo a coroa, efeito da predestinação, pode ser ganha e perdida; e, portanto, a predestinação não é certa.

2. Demais. — Do possível não pode resultar o impossível. Ora, é possível um predestinado, p. ex., Pedro, pecar, e em seguida ser morto. Dessa suposição resulta ficar frustrado o efeito da predestinação. Ora, isto não é impossível. Logo, não é certa a predestinação.

3. Demais. — Deus pode tudo o que pôde. Ora, podia não predestinar quem predestinou. Logo, pode atualmente não predestinar. Portanto, não é certa a predestinação.

Mas, em contrário, áquilo da Escritura (Rm 8, 29): — porque os que ele conheceu na presciência também os predestinou, etc. — diz a Glosa: A predestinação é a presciência e a preparação dos benefícios de Deus, pela qual com certeza se salvam os que se salvam.

SOLUÇÃO. — A predestinação certíssima e infalivelmente produz o seu efeito; todavia, não impõe necessidade, causando-o necessariamente. Pois, como dissemos (a. 1), a predestinação faz parte da providência. Ora, nem tudo o que desta depende é necessário, mas certos efeitos se realizam contingentemente, segundo a condição das causas próximas, que a providência ordenou para eles. Contudo, conforme demonstramos (q. 22, a. 4), é infalível a ordem da providência. Por onde, também é certa a ordem da predestinação, que porém não elimina o livre arbítrio do qual provém contingentemente o efeito daquela. — E, nesta questão, também devemos relembrar o que antes dissemos (q. 14, a. 13; q. 19, a. 8), que embora certíssimas e infalíveis, a ciência e a vontade divinas não tiram às causas a contingência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — De dois modos dizemos que tem alguém uma coroa. De um modo, pela predestinação divina, e então ninguém perde a sua coroa. De outro, pelo mérito da graça, pois, o merecido, de certa maneira, é nosso; e então, como consequência do pecado mortal, podemos perder a coroa. Mas outro recebe a coroa perdida, subrogado no lugar de quem a perdeu. Pois, Deus não permite a queda de uns sem lhes substituir outros, segundo a Escritura (Jó 34, 24): Ele destruirá a sua inumerável multidão e porá outros em seu lugar. Assim, os homens substituíram os anjos decaídos, e os Gentios, os Judeus. E o substituto em estado de graça também recebe a coroa, no sentido em que gozará, na vida eterna, dos bens que o outro praticou; pois, nessa vida, gozaremos do bem praticado tanto por nós mesmos, como por outros.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora, em si considerado, seja possível o predestinado morrer em pecado mortal, todavia tal é impossível, uma vez que é predestinado. Donde não se segue, que a predestinação pode falhar.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Incluindo a predestinação a divina vontade, assim como já dissemos ser necessário (q. 19, a. 3), por suposição, por causa da imutabilidade dessa vontade, mas não absolutamente, que Deus queira uma determinada criatura, assim o mesmo devemos dizer a propósito da predestinação. Por onde, não devemos dizer que Deus possa não predestinar quem predestinou, entendendo-o num sentido composto; embora, absolutamente falando, Deus possa predestinar ou não; o que, porém, não destrói a certeza da predestinação.

ART. VII. — SE É CERTO O NÚMERO DOS PREDESTINADOS


(I Sent., dist. XL, q. 3; De Verit., q. 6, a 4)

O sétimo discute-se assim. — Parece que não é certo o número dos predestinados.

1. — Pois, não é certo o número que podemos aumentar. Ora, o número dos predestinados podemos aumentá-lo, como diz a Escritura (Dt 1, 11): O Senhor Deus... ajunte a este número muitos milhares. E a Glosa: Isto é, um número definido para Deus, que conhece os que o compõem. Logo, não é certo o número dos predestinados.

2. Demais. — Não se pode dar a razão porque Deus preordenou à salvação um número de homens, de preferência a outro. Ora, Deus nada faz sem razão. Logo, não foi preordenado por ele o número certo dos que se devem salvar.

3. Demais. — A obra de Deus é mais perfeita que a da natureza. Ora, nas obras desta, o bem se manifesta quase sempre; e, em poucos casos, a falha é o mal. Se, pois, Deus instituísse um número certo dos que se deveriam salvar, mais numerosos deveriam ser os que se salvassem que os que se condenassem. Mas, a Escritura diz o contrário (Mt 7, 13-14): Larga é a porta e espaçoso é o caminho que guia para a perdição e muitos são os que entram por ela. Que estreita é a porta e que apertado o caminho que guia para a vida! E que poucos são os que acertam com ele! Logo, não foi preordenado por Deus o número dos que se devem salvar.

Mas, em contrário, diz Agostinho: É certo e não pode aumentar, nem diminuir o número dos predestinados.

SOLUÇÃO. — O número dos predestinados é certo. Alguns porém disseram que o é formal, mas não materialmente. Como p. ex., se disséssemos ser certo que cem ou mil se salvarão, mas não estes ou aqueles. Ora, esta opinião destrói a certeza da predestinação, de que já tratamos (a. 6). E portanto devemos dizer que, para Deus, o número dos predestinados é certo, não só formal, mas ainda, materialmente. Devemos, porém advertir, que afirmamos ser certo o número dos predestinados para Deus, não só em razão do conhecimento, porque sabe quantos devem salvar-se; pois, assim, também sabe ao certo o número das gotas da chuva e da areia do mar; mas, em razão de uma certa eleição e determinação.

Para evidenciá-lo devemos saber, que todo agente busca produzir um efeito finito, como resulta do que dissemos sobre o infinito (q. 7, a. 4). Ora, quem busca uma medida determinada, no efeito que produz, procura um certo número, nas partes essenciais dele, necessárias para a perfeição do todo; não escolhe determinado número, em si mesmo, nas partes exigidas não principalmente, mas em razão de outras; e só as toma em número tal que seja necessário por causa dessas outras. Assim, um construtor escolhe a medida determinada da casa, e mesmo o número determinado dos compartimentos que nela quer fazer, bem como o das dimensões da parede ou do teto; mas, não escolhe o número determinado das pedras, senão que as toma tantas quantas bastem a construir a parede, nas suas dimensões demarcadas.

Ora, o mesmo devemos dizer de Deus, em relação a todo o universo que é seu efeito. Assim, Deus lhe preordenou as dimensões e o número conveniente das suas partes essenciais, as quais se ordenam, de certo modo, à perpetuidade: quantas esferas, quantas estrelas, quantos elementos, quantas espécies de seres. Mas, os indivíduos corruptíveis se ordenam ao bem do universo, não principal, mas, secundàriamente, enquanto conservam o bem da espécie. Por isso, embora Deus saiba deles todos o número certo, não preordenou contudo, em si, o número dos bois ou dos mosquitos ou de seres semelhantes, que a sua divina providência somente cria na medida bastante à conservação das espécies.

Ora, dentre todas as criaturas, ordenam-se principalmente ao bem do universo as racionais, como tais incorruptíveis; sobretudo as que, alcançando a beatitude, mais imediatamente atingem o fim último. Por onde, o número dos predestinados é certo, para Deus, não somente em razão do conhecimento, mas também em razão de uma certa e principal predeterminação. O que porém de nenhum modo se dá com o número dos réprobos, que Deus preordenou ao bem dos eleitos, aos quais todas as causas lhes contribuem para seu bem. Quanto ao número de todos os predestinados — tantos homens se salvarão quantos os anjos decaídos, dizem uns; quantos os anjos fiéis, dizem outros; não somente quantos os decaídos, mas mesmo, quantos os anjos criados, dizem ainda outros. Mas, é melhor pensar, que só Deus sabe o número dos eleitos à suprema felicidade (como está na Coleta pelos vivos e defuntos).

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O lugar citado do Deuteronômio deve ser entendido dos que são prenotados por Deus, relativamente à justiça presente. Ora, o número deles aumenta e diminui; mas não o dos predestinados.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A noção da quantidade da parte se deduz da sua proporção com o todo. E assim, a razão porque Deus fez tantas estrelas, e tantas espécies de seres e tantos predestinou, é a proporção das partes principais com o bem do universo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O bem proporcionado ao estado comum da natureza se realiza em muitos seres e falha em poucos. Mas, o contrário se dá com o bem excedente a esse estado comum. Assim, a ciência suficiente para administrar a própria vida muitos a têm, e os poucos que dela carecem se chamam tolos ou estultos; são porém pouquíssimos em relação aos outros os que atingem à ciência profunda das coisas inteligíveis. Ora, consistindo na visão de Deus, a eterna beatitude excede o estado comum da natureza, sobretudo porque a graça se perdeu pela corrupção do pecado original, e por isso poucos se salvam. E aqui refulge por excelência a misericórdia de Deus, elevando alguns à salvação, que muitos não alcançam abandonados ao curso comum e inclinação da natureza.

ART. VIII. — SE A PREDESTINAÇÃO PODE AJUDAR-SE DAS PRECES DOS SANTOS


(I Sent., dist. XLI, a. 4; III, dist. XVII, a. 3, qª 1, ad 3; IV, dist. XLV, q. 3, a. 3, ad 5; De Verit., q. 6, a. 6)

O oitavo discute-se assim. — Parece que a predestinação não pode ajudar-se das preces dos santos.

1. — Pois, nada do que é eterno pode ser precedido pelo temporal; e por conseqüência, não pode o temporal contribuir para a existência do eterno. Ora, a predestinação é eterna. Logo, sendo temporais, as preces dos santos não podem contribuir para ninguém ser predestinado. Por onde, a predestinação não é ajudada pelas preces dos santos.

2. Demais. — Ninguém, senão por falta de conhecimento, precisa de conselho, assim como nada, senão por falta de virtude, precisa de auxílio. Ora, nada disto convém a Deus predestinador; donde o dizer a Escritura (Rm 11, 34): Quem ajudou o espírito do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Logo, a predestinação não se pode ajudar das preces dos santos.

3. Demais. — O que pode ser ajudado também pode ser impedido. Ora, de nenhum modo pode a predestinação ser impedida. Logo, nem pode ser de ninguém ajudada.

Mas, em contrário, a Escritura (Gn 25, 21): E orou Isaque por sua mulher ... ao Senhor, o qual ... permitiu que Rebeca concebesse. Ora, dessa concepção nasceu Jacó, que foi predestinado. Mas não se cumpriria a predestinação se não tivesse nascido. Logo, a predestinação pode ajudar-se das preces dos santos.

SOLUÇÃO. — Houve diversos erros sobre essa questão. — Uns, atendendo à certeza da divina predestinação, disseram, que são supérfluas as orações e tudo o mais que se faça para alcançar a salvação eterna; porque, feitas tais coisas ou não, os predestinados se salvam e não se salvam os réprobos. Mas, tal opinião vai contra todas as advertências da Sagrada Escritura, exortando à oração e a outras boas obras. Outros, porém, disseram, que, pelas orações muda-se a divina predestinação. E tal se diz ter sido a opinião dos Egípcios, ensinando que a ordenação divina, a que chamavam fado, pode ser impedida por alguns sacrifícios e orações. — Mas também contra esta opinião é a autoridade da Sagrada Escritura (1 Rg 15, 29): Mas o triunfador em Israel não perdoará e nem se dobrará pelo arrependimento; e (Rm 11, 29): os dons e a vocação de Deus são imutáveis.

Por onde, devemos dizer, de outro modo, que duas coisas se devem considerar na predestinação; a preordenação divina em si mesma e seu efeito. Quanto àquela, de maneira alguma pode a predestinação ajudar-se das preces dos santos. Pois, estas não fazem com que ninguém seja predestinado por Deus. Quanto ao efeito, dizemos que a predestinação se ajuda das preces dos santos e de outras boas obras. Porque a Providência, da qual ela faz parte, não elimina as causas segundas, mas prevê o efeito de maneira tal que mesmo a ordem das causas segundas se lhe sujeite.

Assim como, pois, da providência dependem os efeitos naturais, de modo que mesmo as causas naturais se ordenem a esses efeitos, sem as quais estes não poderiam existir, assim também, quando Deus predestina a salvação de alguém, entra também na ordem da predestinação tudo o que tal pessoa faça para salvar-se, como as orações ou outros bens, e causas semelhantes, próprias ou de outrem, sem as quais ninguém alcançará a salvação. Por isso, os predestinados devem se esforçar por bem agir e orar, porque, de tal modo se cumpre com certeza o efeito da predestinação. Donde o dito da Escritura (2 Pd 1, 10): Ponde cada vez maior cuidado em fazerdes certa a vossa vocação e eleição por meio das boas obras.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção mostra que a predestinação não se pode ajudar das preces dos santos, quanto à preordenação em si mesma.

RESPOSTA À SEGUNDA. — De duplo modo dizemos que alguém é ajudado por outrem. De um modo, quando dele recebe auxílio; o que, sendo próprio do fraco, não convém a Deus. E nesse sentido que se deve entender o lugar: Quem ajudou o espírito do senhor? De outro modo, dizemos que alguém é ajudado por outrem, quando este lhe executa a obra; assim, o senhor é ajudado pelo criado. E deste modo Deus é de nós ajudado, quando lhe executamos a ordem, segundo a Escritura (1 Cor 3, 9): Porque nós outros somos uns cooperadores de Deus. Nem é isto por defeito da divina virtude, mas porque ela usa de causas intermédias para conservar nas coisas a beleza da ordem e também para comunicar às criaturas a dignidade causal.

RESPOSTA À TERCEIRA. — As causas segundas não podem, como vimos (q. 19, a.6; q. 22, a. 2, ad 1), escapar à ordem da causa primeira universal; antes, elas a executam. Por onde, a predestinação pode ser ajudada, mas não impedida pelas criaturas.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Questão XXII - Da providência de Deus

QUESTÃO XXII — DA PROVIDÊNCIA DE DEUS


Depois de havermos tratado do que pertence absolutamente à vontade, devemos passar a tratar do que concerne simultaneamente ao intelecto e a vontade, a saber: da providência, a respeito de todos os seres; da predestinação, da reprovação e do que delas depende, em relação especialmente ao homem, em ordem à salvação eterna. Pois, a ciência moral, após tratar das virtudes morais, trata da prudência, à qual pertence à providência.

Ora, sobre a providência de Deus discutem-se quatro artigos:

  1. Se a Deus convém à providência;
  2. Se todos os seres estão sujeitos à divina providência;
  3. Se a divina providência cura de todos os seres imediatamente;
  4. Se a providência divina impõe necessidade aos seres que dela são objeto.

ART. I. — SE A PROVIDÊNCIA CONVÉM A DEUS


(I Sent., dist. XXXIX, q. 2; De Verit., q. 5, a. 1, 2)

O primeiro discute-se assim. — Parece que a providência não convém a Deus.

1. — Pois, segundo Túlio, a providência faz parte da prudência. Ora, o papel da prudência sendo aconselhar o bem, como diz o Filósofo, não pode convir a Deus, que, não tendo dúvidas, não precisa de conselho. Logo, a Deus não convém à providência.

2. Demais. — Tudo em Deus é eterno. Ora, a providência concernente aos seres não eternos, como diz Damasceno, não é eterna. Logo, em Deus não há providência.

3. Demais. — Nenhuma composição há em Deus. Ora, a providência, incluindo em si a vontade e o intelecto, parece ser composta. Logo, em Deus não há providência.

Mas, em contrário, a Escritura (Sb 15, 3): Mas a tua providência, ó Pai, é a que governa todas as coisas.

SOLUÇÃO. — É necessário admitir a providência em Deus. Pois, todo bem existente nas coisas foi criado por Deus, como demonstramos (q. 6 a. 4). Ora, o bem existe, não só na substância delas, mas ainda, no ordenarem-se para o fim e, sobretudo, para o fim último, que é a bondade divina, segundo estabelecemos (q. 21, a. 4). Logo, o bem da ordem, existente nas criaturas, foi criado por Deus. Mas, Deus é a causa dos seres, pelo seu intelecto; portanto, é necessário, como vimos (q. 15, a.2; q. 19, a. 4), que a razão de qualquer efeito seu nele preexista. Por onde, também necessàriamente a razão da ordem das coisas para o fim há de preexistir na mente divina. Ora, a razão de se ordenarem os seres para um fim se chama propriamente providência. Pois, é parte principal da prudência, à qual se ordenam duas outras partes — a memória das causas passadas e a inteligência das presentes; porque, lembrando o passado e inteligindo o presente é que conjecturamos sobre a providência do futuro.

Ora, é próprio da prudência, segundo o Filósofo, ordenar as causas para um fim. Quer em relação a nós mesmos chamando-se então prudente o homem que ordena bem os seus atos para o fim da sua vida; quer em relação a outros que nos estão sujeitos, na família, na cidade ou na república. E, nesta acepção, a Escritura diz (Mt 24, 25): O servo fiel e prudente a quem seu senhor pôs sobre sua família. Ora, neste sentido, a prudência ou providência pode convir a Deus. Pois, Deus sendo o fim último, nada tem que se ordena a outro fim. Por isso, chamamos providência divina à razão da ordem dos seres para um fim. Donde o dizer Boécio, que a providência é a mesma razão divina própria ao sumo de todos os chefes, a qual tudo dispõe. Ora, disposição tanto pode chamar-se à razão da ordem dos seres para um fim, como à da ordem das partes no todo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Segundo o Filósofo, a prudência propriamente ordena o que a eubulia aconselha retamente, e a sínese retamente julga. Donde, embora o conselho, sendo uma indagação sobre o que é duvidoso, não convenha a Deus, contudo, cabe-lhe preceituar sobre as coisas que devem ordenar-se para um fim e das quais tem a razão reta, conforme aquilo da Escritura (Sl 148, 6): Preceito pôs e não se quebrantará. E, deste modo convém a Deus, essencialmente, a prudência e a providência. Entretanto, também podemos dizer, que a própria razão das coisas a serem feitas se chama, em Deus, conselho; não por causa da indagação, mas, pela retidão do conhecimento, à qual chegam os que tomam conselho, perquirindo. Daí o dito da Escritura (Ef 1, 11): Aquele que obra todas as coisas segundo o conselho da sua vontade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Ao cuidado da providência duas coisas pertencem: a razão da ordem, que se chama providência, e a disposição e execução dela, que se chama governo. Aquela é eterna, esta, temporal.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A providência pertence ao intelecto, mas pressupõe a vontade do fim. Pois ninguém ordena o que deve fazer, em vista de um fim, sem conhecê-la. Por isso, a prudência pressupõe as virtudes morais, pelas quais o apetite busca o bem. E, contudo, se a providência concernisse igualmente à vontade e ao intelecto divino, seria sem nenhum detrimento da divina simplicidade, porque, em Deus, vontade e intelecto são idênticos, como vimos (q. 19, a. 1).

ART. II. — SE TODOS OS SERES ESTÃO SUJEITOS À PROVIDÊNCIA DIVINA


(Infra, q. 102, a. 5; I Sent., dist. XXXIX, q. 2, a. 2; III Cont. Gent., cap. I, LXIV, LXXV, XCIV; De Verit., q. 5, a. 2" sqq.; Compend. Theol., cap. CXXIII. CXXX, CXXXII; Opusc. XV. De Angelis, cap. XIII, XIV, XV; De Divin. Nom. cap. III. lect. I)

O segundo discute-se assim. — Parece que nem todos os seres estão sujeitos à providência divina.

1. — Pois, nenhum objeto da providência é fortuito. Logo, se Deus providencia sobre tudo, nada será fortuito, não havendo assim acaso e sorte; o que vai contra a opinião geral.

2. Demais. — Todo provedor sábio procura, na medida do possível, excluir o defeito e o mal das coisas que administra. Ora, vemos que existem muitos males nas coisas. Logo, Deus, ou não os pode impedir, e não é onipotente, ou não cura de todos os seres.

3. Demais. — O que se realiza necessariamente não requer providência ou prudência. Por isso, conforme o Filósofo, a prudência é a razão reta acerca das coisas contingentes, que supõe conselho e eleição. Por onde, muitas coisas, realizando-se necessariamente, nem todas dependem, portanto da providência.

4. Demais. — Quem depende de si próprio não depende da providência de nenhum governador. Ora, os homens fê-los Deus dependerem de si próprios, conforme a Escritura (Ecle 15, 14): Deus criou o homem desde o princípio, e o deixou na mão do seu conselho. E especialmente os maus, segundo ainda o mesmo (Sl 80, 13): E os abandonou segundo os desejos do seu coração. Logo, nem todos os seres estão submetidos à divina providência.

5. Demais. — Diz o Apóstolo (1 Cor 9,9): Acaso tem Deus cuidado dos bois? Ora, pela mesma razão não o tem das outras criaturas irracionais. Logo, nem todos os seres estão submetidos à divina providência.

Mas, em contrário, diz a Escritura, da divina sapiência (Sb 8, 1): Ela, pois, toca desde uma extremidade até a outra com fortaleza, e dispõe todas as causas com suavidade.

SOLUÇÃO. — Certos como Demócrito e os epicuristas, pensando ser o mundo obra do acaso, negaram totalmente a providência. Outros disseram que estão sujeitos à providência só os seres incorruptíveis. E também os corruptíveis, não individual, mas especificamente, pois, como tais, são incorruptíveis. É representando a opinião desses que Jó diz (Jó 22, 14): Nas nuvens está escondido, nem tem cuidado das nossas causas, e passeia pelos pólos do céu. Mas Rabi Moisés, que da generalidade dos seres corruptíveis excetua os homens, pelo esplendor do intelecto, de que participam, segue a opinião dos outros quanto aos demais indivíduos corruptíveis.

É necessário, porém, admitir que todos os seres estão sujeitos à divina providência, não só universal, mas também singularmente. O que assim se demonstra. Todo agente agindo para um fim, a ordenação dos efeitos para o fim é proporcional à extensão da causalidade do agente primeiro. E quando, nas obras de um agente, o efeito não se ordena ao fim, é que tal efeito resulta de alguma outra causa contra a intenção do agente. Ora, a causalidade de Deus, agente primeiro, se estende a todos os seres, tanto corruptíveis como incorruptíveis, e não só quanto aos princípios da espécie, mas também quanto aos indivíduos. Por onde, tudo o que tem de algum modo o ser foi necessàriamente ordenado por Deus a um fim, segundo a Escritura (Rm 13,1): E as (potestades) que há, essas foram por Deus ordenadas. E sendo a providência de Deus a razão da ordem das coisas para o fim, como dissemos (a. 1), todos os entes estão necessàriamente sujeitos à providência divina na medida mesma em que participam do ser.

E, do mesmo modo, já demonstramos (q. 14 a. 11) que Deus, conhece tudo, tanto o universal como o particular. E estando o seu conhecimento para as coisas, como o conhecimento da arte para o artificiado, como dissemos (Ibid., a. 8), necessariamente tudo há-de depender da sua ordem, como todos os artificiados dependem da ordem da arte.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Uma é a ordem da causa universal e outra, a da particular. Pois, é possível escapar-se à ordem desta, mas não à daquela. Um efeito escapa à ordem de uma causa particular só por outra causa particular impediente; p. ex., a ação da água impede a combustão da madeira. Mas, incluindo-se todas as causas particulares na causa universal, é impossível qualquer efeito escapar à ordem desta. Donde o chamar-se casual ou fortuito, em relação à uma causa particular, o efeito que lhe escapa à ordem. Mas, em relação à causa universal, à qual não pode subtrair-se, diz-se que tal efeito foi previsto. Assim, o encontro de dois escravos, embora casual, quanto a eles, foi contudo previsto pelo senhor, que cientemente os mandou a um determinado lugar, sem que um soubesse do outro.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O que se dá com o que cura de uma causa particular não se dá com o provisor universal. Pois, o provisor particular exclui, na medida do possível, a deficiência do que lhe está sujeito aos cuidados; mas o provisor universal, se permite algum defeito num ser particular, é para não ficar impedido o bem do todo. Por isso, dizemos que as corrupções e deficiências dos seres naturais são contrárias à natureza particular, embora estejam na intenção da natureza universal, porque o defeito de um ser contribui para o bem de outro, ou mesmo de todo o universo; pois a corrupção de um ser é a geração de outro, pela qual se conserva a espécie.

Ora, sendo Deus o provisor universal de todos os entes, é próprio à sua providência permitir certos defeitos, em certos seres particulares, a fim de que não se impeça o bem perfeito do universo. Porquanto muitos bens faltariam ao universo se impedissem todos os males. Assim não seria possível a vida do leão, sem a morte de outros animais; nem existiria a paciência dos mártires, sem a perseguição dos tiranos. Por isso, diz Agostinho: Deus onipotente de nenhum modo permitiria o mal nas suas obras se não fosse tão poderoso e bom, para tirar o bem, mesmo do mal. E os que subtraíram à divina providência os seres corruptíveis, sujeitos ao acaso e ao mal, foram sem dúvida levados pelas duas objeções, ora resolvidas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O homem não é o instituidor da natureza, mas usa das causas naturais, nas obras da arte e da virtude. Por isso a providência humana não se estende aos seres naturais necessários, a que, entretanto, se estende a providência de Deus, autor da natureza. E foram levados sem dúvida pela objeção formulada os que subtraíram à divina providência o curso dos seres naturais, atribuindo-a a lei da matéria, como Demócrito, e outros físicos antigos.

RESPOSTA À QUARTA. — Dizer-se que Deus entregou o homem a si próprio não exclui a divina providência, mas significa que não lhe foi infundida uma virtude operativa, determinada a um só termo, como o foi aos seres naturais. Pois, estes são levados e como dirigidos por outro ser para o fim que lhes é próprio, e não agem por si mesmos, dirigindo-se a si mesmos para esse fim, como o fazem as criaturas racionais, pelo livre arbítrio, pelo qual aconselham e elegem. Donde o dito expressivo da Escritura: na mão do seu conselho. Mas reduzindo-se a Deus, como à causa, os atos mesmos do livre arbítrio necessariamente estão sujeitos à divina providência; pois a providência humana se inclui na divina como a causa particular, na universal.

Mas a providência de Deus se estende de modo mais excelente aos justos, que aos ímpios, não permitindo que contra eles aconteça o que possa, afinal, impedir-lhes a salvação; pois os que amam a Deus todas as coisas lhes contribuem para seu bem. Porém, por isso mesmo que não livra os ímpios do mal da culpa, dizemos que os abandona; não que sejam por isso totalmente excluído da sua providência; pois se não fossem conservados pela sua providência, voltariam ao nada. E foi sem dúvida esta a razão que levou Túlio a subtrair à divina providência as coisas humanas, sobre as quais exercemos o nosso conselho.

RESPOSTA À QUINTA. — A criatura racional sendo, pelo livre arbítrio, senhora de seus atos, como dissemos (resp. ao arg. prec. e q. 19, a. 10), está sujeita de maneira especial à divina providência, de modo que Deus lhe imputa por culpa ou mérito o que ela faz, e lhe atribui a pena ou o prêmio. E é porque Deus, segundo o Apóstolo, não cura dos bois; sem querer com isso dizer que as criaturas irracionais não dependam individualmente da providência de Deus, como pensava Rabi Moisés.

ART. III. — SE DEUS PROVIDENCIA IMEDIATAMENTE SOBRE TODOS OS SERES


(Infra , q. 103, a. 6; III Cont. Gent., cap. LXXVI, LXXVII, LXXXIII, XCIV; Compend. Theol., cap. CXXX, CXXXI; Opusc. XV, De Angelis., cap. XIV)

O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus não providencia imediatamente sobre todos os seres.

1. — Pois, devemos atribuir a Deus toda dignidade. Ora, é próprio da dignidade real ter ministros, mediante os quais exerça a providência sobre os seus súditos. Logo, com maior razão, Deus não provê imediatamente a todos os seres.

2. Demais. — É próprio da providência ordenar as coisas para um fim, que lhes é a perfeição e o bem. Pois, é da essência de uma causa levar a bom termo o seu efeito. Ora, toda causa agente é efeito da providência. Logo, se Deus provê imediatamente a todos os seres, anular-se-ão todas as causas segundas.

3. Demais. — Agostinho diz: É preferível não saber, a saber, certas coisas, p. ex., as vis; e o mesmo diz o Filósofo. Ora, devemos atribuir a Deus tudo o que há de melhor. Logo, ele não tem providência imediata de certos seres vis e mínimos. Mas, em contrário, a Escritura (Jó 34, 13): A qual outro estabeleceu sobre a terra? Ou a quem pôs sobre o mundo que fabricou? Ao que diz Gregório: Rege por si mesmo o mundo que por si mesmo criou.

SOLUÇÃO. — Duas coisas cabem à providência: a razão da ordem dos seres a quem ela provê, a um fim; e a execução dessa ordem, a que se chama governo. — Quanto à primeira, Deus, que tem no seu intelecto a razão de todos os seres, mesmo dos mínimos, a todos provê imediatamente. E preestabelecendo certas causas a certos efeitos, deu-lhes a virtude de os produzir. Logo, é necessário nele preexista à razão da ordem desses efeitos.

Quanto à segunda, a providência, que governa os inferiores pelos superiores, emprega certos seres médios; não por defeito do seu poder, mas pela abundância da sua bondade, que comunica a dignidade de causa, mesmo às criaturas. E, deste modo, fica excluída a opinião de Platão, que, segundo Gregório Nisseno (Nemésio), admitia tríplice providência. A primeira, a do sumo Deus, primária e principalmente provê aos seres espirituais e por conseqüência a todo mundo, quanto aos gêneros, às espécies e às causas universais. A segunda provê aos seres particulares susceptíveis de geração e corrupção; e esta atribui aos deuses, que percorrem os céus, isto é, às substâncias separadas, que movem em círculos os corpos celestes. A terceira é a providência das coisas humanas, que atribui aos demônios, que os Platônicos consideravam seres médios entre nós e os deuses, segundo refere Agostinho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — É próprio da dignidade real ter ministros executores da sua providência. E só por defeito é que ela não tem a razão do que devem fazer; pois toda ciência operativa é tanto mais perfeita quanto mais particularidades considera num ato.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O ter Deus providência imediata de todos os seres não exclui as causas segundas, executoras da sua ordem, como do sobredito se colhe.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não podendo inteligir muitas coisas simultaneamente é nos preferível não conhecer o vil e o mal que nos impede a consideração do melhor. E porque, às vezes, pensar mal nos inclina a vontade para ele. Mas tal não se dá com Deus, que, tudo vendo simultaneamente, por simples intuição, não pode ter vontade inclinada ao mal.

ART. IV. — SE A DIVINA PROVIDÊNCIA IMPÕE NECESSIDADE ÀS COISAS SOBRE QUE PROVIDENCIA


(I Sent., dist. XXXIX, q. 2, a. 2; III Cont. Gent., cap. LXXII, XCIV; De Malo, q. 16, a. 7, ad 15; Opusc. II, Contra Graecos, Armenos, etc., cap. X; Compend. Theologiae, cap. CXXXIX. CXL; Opusc. XV., De Angelis, cap. XV; I Periherm., lect. XIV; IV Metaph., lect. III)

O quarto discute-se assim. — Parece que a divina providência impõe necessidade às coisas sobre que providência.

1. — Pois, todo efeito procedente de uma causa direta, a qual ainda existe ou já existiu, e da qual ele resulta necessariamente, tem uma procedência necessária, como o prova o Filósofo. Ora, a providência de Deus, sendo eterna, preexiste, e, não podendo ser frustrada, produz o seu efeito necessariamente. Logo, a providência divina impõe necessidade às coisas sobre que previdência.

2. Demais. — Todo provisor procura o mais possível dar firmeza à sua obra, para que não falhe. Ora, Deus é sumamente poderoso. Logo, infunde a firmeza da necessidade às coisas de que tem providência.

3. Demais. — Boécio diz: O destino, procedendo das imóveis origens da providência, adstringe os atos e as fortunas dos homens ao indissolúvel nexo causal. Logo, a providência impõe necessidade às causas.

Mas, em contrário, Dionísio: Não é da providência corromper a natureza. Ora, certas coisas são de natureza contingente. Logo, a providência divina não impõe necessidade às coisas excluindo-lhes a contingência.

SOLUÇÃO. — A providência divina impõe necessidade a umas coisas, mas não a todas, como certos acreditavam. Pois, a ela pertence ordenar os seres para um fim. Ora, depois da bondade divina, fim exterior aos seres, o bem principal neles próprios existentes é a perfeição do universo. E esta não existiria senão se encontrassem neles todos os graus de existência. Por onde, pertence à providência divina criar todos os graus de seres. Por isso, adaptou causas necessárias a certos efeitos, para estes se realizarem necessariamente; a outros, porém, causas contingentes, para se realizarem contingentemente, conforme a condição das causas próximas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Efeito da divina providência é realizar-se uma coisa, não somente de qualquer modo, mas contingente ou necessariamente. Por onde, infalível e necessariamente, como também contingentemente, se realiza o que a razão da divina providência assim determinou que se realizasse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A ordem imóvel e certa da divina providência consiste em realizar-se tudo conforme ela previu, necessária ou contingentemente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A indissolubilidade e a imutabilidade, de que fala Boécio, pertencem à certeza da providência, cujo efeito nunca falha, como não falha também o modo de realização, que Deus previu, mas não pertence à necessidade dos efeitos. E devemos ponderar que o necessário e o contingente resultam propriamente do ser como tal. Por isso, o modo da contingência e da necessidade se incluem na previsão de Deus, universal provisor de todos os seres; não, porém na previsão de quaisquer provisores particulares.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Questão XXI - Da justiça e da misericórdia de Deus

QUESTÃO XXI — DA JUSTIÇA E DA MISERICÓRDIA DE DEUS


Depois de termos tratado do amor de Deus, devemos tratar da sua justiça e da sua misericórdia. E nesta questão discutem-se quatro artigos:
  1. Se em Deus há justiça;
  2. Se a sua justiça pode se chamar verdade;
  3. Se em Deus há misericórdia;
  4. Se em todas as obras de Deus há justiça e misericórdia.

ART. I. — SE EM DEUS HÁ JUSTIÇA


(V Sent., dist. XLVI, q. 1, a. 1. qª 1; I Cont. Gent., cap. XCIII; De Div. Nom., cap. VIII, lect IV)

O Primeiro discute-se assim. — Parece que em Deus não há justiça.

1. — Pois, a justiça se divide por oposição à temperança. Ora, em Deus não há temperança. Logo, nem justiça.

2. Demais. — Quem faz tudo ao bel prazer da sua vontade não obra segundo a justiça. Ora, como diz o Apóstolo (Ef 1, 11), “Deus obra todas, as coisas segundo o conselho da sua vontade”. Logo, não se lhe deve atribuir justiça.

3. Demais. — É ato de justiça restituir o devido. Ora, Deus a ninguém é devedor. Logo, não lhe cabe a justiça.

4. Demais. — Tudo o que há em Deus é a sua essência. Ora, isto não convém à justiça, pois, conforme Boécio, o bem respeita à essência, mas a justiça, ao ato. Logo, a Deus não convém à justiça.

Mas, em contrário, a Escritura (Sl 10, 8): O Senhor é justo e ele amou a justiça.

SOLUÇÃO. — Há duas espécies de justiça. Uma consistente no mútuo dar e receber; p. ex., a que consiste na compra e venda em outros tratos ou trocas semelhantes. Esta é chamada pelo Filósofo justiça comutativa ou reguladora das trocas ou tratos; e essa não convém a Deus, segundo aquilo do Apóstolo (Rm 11, 35): Quem lhe deve alguma coisa primeiro para esta lhe haver de ser recompensada? Outra consiste na distribuição e se chama justiça distributiva, pela qual um governador ou administrador dá segundo a dignidade de cada um. Ora, assim como a ordem devida, na família ou em qualquer multidão governada, demonstra a justiça do governador, assim também a ordem do universo manifesta, tanto nos seres naturais, como nos dotados de vontade, a justiça de Deus. Por isso diz Dionísio: Devemos ver a verdadeira justiça de Deus no distribuir ele a todos os seres segundo o que convém à dignidade de cada um, e no conservar cada natureza na sua ordem própria e virtude.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Das virtudes morais, umas concernem às paixões; assim, a temperança, à concupiscência; a fortaleza, ao temor e à audácia; a mansidão, à ira. Tais virtudes só se podem atribuir a Deus metaforicamente, porque nele nem há paixões, como já demonstramos (q. 20, a. 1 ad 1), nem apetite sensitivo, que é o sujeito dessas virtudes, como diz o Filósofo. Porém, outras virtudes morais concernem às operações; assim, quanto ao dar e ao receber, a justiça, a liberalidade e a magnificência. E tais virtudes não existem na parte sensitiva, mas na vontade; por isso, nada impede sejam atribuídas a Deus. Não, contudo, no concernente às ações civis, mas as convenientes a Deus. Pois, seria ridículo louvar a Deus pelas suas virtudes políticas, como diz o Filósofo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Sendo o bem inteligido o objeto da vontade, Deus só pode querer aquilo que está na razão da sua sabedoria; e esta é como a lei da justiça, pela qual a sua vontade é reta e justa. Por onde, o que faz por sua vontade justamente o faz; assim como nós fazemos justamente o que fazemos de acordo com a lei; nós, porém, pela lei de um superior, ao passo que Deus, pela sua própria lei.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A cada um é devido o que lhe pertence. Ora, dizemos que uma coisa pertence a alguém quando se lhe ordena. Assim, o servo pertence ao senhor e não, inversamente; pois, é livre quem é causa com relação a si próprio. Por onde, a palavra devido implica uma certa ordem de exigência ou necessidade de um ser em relação a outro, ao qual se ordena. Ora, há uma dupla ordem a se considerar nas coisas. Uma, pela qual uma criatura se ordena para outra; assim, as partes, ao todo, os acidentes, às substâncias, e cada coisa, ao seu fim. Outra, pela qual todas as criaturas se ordenam para Deus. Por onde, o devido também pode ser considerado à dupla luz, quanto à obra divina. Ou enquanto algo é devido a Deus, ou, a uma criatura. E de um e outro modo, Deus paga o devido.

Pois, é devido a Deus o cumprirem os seres aquilo que a sua sapiência e a sua vontade estabeleceram e que manifesta a sua bondade. E deste modo a justiça de Deus concerne à sua dignidade, atribuindo-se a si o que lhe é devido. Por outro lado, é devido a uma criatura o ter aquilo que se lhe ordena, como ao homem ter mãos e lhe servirem os outros animais. E assim, também Deus faz justiça, dando-lhe o devido, segundo a exigência da natureza e à condição de cada uma. Mas este débito depende do primeiro, porque a cada criatura é devido o que se lhe ordena pela ordem da divina sapiência. E, embora Deus dê, deste modo, o devido a cada uma, contudo, não é de vedor, pois, não se ordena para os outros seres, mas estes, para ele. Por isso, dizemos que a justiça é, umas vezes, em Deus, conveniência com a sua bondade, e outras, retribuição dos méritos. E a um e outro modo alude Anselmo dizendo: És justo punindo os maus, por isso lhes convir aos méritos; mas também o és perdoando-lhes, por convir isso à tua bondade.

RESPOSTA À QUARTA. — Por dizer respeito ao ato, não resulta que a justiça deixe de ser a essência de Deus, pois, também aquilo que é da essência de um ente pode ser princípio de ação. Mas, o bem nem sempre concerne ao ato, pois, dizemos que um ser é bom, não somente pela ação, mas também pela perfeição essencial. Por isso, no mesmo lugar, se diz que o bem está para o justo, como o geral, para o especial.

ART. II. — SE A JUSTIÇA DE DEUS É VERDADE


(IV Sent., dist. XLVI, q. 1, a. 1, qª 3)

O segundo discute-se assim. — Parece que a justiça de Deus não é verdade.

1. — Pois, a justiça pertence à vontade, da qual é a retidão, como diz Anselmo. Ora, a verdade pertence ao intelecto, segundo o Filósofo. Logo, a justiça não pertence à verdade.

2. Demais. — A verdade, segundo o Filósofo, é virtude diferente da justiça. Logo, ela não se inclui em a noção da justiça.

Mas, em contrário, a Escritura (Sl 84, 11): A misericórdia e a verdade se encontraram. Onde, verdade é tomada na acepção de justiça.

SOLUÇÃO. — A verdade consiste na adequação da inteligência com o objeto, conforme dissemos (q. 16, a. 1). Ora, o intelecto que é causa do objeto é dele a regra e a medida; dá-se, porém, o inverso com o intelecto, que tira das coisas a sua ciência. Portanto quando as causas são a medida e a regra do intelecto, a verdade consiste na adequação deste com aquele, e tal é o nosso caso. Assim, a nossa opinião e o nosso conhecimento são verdadeiros ou falsos conforme exprimem o que a coisa é ou que não é. Mas, quando o intelecto é a regra ou a medida das coisas, a verdade consiste na adequação delas com o intelecto; assim, também dizemos verdadeira a obra do artista quando concorda com a arte. Ora, os artificiados estão para a arte, como as obras justas, para a lei, com a qual concordam. Por onde, a justiça de Deus, que constitui a ordem das coisas, conforme a idéia da sua sabedoria, que lhes serve de lei, chama-se convenientemente verdade. Do mesmo modo também se diz que em nós há a verdade da justiça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A justiça, quanto à lei reguladora, pertence à razão ou intelecto; mas quanto ao império pelo qual as obras são reguladas pela lei, pertence à vontade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A verdade a que se refere o Filósofo, no lugar citado, é uma virtude pela qual nos mostramos, em palavras e obras, tais quais somos. Por isso, consiste na conformidade do sinal com a sua significação; não, porém, na conformidade do efeito com a causa e a regra, como dissemos a respeito da verdade da justiça.

ART. III. — SE A DEUS CONVÉM A MISERICÓRDIA


(IIa IIae, q. 30, a. 4; IV Sent., dist. XLVI, q. 2, a. 1, qa 1; I Cont. Gent., cap. XCI: Psalm., XXIV)

O terceiro discute-se assim. — Parece que a Deus não convém a misericórdia.

1. — Pois, a misericórdia é uma espécie de tristeza, como diz Damasceno. Ora, em Deus não há tristeza. Logo, nem misericórdia.

2. Demais. — A misericórdia é preterição da justiça. Ora, Deus não pode preterir as exigências da sua justiça, conforme aquilo da Escritura (2Tm 2, 13): Se não cremos, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo. Ora, negar-se-ia a si mesmo, diz a Glosa, se negasse o que disse. Logo, não lhe convém a misericórdia.

Mas, em contrário, a Escritura (Sl 110, 4): O Senhor é misericordioso e compassivo.

SOLUÇÃO. — A misericórdia máxima devemos atribuí-la a Deus; mas, quanto ao efeito e não, quanto ao afeto da paixão. Para evidenciá-lo, é mister considerar que misericordioso é quem possui coração comiserado, por assim dizer, por contristar-se com a miséria de outrem, como se fora própria e esforçar-se por afastá-la como se esforçaria por afastar a sua própria. Tal é o efeito da misericórdia. Ora, não é próprio de Deus contristar-se com a miséria de outrem. Mas, é muito próprio dele afastá-la, entendendo-se por miséria qualquer defeito. Pois, defeitos não se eliminam senão pela perfeição de alguma bondade.

Ora, Deus, como dissemos (q. 6 a. 4), é a origem primeira da bondade. Devemos porém ponderar que comunicar perfeições às causas pertence tanto à bondade divina, como à justiça, à liberalidade e à misericórdia, mas segundo razões diversas. Assim, a comunicação das perfeições, considerada absolutamente, pertence à bondade, como já demonstramos (Ibid., a. 1, 4). Mas, pela justiça, como mostramos (q. 21 a. 1), Deus comunica perfeições proporcionadas às coisas. Ao passo que pela liberalidade ele lhes da perfeições, não visando a sua utilidade, mas só por mera bondade. Finalmente, pela misericórdia, as perfeições dadas às coisas por Deus eliminam-lhes todos os defeitos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção procede, considerando-se a misericórdia em relação ao afeto da paixão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus age misericordiosamente, quando faz alguma coisa não em contrário, mas, além da sua justiça. Assim, quem desse duzentos dinheiros ao credor, ao qual só deve cem, não pecaria contra a justiça, mas agiria liberal ou misericordiosamente. O mesmo se daria com quem perdoasse a injúria, que lhe foi feita; pois, quem perdoa, de certo modo dá; e por isso o Apóstolo chama ao perdão, doação (Ef 4, 32): Perdoai-vos uns aos outros como também Cristo vos perdoou. Donde resulta que, longe de suprimir a justiça, a misericórdia é a plenitude dela. Donde, o dizer a Escritura (Tg 2 ,13): A misericórdia triunfa sobre o justo.

ART. IV. — SE HÁ JUSTIÇA E MISERICÓRDIA EM TODAS AS OBRAS DE DEUS


(IV Sent., dist. XLVI, q. 2, a. 2, qª 2; II Con t. Gent., cap. XXVIII; De Verit., q. 28, a. 1, ad 8; Psalm., XXIV; Rom., cap. XV, lect. I)

O quarto discute-se assim. — Parece que nem em todas as obras de Deus há misericórdia e justiça.

1. — Pois, umas se atribuem à misericórdia, como a justificação dos ímpios; outras, à justiça, como a danação deles. Por isso, diz a Escritura (Tg 2, 13): Far-se-á juízo sem misericórdia aquele que não usou de misericórdia. Logo, nem todas as obras de Deus manifestam a misericórdia e a justiça.

2. Demais. — O Apóstolo atribui a conversão dos Judeus à justiça e à verdade; a conversão dos gentios, porém, à misericórdia (Rm 15, 8-9). Logo, nem em todas as obras de Deus há justiça e misericórdia.

3. Demais. — Muitos justos se afligem neste mundo. Ora, isto é injusto. Logo, em nem todas as obras de Deus há justiça e misericórdia.

4. Demais. — É de justiça pagar o devido, e de misericórdia, socorrer à miséria; por onde, tanto a obra de justiça como a de misericórdia pressupõe um objeto. Ora, a criação nada pressupõe. Logo, nela não há misericórdia nem justiça.

Mas, em contrário, a Escritura (Sl 24, 10): Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade.

SOLUÇÃO. — Necessariamente descobrimos, em qualquer obra de Deus, a misericórdia e a verdade; se tomarmos misericórdia no sentido de remoção de qualquer defeito. Embora nem todo defeito possa chamar-se miséria, propriamente dita, mas somente o defeito da natureza racional, que é capaz de felicidade; pois a esta se opõe a miséria.

E a razão dessa necessidade é a seguinte. Sendo o débito pago pela divina justiça um débito para com Deus ou para com alguma criatura, nem um nem outro podem faltar em qualquer obra divina. Pois, Deus nada pode fazer que não convenha à sua sapiência e à sua bondade; e, nesse sentido, dizemos que algo lhe é devido. Semelhantemente, tudo quanto faz, nas criaturas, o faz em ordem e proporção convenientes, e nisso consiste a essência da justiça. E, portanto, é necessário haja justiça em todas as obras divinas.

Mas a obra da divina justiça sempre pressupõe a da misericórdia e nesta se funda. Pois, nada é devido a uma criatura, senão em virtude dum fundamento preexistente ou previsto; o que, por sua vez pressupõe um fundamento anterior. Ora, não sendo possível ir até o infinito, é necessário chegar a algum que só dependa da bondade da divina vontade, que é o fim último. Assim, se dissermos que ter mãos é devido ao homem, em virtude da alma racional, por seu lado, ter alma racional é necessário para que exista o homem e este existe pela bondade divina. E assim a misericórdia se manifesta radicalmente em todas as obras de Deus. E a sua virtude se conserva em tudo o que lhe é posterior, e mesmo aí obra mais veementemente, pois a causa primária mais veementemente influi, que a segunda. Por isso, Deus, pela abundância da sua bondade, dispensa o devido a uma criatura mais largamente do que o exigiriam as proporções dela. Porque, para conservar a ordem da justiça, bastaria menos do que o conferido pela divina bondade, excedente a toda a proporção da criatura.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Certas obras se atribuem à justiça e certas, à misericórdia, porque mais veementemente se manifesta, numas a justiça e noutras, a misericórdia. E contudo, na danação dos réprobos, manifesta-se a misericórdia não, certo, perdoando totalmente, mas de algum modo, aliviando, por punir aquém do merecido. Por outro lado, na justificação do ímpio manifesta-se a justiça, perdoando as culpas por causa do amor, que entretanto Deus infunde misericordiosamente, como de Madalena se lê no Evangelho (Lc 7,47): perdoados lhe são seus muitos pecados, porque amou muito.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A justiça e a misericórdia de Deus se manifestam na conversão dos Judeus e dos Gentios. Porém, na conversão daqueles, salvos em virtude das promessas feitas aos patriarcas, manifesta-se um aspecto da justiça, que não se manifesta na conversão destes.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Também em serem os justos punidos neste mundo, manifesta-se a justiça e a misericórdia. Porque essas aflições os fazem expiar alguns pecados leves e mais os separam dos afetos terrenos, elevando-os para Deus, conforme aquilo de Gregório: Os males que nos castigam neste mundo, nos obrigam a ir para ti.

RESPOSTA À QUARTA. — Embora a criação nada pressuponha quanto à natureza das coisas, contudo algo se lhes pressupõe, no conhecimento de Deus. E assim, também se manifestam as exigências da justiça pelo receberem as coisas o ser, conforme a conveniência delas com a sapiência e a bondade divina. E também, de certo modo, as da misericórdia, por passarem as coisas do não ser para o ser.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Questão XX - Do amor de Deus

QUESTÃO XX — DO AMOR DE DEUS


Em seguida devemos tratar do que pertence absolutamente à vontade de Deus. Ora, em nossa parte apetitiva residem as paixões da alma, como a alegria, o amor, e outras; e os hábitos das virtudes morais, como a justiça, a fortaleza e outros. Donde, primeiro, trataremos do amor de Deus, e, segundo, da justiça e da misericórdia.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos.

  1. Se em Deus há amor;
  2. Se ama todas as coisas;
  3. Se mais ama uma coisa que outra;
  4. Se mais ama as coisas melhores.

ART. I — SE EM DEUS HÁ AMOR


(Infra., q. 82, a. 5, ad 1; III Sent., dist. XXXII, a. 1, ad 1; I Cont. Gent., cap. XCI; IV, cap. XIX; De Div. Nom., cap. IV, lect. IX)

O primeiro discute-se assim. — Parece que em Deus não há amor.

1. — Pois, em Deus não há nenhuma paixão. Ora, o amor é uma paixão; logo, em Deus não há amor.

2. Demais. — O amor, a ira, a tristeza, e paixões semelhantes se dividem por oposição. Ora, a tristeza e a ira só se dizem de Deus metaforicamente. Logo, também o amor.

3. Demais. — Dionísio diz: O amor é uma força unitiva e concretiva. Ora, isto não pode ter lugar em Deus, que é simples. Logo, em Deus não há amor.

Mas, em contrário, a Escritura (1 Jo 4, 16): Deus é caridade.

SOLUÇÃO. — É necessário admitir o amor em Deus. Pois, o primeiro movimento da vontade e de qualquer virtude apetitiva é o amor. Ora, o ato da vontade e de qualquer virtude apetitiva tende para o bem e para o mal, como para seus objetos próprios: para o bem, principalmente e em si mesmo, como objeto da vontade e do apetite; para o mal, porém, secundária e mediatamente, enquanto se opõe ao bem. Por onde e necessariamente, os atos da vontade e do apetite, que dizem respeito ao bem, naturalmente têm prioridade sobre os que dizem respeito ao mal. Assim, a alegria deve ter prioridade sobre a tristeza, e o amor, sobre o ódio. Pois, o que é em si tem sempre prioridade sobre o que é por outro. Além disso, o que é mais geral tem naturalmente prioridade; por isso, o intelecto busca a verdade geral de preferência a certas verdades particulares.

Ora, há certos atos da vontade e do apetite, que dizem respeito ao bem, sob certa e especial condição; assim, a alegria e o prazer recaem sobre o bem presente e possuído; o desejo, porém, e a esperança, sobre o bem ainda não alcançado. O amor visa o bem em geral, quer já obtido, quer ainda por obter; donde, o ser naturalmente o primeiro ato da vontade e do apetite. Por isso, todos os outros movimentos do apetite o pressupõem, como a raiz primeira. Assim, ninguém deseja senão o bem amado, ninguém se alegra senão com ele, só há ódio ao que contraria a coisa amada. Semelhantemente, a tristeza e as outras paixões da mesma espécie manifestamente se referem ao amor como ao primeiro princípio. Logo, qualquer ser que tenha vontade e apetite há-de ter amor. Ora, eliminado o primeiro princípio, tudo mais se elimina. Mas, já demonstramos que em Deus há vontade (q. 19, a. 1). Logo, é forçoso admitir que há nele também amor.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A virtude cognoscitiva não move senão mediante a apetitiva. E assim como a razão universal nos move mediante a particular, conforme diz Aristóteles, assim também o apetite intelectivo, chamado vontade, move-nos mediante o apetite sensitivo. Por onde, o motor próximo do nosso corpo é o apetite sensitivo. Por isso, certas alterações no corpo sempre acompanham o ato do apetite sensitivo, e sobretudo do coração, que é o primeiro princípio do movimento do animal, como diz o Filósofo. Assim, pois, os atos do apetite sensitivo, enquanto têm anexa uma transmutação corporal, chamam-se paixões; mas não atos da vontade. Portanto o amor, a alegria e o prazer, enquanto significam atos do apetite sensitivo, são paixões; não porém, enquanto significam atos do apetite intelectivo. Ora, assim é que existem em Deus. Por isso, diz o Filósofo, que Deus se compraz numa operação una e simples; e, pela mesma razão, ama sem paixão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Nas paixões do apetite sensitivo devemos distinguir uma parte, por assim dizer, material, isto é, a transmutação corporal; e outra formal, relativamente ao apetite. Assim na ira, como diz Aristóteles, a parte material é a subida do sangue ao coração ou algo de semelhante; a formal, porém, o apetite da vindicta. Além disso, quanto ao formal, descobrimos em algumas destas paixões uma certa imperfeição; assim, no desejo, que busca um bem não obtido, e na tristeza, cujo objeto é um mal presente. O mesmo se dá com a ira, que pressupõe a tristeza. Outras paixões, porém, nenhuma imperfeição implicam, como o amor e a alegria. Ora, nenhuma destas paixões convêm a Deus pelo que têm de material, como dissemos. Por onde, aquelas que implicam uma imperfeição, mesmo formal, não podem convir a Deus, a não ser metaforicamente e por semelhança de efeitos, como estabelecemos (q. 19, a. 11). Porém, as que não implicam imperfeição se predicam de Deus propriamente, como o amor e a alegria; contudo, sem paixão, conforme ficou dito.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O ato de amor sempre tende a dois objetos, a saber, ao bem, que desejamos para outrem e à pessoa a quem o queremos, pois, amar alguém é propriamente querer-lhe bem. Por isso, quem se ama a si mesmo, a si mesmo se quer bem, e assim, quanto pode, procura unir-se ao bem que quer. E por isso o amor se chama virtude unitiva, mesmo em Deus, mas sem composição. Porque o bem que ele para si quer não é outro senão ele próprio, que é bom por essência, como já demonstramos (q. 6, a. 3). Quando porém, amamos a outrem, nós lhe queremos bem. Por isso, tratamo-lo como a nós mesmos, referindo-lhe o bem, como a nós mesmos. Pelo que, dizemos que o amor é uma força concretiva, porque por ele, atraímos outrem a nós, tratando-o como a nós próprios. E também o amor divino é uma força concretiva existente em Deus, sem nenhuma composição, pela qual Deus quer o bem a outros seres.

ART. II — SE DEUS AMA TODOS OS SERES


(Infra., q. 23, a. 3, ad 1; Ia IIae., q. 110, a. 1; II Sent., dist. XXVI, a. 1; III, dist. XXXII a. 1, 2; I Cont. Gent., cap. CXI; III, cap. CL; De Verit., q. 27 a. 1; De Virtut., q.2, a. 7, ad 2; in Ioan., cap. V, lect. III; De Div. Nom., cap. IV, lect. IX)

O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não ama todos os seres.

1. — Pois, o amor põe o amante fora de si e, de certo modo, o transfere para o amado. Ora, é impróprio dizer que Deus, exteriorizando-se a si mesmo, se transfere aos outros seres. Logo, é inadmissível que Deus ame seres diversos de si.

2. Demais. — O amor de Deus é eterno. Ora, os outros seres, diferentes de Deus, não existem abeterno senão em Deus. Logo, Deus não os ama senão em si mesmo. Mas, enquanto estão nele, dele não diferem. Portanto, Deus não ama seres diversos de si.

3. Demais. — O amor é duplo: de concupiscência ou de amizade. Ora, Deus não ama as criaturas irracionais por amor de concupiscência, porque de nada precisa, além de si mesmo; e nem pelo de amizade, que não pode existir em relação aos irracionais, como está claro no Filósofo. Logo, Deus não ama todos os seres.

4. Demais. — A Escritura diz (Sl 5, 6): Aborrece a todos os que obram a iniquidade. Ora, nada pode ser ao mesmo tempo odiado e amado. Logo, Deus não ama todos os seres.

Mas, em contrário, a Escritura (Sb 11, 24): Tu amas todas as coisas que existem e não aborreces nada que fizeste.

SOLUÇÃO. — Deus ama tudo o que existe, porque tudo o que existe, na medida mesma em que existe, é bom; pois, o ser mesmo de qualquer coisa, assim como qualquer perfeição sua, é um bem. Ora, já demonstramos (q. 19, a. 4) que a vontade de Deus é a causa de todos os seres. Donde resulta necessariamente, que um ente tem o ser, ou qualquer bem, na medida mesma em que é querido de Deus. Logo, a cada ser existente Deus quer algum bem. Por onde, o amor não sendo senão querer bem a alguém, é claro que Deus ama tudo quanto existe. Não porém como nós. Pois, longe de ser causa da bondade das coisas, a nossa vontade é movida por essa bondade, como pelo seu objeto. O nosso amor, pelo qual queremos bem a alguém, não é a causa da bondade desse ser; mas, inversamente, a bondade verdadeira ou suposta do ser, a quem queremos bem, provoca o nosso amor, que nos faz querer que tal se conserve o bem que possui e se lhe acrescente o que não possui; e para isso cooperamos. Ao contrário, o amor de Deus infunde e cria a bondade dos seres.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O amante, transferindo-se para o amado, exterioriza-se a si mesmo, enquanto quer o bem para o amado e obra, pela sua providência, como se o fizesse para si próprio. Por isso, diz Dionísio: Devemos ousar dizer, que é verdade que a própria causa de tudo, por abundância da bondade amante, se exterioriza a si mesma, pela providência para com tudo o que existe.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora as criaturas não existissem abeterno senão em Deus, contudo, por terem nele existido desse modo, Deus as conheceu abeterno nas suas naturezas próprias. E pela mesma razão as amou. Assim como nós, pelas semelhanças das coisas que em nós existem, conhecemos as que existem em si mesmas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Só pode haver amizade para com as criaturas racionais, capazes de retribuir o amor e de participarem das obras da vida. E às quais é próprio suceder bem ou mal, conforme a fortuna e a felicidade; assim como também lhes é própria a benevolência. Mas, as criaturas irracionais não podem chegar a amar a Deus nem à participação da vida intelectual e feliz, que Deus vive. Portanto Deus, propriamente falando, não ama as criaturas irracionais, por amor de amizade mas, como por amor de concupiscência, ordenando-as às racionais. E mesmo a si próprio; não que delas precise, mas, pela sua bondade e para nossa utilidade. Pois, nós desejamos alguma coisa tanto para nós como para os outros.

RESPOSTA À QUARTA. — Nada impede que, a uma luz, amemos, e, a outra, odiemos a uma mesma coisa. Assim, Deus ama os pecadores enquanto têm uma certa natureza; pois, como tais, existem e provêm de Deus. Mas enquanto pecadores não existem, mas, têm o ser falho; e, como isso não lhes vem de Deus, são, como tais odiados dele.

ART. III — SE DEUS AMA IGUALMENTE TODOS OS SERES


(II Sent., dist. XXVI, a. 1, ad 2; III, dist. XIX, a. 5, qa 1; dist. XXXII, a. 4; I Cont. Gent., cap. XCI)

O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus ama igualmente todos os seres.

1. — Pois, diz a Escritura (Sb 6, 7): Tem igualmente cuidado de todos. Ora, a providência, que Deus tem das coisas, provém do amor com que as ama. Logo, ama igualmente a todos os seres.

2. Demais. — O amor é a essência de Deus. Ora, tal essência não é suscetível de mais nem menos. Logo, nem o seu amor. Portanto, não ama a uns seres mais que outros.

3. Demais. — Assim como o amor de Deus se estende às criaturas, assim também a sua ciência e a sua vontade. Ora, não se diz que Deus conhece nem quer uns seres mais do que outros. Logo, não ama a uns mais que a outros.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Deus ama todos os seres que criou e, dentre eles, mais ama às criaturas racionais; e, dentre estas, mais as que são membros do seu Unigênito. E muito mais o seu próprio Unigênito.

SOLUÇÃO. — Consistindo o amor em querer bem a alguém, qualquer ser pode ser mais ou menos amado, de duplo modo. Primeiro, quanto ao ato mesmo da vontade, que é mais ou menos intenso. E assim Deus não ama a uns seres mais do que a outros, porque os ama a todos por um ato uno da vontade, o qual permanece sempre o mesmo. Segundo, quanto ao bem mesmo que se quer ao para o ser amado; e assim dizemos que alguém mais ama a quem maior bem deseja, embora, não com vontade mais intensa. E deste modo é forçoso dizer-se que Deus ama a uns seres mais do que a outros. Pois, sendo o seu amor a causa da bondade dos seres, como demonstramos (a. 2), não seria um melhor do que outro se Deus não quisesse a um maior bem que a outro.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dizemos que Deus cura igualmente de todos os seres; não que, assim fazendo, dispense a todos os mesmos bens, mas porque governa tudo com sapiência e bondade iguais.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção procede, quanto à intensidade do amor, relativamente ao ato da vontade, que é a divina essência. Mas o bem que Deus quer à criatura não é a divina essência. Logo, nada impede que esse bem seja suscetível de intensidade ou de remissão.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Inteligir e querer significam apenas atos, e não incluem na sua significação nenhuns objetos, por cuja diversidade se possa dizer que Deus sabe ou quer mais ou menos, como se diz a respeito do amor.

ART. IV — SE DEUS AMA SEMPRE MAIS OS SERES MELHORES


(III Sent., dist. XXXI, q. 2, a. 3, qa. 3; dist. XXXII, a. 5)

O quarto discute-se assim. — Parece que Deus nem sempre mais ama os seres melhores.

1. — Pois, é manifesto que Cristo, sendo Deus e homem, é melhor que todo gênero humano. Ora, Deus mais amou o gênero humano que a Cristo, conforme aquilo da Escritura (Rm 8, 32): Ao seu próprio Filho não perdoou, mas por nós todos o entregou. Logo, Deus nem sempre mais ama os melhores.

2. Demais. — O anjo é melhor que o homem; por isso, diz a Escritura (Sl 8, 6), a respeito do homem: Pouco menos o fizeste que os anjos. Ora, Deus mais ama o homem do que o anjo, conforme o Apóstolo (Heb 2, 16): Em nenhum lugar tomou aos anjos, mas, tomou a descendência de Abraão. Logo, nem sempre Deus mais ama os seres melhores.

3. Demais. — Pedro foi melhor que João, porque mais amava a Cristo, o que o Senhor, sabendo que era verdade, perguntou a Pedro (1 Jo 21, 15): Simão, filho de João, tu me ama mais do que estes? Contudo, Cristo mais amou a João que a Pedro, como diz Agostinho sobre aquilo — Viu o discípulo a quem Jesus amava. — Por este sinal do Evangelho distingue-se João aos outros discípulos: Não que só a ele amasse, mas, porque mais do que aos outros o amava. Logo, nem sempre Deus ama os melhores.

4. Demais. — O inocente é melhor que o penitente; pois, a penitência é a segunda tábua, depois do naufrágio, diz Jerônimo. Ora, Deus mais ama o penitente, que o inocente, porque mais com ele se rejubila, diz o Evangelho (Lc 15, 7): Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu sobre um pecador que fizer penitência, que sobre noventa e nove justos, que não hão mister de penitência. Logo, Deus nem sempre mais ama aos melhores.

5. Demais. — Melhor é o justo precito, que o pecador predestinado. Ora, Deus mais ama o pecador predestinado, porque lhe quer maior bem: a vida eterna. Logo, nem sempre Deus mais ama os melhores.

Mas, em contrário, cada ser ama o seu semelhante, como é manifesto pela Escritura (Ecle 13, 19): Todo animal ama ao seu semelhante. Ora, um ser é tanto melhor quanto mais se assemelha a Deus. Logo, os seres melhores são os mais amados de Deus.

SOLUÇÃO. — É necessário admitir-se que Deus mais ama os seres melhores. Pois, como já dissemos o amar a Deus mais a um que a outros, significa querer-lhe maior bem porque a vontade de Deus é a causa da bondade dos seres. Por onde, são melhores aqueles aos quais quer maior bem. Logo, Deus mais ama aos melhores.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Deus ama a Cristo, não somente mais que a todo o gênero humano, mas, mais que a toda a universalidade das criaturas. Pois, quis-lhe maior bem e deu-lhe um nome superior a qualquer outro nome, como a verdadeiro Deus. E nem Cristo perde nada da sua excelência por Deus tê-lo entregue à morte, para a salvação do gênero humano; antes, tornou-se vencedor glorioso, pois, foi posto o principado sobre o seu ombro, diz a Escritura (Is 9, 5).

RESPOSTA À SEGUNDA. — Conforme o que foi dito, Deus ama, de preferência a todos os anjos, a natureza humana assumida pelo Verbo de Deus, na pessoa de Cristo, melhor que eles, sobretudo em virtude da união. Mas, falando em geral, da natureza humana e comparando-a com a angélica, na ordem da graça e da glória, descobrimos entre elas uma igualdade, porque a mesma é a medida do homem e do anjo, como diz a Escritura (Ap 21, 17). De modo que, a esta luz, certos anjos são superiores a certos homens, e certos homens, a certos anjos. Mas, pela condição da natureza, o anjo é melhor que o homem. Nem Deus assumiu a natureza humana porque, em absoluto, mais amasse o homem, mas porque este era mais necessitado. Assim, o bom pai de família dá o mais precioso ao servo doente que ao filho são.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Essa dúvida, sobre Pedro e João, resolve-se de muitas maneiras. — Assim, Agostinho a considera um mistério, dizendo que a vida ativa, simbolizada em Pedro, mais ama a Deus, que a contemplativa, simbolizada em João. Porque sente mais as angústias da vida presente e mais ardentemente deseja libertar-se delas a fim de ir para Deus. Mas, Deus mais ama a vida contemplativa porque mais a conserva; pois, não acaba com a vida do corpo, como a ativa. — Outros, porém, dizem que Pedro mais amou a Cristo, nos seus membros, e do mesmo modo também foi dele mais amado; por isso, confiou-lhe a sua Igreja. João, porém, mais amou a Cristo em si mesmo, e assim também foi mais amado dele, que lhe confiou por isso a sua Mãe.

Outros ainda dizem, que é incerto qual dos dois amou mais a cristo com amor de caridade; e, semelhantemente, qual Deus mais amou, quanto à maior glória da vida eterna. Mas, dizemos que Pedro mais o amou, pela presteza ou pelo fervor, João porém foi mais amado, por certos indícios de familiaridade, que Cristo mais lhe demonstrava, por causa da sua juventude e pureza. — Outros, finalmente, dizem que Cristo mais amou a Pedro, quanto ao dom mais excelente da caridade, e mais a João, quanto ao dom da inteligência. Logo, Pedro foi melhor e mais amado, absolutamente falando, e João, relativamente. — Mas é presunção querer julgar de tais coisas, porque, como diz a Escritura (Pr 16, 2), o Senhor pesa os espíritos, e mais ninguém.

RESPOSTA À QUARTA. — Os penitentes estão para os inocentes como o excedente para o excedido. Pois, inocentes ou penitentes, melhores e mais amados são os que têm maior graça. Porém, todas as condições iguais, a inocência é mais digna e mais amada. Dizemos contudo que Deus mais se rejubila com o penitente do que com o inocente, porque mais freqüentemente os penitentes ressurgem mais cautos, humildes e fervorosos. Por isso, diz Gregório: Na batalha, o mais querido do chefe é o soldado que, arrependido da fuga, volta-se e ataca fortemente o inimigo, mais que o que nunca fugiu, mas também nunca atacou fortemente. Ou, outra razão é que o mesmo dom da graça custa mais ao penitente, que mereceu a pena, do que ao inocente, que não a mereceu; assim como cem marcos são dom maior ao pobre que ao rei.

RESPOSTA À QUINTA. — A vontade de Deus, sendo a causa da bondade dos seres, devemos pesar a bondade de um ser amado de Deus, de acordo com o tempo em que a vontade divina lhe dá algum bem. Ora, durante o tempo em que ela der ao pecador predestinado um bem maior, melhor será ele, embora seja pior noutro tempo; pois também, num certo tempo, não é bom nem mau.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Questão XIX - Da vontade de Deus

QUESTÃO XIX — DA VONTADE DE DEUS


Depois de termos tratado do que pertence à ciência divina, devemos tratar do pertencente à vontade divina. De modo que o primeiro tratado será sobre a vontade mesma de Deus; o segundo sobre o que pertence à vontade, em absoluto; o terceiro sobre o que pertence ao intelecto, em relação com a vontade.

Sobre a vontade, em si mesma, discutem-se doze artigos:

  1. Se Deus tem vontade;
  2. Se Deus quer coisas diversas de si;
  3. Se Deus quer necessariamente aquilo que quer;
  4. Se a vontade de Deus é a causa das coisas;
  5. Se se pode assinalar alguma causa à vontade divina;
  6. Se a vontade divina sempre se cumpre;
  7. Se a vontade de Deus é mutável;
  8. Se a vontade de Deus impõe necessidade às coisas queridas;
  9. Se Deus tem vontade do mal;
  10. Se Deus tem livre arbítrio;
  11. Se se deve distinguir em Deus a vontade que se manifesta por sinal;
  12. Se convenientemente se estabelecem, em relação à vontade divina, cinco sinais.

ART. I — SE DEUS TEM VONTADE


(Infra., q. 54, a. 2; I Sent., dist. XLV, a. 1; I Cont. Gent., cap. LXXII, LXXIII; IV, cap. XIX; De Verit., q. 23, a. 1; Comp. Theol., cap. XXXII)

O primeiro discute-se assim. — Parece que Deus não tem vontade.

1. — Pois, o objeto da vontade é o fim e o bem. Ora, não podemos estabelecer nenhum fim para Deus. Logo, Deus não tem vontade.

2. Demais. — A vontade é um apetite. Ora, o apetite, desejando o que não possui, implica uma imperfeição, que não convém a Deus. Logo, Deus não tem vontade.

3. Demais. — Segundo o filósofo, a vontade é um motor movido. Ora, Deus é o primeiro motor imóvel, como o mesmo o prova. Logo, Deus não tem vontade.

Mas, em contrário, a Escritura (Rm 12, 2): Para que experimenteis qual é a vontade de Deus.

SOLUÇÃO. — Tendo Deus intelecto, há de também ter vontade, pois esta acompanha aquele. Pois assim como o ser natural se atualiza pela forma, assim o intelecto intelige em ato pela forma inteligível. Ora, qualquer ser tem uma inclinação tal para a sua forma natural que, não a possuindo, tende para ela e, se já a possui, nela repousa. E o mesmo se dá com qualquer perfeição natural, que é o bem da natureza. Essa inclinação para o bem, nos seres privados de conhecimento, chama-se apetite natural. Por onde, também a natureza intelectual tem uma inclinação semelhante para o bem apreendido pela forma inteligível; de modo que, quando o possui, nele repousa, e o deseja enquanto não o possui. Ora, uma e outra coisa pertencem à vontade. Logo, qualquer ser que tem intelecto tem vontade, assim como qualquer que tem sentido tem o apetite animal. E portanto, como Deus tem intelecto, necessariamente também tem vontade. E sendo o seu inteligir o seu ser, é também o seu querer.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora o fim de Deus não seja nenhum outro ser, senão ele próprio, contudo, Deus mesmo é o fim de tudo o que fez. E isto pela sua essência, porque é bom, por essência, como já demonstramos (q. 6, a. 3); pois, a essência do fim é o bem.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Em nós, a vontade pertence à parte apetitiva que, embora derive o seu nome de — apetir — contudo não é o seu único ato apetir o que não tem, mas também, amar o que tem, e nisso deleitar-se. Ora, deste último modo, Deus tem vontade, a qual sempre possui o bem, que é o seu objeto; pois, a sua essência não difere do bem, como já se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Sendo o objeto principal da vontade o bem, que existe fora do querente, é necessário que a vontade seja movida por um ser diverso de si. Ora, o objeto da vontade de Deus é a sua bondade, que é a sua essência. Por onde, a vontade, sendo a essência de Deus, não é movida por um ser estranho, mas somente por Deus mesmo, no sentido em que se chama movimento ao inteligir e ao querer. E, por isso, Platão disse, que o primeiro motor se move a si mesmo.

ART. II — SE DEUS QUER COISAS DIVERSAS DE SI


(I Sent., dist. XLV, a. 2; I Cont. Gent., cap. LXXV, LXXVI, LXXVII, De Verit., q. 23, a. 4)

O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não quer coisas diversas de si.

1. — Pois, a vontade de Deus é o seu ser. Ora, Deus não é diferente de si mesmo. Logo, não pode querer coisas diversas de si.

2. Demais. — O querido move o querente, como o apetível, o apetite, segundo Aristóteles. Ora, se Deus quisesse coisas diversas de si, a sua vontade seria movida por algo de estranho, o que é impossível.

3. Demais. — A quem lhe basta o que quer, nada mais quer além disso. Ora, a Deus basta-lhe a sua bondade, com a qual a sua vontade se sacia. Logo, Deus não quer coisas diversas de si.

4. Demais. — O ato da vontade multiplica-se na relação do que quer. Ora, se Deus se quisesse, a si mesmo e a coisas diversas de si, seguir-se-ia que o ato da sua vontade seria múltiplo, e, por consequente, o seu ser que é a sua vontade. Ora, tal é impossível. Logo, Deus não quer coisas diversas de si.

Mas, em contrário, o Apóstolo (1 Ts 4, 3): Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação.

SOLUÇÃO. — Deus não somente se quer a si mesmo, mas também a coisas diversas de si, o que resulta do símile antes introduzido. Pois, os seres naturais, não somente têm inclinação natural para adquirir o bem próprio, se não o possuem, e nele repousar, se já o possuem, mas também a difundi-lo nos outros, na medida do possível. E, por isso, vemos todo o agente, na medida em que é atual e perfeito, gerar um semelhante a si. E que é da essência da vontade comunicarmos a outrem o bem que possuímos, na medida do possível. Ora, isto é precipuamente próprio à vontade divina, da qual, por certa semelhança, deriva toda a perfeição. Donde, se as coisas naturais, enquanto perfeitas, comunicam a outras o seu bem, com maioria de razão e por semelhança, é próprio à vontade divina comunicar a outros o seu, na medida do possível. E portanto quer-se a si mesma e quer outras coisas; a si, porém, como fim; às outras como meios, enquanto convém à divina bondade que também os demais seres dela participem.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora a vontade divina seja, na realidade, o seu ser, contudo, deste difere pela razão, segundo o modo diverso de inteligir e significar, como resulta do sobredito (q. 13, a. 4). Pois, quando digo, Deus existe, isto não implica nenhuma relação com outro ser, como quando digo, Deus quer. E portanto, embora Deus não seja diferente de si, quer, contudo, coisas diversas de si.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No que queremos por causa de um fim, este é a razão total do querer, e é ele que move a vontade. E isto se manifesta sobretudo naquelas coisas que queremos somente por causa do fim. Assim quem quer tomar uma poção amarga só procura nela a saúde, e é só isso o que lhe move a vontade. Diversamente, porém, acontece com quem toma uma poção doce, que pode querer, não somente por causa da saúde, mas, por si mesma. Donde, Deus, não querendo coisas diversas de si, senão por causa do fim, que é a sua bondade, como já se disse, não se segue que seja diferente da sua bondade o que lhe move a vontade. E assim como, inteligindo a sua essência, Deus intelige as coisas diversas de si, assim também, querendo a sua bondade, quer coisas diversas de si.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Do bastar à vontade de Deus a sua bondade, não se segue que Deus não queira coisas diversas de si, mas que nada diverso quer, a não ser em razão da sua bondade. Assim também, o intelecto divino, embora perfeito, por isso mesmo que conhece a essência divina, contudo nesta conhece outras coisas.

RESPOSTA À QUARTA. — Assim como é uno o inteligir divino, porque vê muitas coisas na unidade, assim também, uma e simples é a vontade divina, porque quer muitas coisas, mas pela sua bondade una.

ART. III — SE DEUS QUER NECESSARIAMENTE TUDO O QUE QUER


(I Cont. Gent., cap. LXXX sq.; III, cap. XCVII; De Verit., q. 23, a. 4; De Pot., q. 1, a. 5; q. 10, a. 2, ad 6)

O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus quer necessariamente tudo o que quer.

1. — Pois, tudo o que é eterno é necessário. Ora, tudo o que Deus quer o quer abeterno, aliás a sua vontade seria mutável. Logo, tudo o que ele quer o quer necessariamente.

2. Demais. — Deus, querendo a sua bondade, quer outras coisas de si diversas. Ora, quer a sua bondade necessariamente. Logo, quer necessariamente outras coisas diversas de si.

3. Demais. — Tudo o que é natural a Deus é necessário, porque é o ser necessário, em si, e o princípio de toda necessidade, como já se demonstrou (q. 2, a. 3). Ora, é natural a Deus querer tudo quanto quer, porque nele nada pode existir contra a sua natureza, como diz Aristóteles. Logo, tudo quanto Deus quer necessariamente o quer.

4. Demais. — Não ser, necessariamente, e não ser possivelmente são expressões eqüipolentes. Se, pois, Deus não quer necessariamente alguma das coisas que quer, é lhe possível também não querê-la e, portanto, querer aquilo que não quer. Logo, a vontade divina é contingente em um e outro caso e, por conseqüência, imperfeita, porque todo contingente é imperfeito.

5. Demais. — Nenhuma ação pode resultar de uma causa capaz de produzir dois efeitos diferentes, exceto se, por um ser estranho, for inclinada a um deles como diz o Comentador. Se, pois, a vontade de Deus, em certos casos, tem duas possibilidades, segue-se que é determinada a uma delas por um ser estranho, e, assim, tem uma causa anterior.

6. Demais. — Tudo o que Deus sabe, necessariamente o sabe. Ora, como a ciência divina, também a vontade é a sua essência. Logo, Deus quer necessariamente tudo quanto quer.

Mas, em contrário, o Apóstolo (Ef 1, 11): É Deus que faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade. Ora, o que é feito pelo conselho da vontade não o queremos necessariamente. Logo, Deus não quer necessariamente tudo o que quer.

SOLUÇÃO. — Em duplo sentido dizemos que uma coisa é necessária; absolutamente e por suposição. A necessidade absoluta resulta da natureza dos termos, ou porque o predicado está incluído na definição do sujeito — assim, é necessário o homem ser animal; ou porque o sujeito é da essência do predicado — assim, é necessário o número ser par ou ímpar. Ora, assim, não é necessário, p. ex., Sócrates sentar-se. Por onde, não é necessário, absolutamente, mas podemos dizer que o é, por suposição; pois, suposto que esteja sentado, é necessário que o esteja, enquanto o está.

Ora, no querer divino, devemos considerar que é um necessário absoluto o querer Deus alguma coisa; mas, isso não é verdade em relação a tudo o que quer. Pois, a vontade divina tem relação necessária com a divina bondade, que é o seu objeto próprio. Donde, o querer Deus necessariamente a existência da sua bondade, do mesmo modo que a nossa vontade quer necessariamente a beatitude; e que qualquer outra potência tem relação necessária com o seu objeto próprio e principal, p. ex., a vista, com a cor; pois, é da sua natureza o tender para ela. As demais coisas, porém, Deus as quer enquanto ordenadas à sua bondade, como o fim delas.

Ora, querendo o fim não queremos necessariamente os meios, senão os que são tais que, sem eles, o fim não possa existir: assim, querendo a conservação da vida, queremos o alimento e, querendo atravessar o mar, queremos o navio. Mas, não queremos necessariamente aquelas coisas sem as quais o fim pode existir; p. ex., um cavalo, para passear, porque podemos andar sem ele; e o mesmo se dá em outros casos. Ora, sendo a bondade de Deus perfeita, e podendo existir sem os outros seres, que nenhuma perfeição lhe acrescentam, segue-se não ser necessário de necessidade absoluta, que Deus queira coisas diversas de si. Mas o é por suposição; pois, suposto que queira, não pode deixar de querer, pois, suposto que queira, não pode deixar de querer, pois, não se lhe pode mudar a vontade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — De querer Deus abeterno tudo quanto quer, não se segue que o queira necessariamente, exceto por suposição.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora Deus queira necessariamente a sua bondade, contudo, não quer necessariamente aquilo que quer por causa dela, pois, esta pode existir sem tais coisas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não é natural nem inatural a Deus, ou contra a sua natureza, mas é voluntário, querer alguma daquelas coisas que não quer necessariamente.

RESPOSTA À QUARTA. — Às vezes, uma causa necessária tem relação não-necessária com certo efeito; e isso por deficiência deste e não daquela. Assim, a virtude do sol tem relação não necessária com qualquer dos fenômenos contingentes da terra, não por deficiência de tal virtude, mas, do efeito proveniente não necessariamente da causa. Do mesmo modo, o querer Deus não necessariamente alguma daquelas causas que quer, não é por deficiência da sua vontade, mas, pela deficiência da coisa querida, em virtude da natureza mesma desta, que é tal que, sem ela, pode existir a perfeita bondade de Deus. Ora, tal deficiência acompanha todo o bem criado.

RESPOSTA À QUINTA. — Necessariamente a causa em si mesma contingente, há de ser determinada ao efeito por algo de exterior. Ora, a vontade divina, que tem de si mesma a sua necessidade, determina-se por si ao objeto querido, com a qual tem relação não necessária.

RESPOSTA À SEXTA. — Como o ser divino é, em si, necessário, assim também o querer e o saber divinos; mas o saber divino tem relação necessária como seu objeto; não a tem porém o querer divino com as coisas queridas. E isto porque a ciência tem por objeto as coisas, conforme elas existem no sujeito; a vontade, porém, refere-se a elas conforme são em si mesmas. Logo, todas as coisas têm existência necessária, enquanto existem em Deus, mas não têm necessidade absoluta enquanto existem em si mesmas, de modo a serem em si mesmas necessárias. E por isso, Deus sabe necessariamente tudo o que quer.

ART. IV — SE A VONTADE DE DEUS É A CAUSA DAS COISAS


(I Sent., dist. XLIII, q. 2, a. 1; dist. XLV, a. 3; II Cont. Gent., cap. XXIII; De Pot., q. 1, a. 5; q. 3, a. 15)

O quarto discute-se assim. — Parece que a vontade de Deus não é a causa das coisas.

1. — Pois, diz Dionísio: Assim como o nosso sol, sem raciocinar ou preeleger, mas pelo seu próprio ser, ilumina todas as coisas que lhe podem participar da luz; assim também o bem divino, pela sua própria essência, incute em todos os seres existentes raios da bondade divina. Ora, todo o ser que age pela vontade, age racional e deliberadamente. Logo, Deus não age pela vontade e, portanto, a vontade de Deus não é a causa das coisas.

2. Demais. — O essencial ocupa, em qualquer ordem, o primeiro lugar; assim, o que é essencialmente fogo ocupa o primeiro lugar na ordem das coisas ígneas. Ora, Deus é o agente primeiro. Logo, é agente pela sua essência, que é a sua natureza, e portanto age por natureza e não, pela vontade; e não é, pois, a vontade divina a causa das coisas.

3. Demais. — Tudo o que, em virtude de ser o que é, causa outro ser, é causa por natureza e não pela vontade. Assim, o fogo é causa da calefação, porque é quente; mas o artífice é causa do edifício, porque o quer fazer. Ora, Agostinho diz que nós existimos porque Deus é bom. Logo, Deus é causa das coisas pela sua natureza e não, pela sua vontade.

4. Demais. — Cada efeito tem sua causa. Ora, das coisas criadas é causa a ciência de Deus, como já se disse (q. 14, a. 8). Logo, a vontade de Deus não pode ser a causa delas.

Mas, em contrário, a Escritura (Sb 11, 26): E como poderia subsistir coisa alguma, se tu não quisesses?

SOLUÇÃO. — É necessário admitir-se, por tríplice razão, que a vontade de Deus é a causa das coisas, e que Deus age pela vontade e não, por necessidade de natureza, como alguns opinaram.

A primeira razão resulta da própria ordem das causas agentes. Pois, como o intelecto e a natureza agem por causa de um fim, como o prova Aristóteles, é necessário que ao agente por natureza sejam predeterminados, por algum intelecto superior, o fim e os meios necessários para o fim. Assim, o fim e o modo certo de uma seta são-lhe predeterminados pelo sagitário. E, portanto, quem age pelo intelecto e pela vontade deve ter prioridade sobre o agente por natureza. Por onde, sendo Deus o primeiro, na ordem dos agentes, necessariamente há de agir pelo intelecto e pela vontade.

A segunda razão funda-se na função do agente natural, ao qual é próprio produzir um efeito, pois, a natureza não sendo impedida, opera sempre do mesmo modo. E isto porque age conforme ao que é; por isso, como tal, há de produzir um determinado efeito, pois todo agente por natureza tem o ser determinado. Ora, o ser divino não sendo determinado, mas contendo em si toda a perfeição do existir, não lhe é possível agir por necessidade de natureza; salvo se causasse algum ser de existência indeterminada e infinita, o que é impossível, como do sobredito se colhe (q. 7, a. 2). Logo, não age por necessidade de natureza, mas os efeitos determinados pela sua infinita perfeição procedem da determinação da sua vontade e do seu intelecto.

A terceira razão funda-se na relação entre os efeitos e a causa. Pois, os efeitos procedem da causa agente, na medida em que nela preexistem; porque todo agente age semelhantemente a si. Os efeitos, porém, preexistem na causa, ao modo da causa. Ora, o ser divino, sendo o seu próprio inteligir, os seus efeitos nele preexistem de modo inteligível. E, portanto, também dele procedem de modo inteligível e, por conseqüência, ao modo da vontade. Pois, a sua inclinação a realizar o que foi concebido pelo intelecto pertence à vontade. Logo, a vontade de Deus é a causa das coisas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dionísio, com as palavras citadas, não quis excluir a eleição, de Deus, absoluta, mas relativamente; pois, embora a eleição importe um certo discernimento, contudo, comunica não somente a alguns seres a sua bondade, mas a todos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A essência de Deus, sendo o seu inteligir e o seu querer, segue-se, em virtude de agir por essência, que age ao modo do intelecto e da vontade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O bem é o objeto da vontade. Por onde, dizemos que existimos porque Deus é bom, na medida em que a sua bondade é a sua razão de querer tudo o mais, como estabelecemos (a. 2).

RESPOSTA À QUARTA. — De um mesmo efeito, ainda em nós, é causa a ciência, como dirigente, pois ela é a que concebe a forma da obra; e a vontade, como imperante; pois, a forma, enquanto existente apenas no intelecto, não é determinada, senão pela vontade, a existir ou não, no efeito. Por isso, o intelecto especulativo em nada se ocupa com a operação. Mas, a potência é a causa exeqüente, porque designa um princípio imediato de operação. Todas essas faculdades, porém, se unificam em Deus.

ART V. — SE SE PODE DETERMINAR ALGUMA CAUSA À VONTADE DIVINA


(I Sent., dist. XLI, a. 3; I Cont. Gent., cap. LXXXVI, LXXXVII; III, XCVII; De Verit., q. 6, a. 2; q. 23, a. 1, ad 3; a. 6 ad 6; Ephes., cap. I, lect. I)

O segundo discute-se assim. — Parece que se pode determinar alguma causa à vontade divina.

1. — Pois, pergunta Agostinho: Quem ousará dizer que Deus criou irracionalmente todas as coisas? Ora, no agente voluntário, a razão de operar é também a causa de querer. Logo, a vontade de Deus tem alguma causa.

2. Demais. — Quem quer o que fez, por nenhuma outra causa, senão porque quer, não tem nenhuma outra causa de agir senão a sua vontade. Ora, a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, como já se demonstrou (a. 4). Se, portanto, a sua vontade não tem nenhuma outra causa, não devemos buscar outra causa, em todas as coisas naturais, senão essa vontade. E então, todas as ciências são vãs, que se esforçam por descobrir as causas de certos efeitos. Ora, tal é inadmissível. Logo, devemos assinalar alguma causa à vontade divina.

3. Demais. — O que fizemos sem nenhuma outra causa, senão porque quisemos, depende simplesmente de nossa vontade. Se, pois, a vontade de Deus não tem nenhuma causa, resulta que todas as coisas criadas dependem simplesmente da sua vontade, sem nenhuma outra causa, o que é inadmissível.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Toda causa eficiente é maior do que o seu efeito; mas, nada é maior que a vontade de Deus. Logo, não se lhe deve buscar nenhuma causa.

SOLUÇÃO. — De nenhum modo a vontade de Deus tem causa. Para evidenciá-lo devemos considerar, que a causa da nossa vontade querer há de ter semelhança com a causa de o nosso intelecto inteligir. Ora, se o nosso intelecto intelige os princípios e as conclusões, a inteligência do princípio é a causa da ciência da conclusão. Mas, se inteligir a conclusão, no próprio princípio, apreendendo a ambos por uma mesma intuição, a ciência da conclusão não seria causada pela inteligência dos princípios, porque um mesmo ser não pode causar-se a si próprio. Mas, inteligiria os princípios como causa da conclusão.

O mesmo se dá com a vontade, em relação à qual, o fim está para os meios, como, em relação ao intelecto, os princípios, para as conclusões. Por onde, se por um ato quisermos o fim e, por outro, os meios, a vontade do fim será a causa dos meios. Mas se, por um só ato, quisermos o fim e os meios, já não se dará tal, porque um mesmo ser não pode causar-se a si próprio; e contudo será verdadeiro dizer-se que queremos que os meios se ordenem para o fim. Ora, Deus inteligindo todas as coisas, na sua essência, por um só ato, também por um só ato as quer todas, na sua bondade. Donde, assim como, nele, inteligir a causa não é a causa do inteligir os efeitos, mas ele próprio intelige os efeitos, na causa, assim também, sua vontade do fim não lhe é causa de querer os meios; contudo, quer que estes se ordenem àqueles. Logo, quer que os meios existam por causa do fim, mas não os quer aqueles por causa deste.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A vontade de Deus é racional, não porque haja alguma causa de Deus querer, mas porque quer que tal coisa exista por causa de tal outra.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus, querendo que os efeitos provenham de causas certas, para que se conserve a ordem das coisas, não é vão buscarmos além da vontade de Deus, outras causas. Sê-lo-ia, contudo, se a estas buscássemos como primeiras e independentes da divina vontade. E nesse sentido, diz Agostinho: Aprouve à vaidade dos filósofos atribuir também às outras causas efeitos contingentes; porque de nenhum modo podiam descobrir a causa superior a todas as outras, que é a vontade de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Deus, querendo que os efeitos dependam das suas causas, quaisquer efeitos que pressuponham outro não dependem só da vontade de Deus, mas também desse outro. Mas, os efeitos primeiros só da vontade divina dependem. Assim, se disséssemos, que Deus quis que o homem tivesse mãos para servirem ao intelecto, fazendo várias obras; e quis que tivesse intelecto, para que fosse homem; e quis que fosse homem para que o gozasse ou para complemento do universo. O que tudo não pode reduzir-se a fins criados ulteriores. Daí o dependerem tais efeitos da simples vontade de Deus: os outros porém dependem, além disso, da ordem das outras causas.

ART. VI — SE A VONTADE DE DEUS SEMPRE SE CUMPRE


(I Sent., dist., XLVI, a. 1; dist. XLVII, a. 1, 3; De Verit., q. 23, a. 2; I Tim., cap. II, lect. I)

O sexto discute-se assim. — Parece que nem sempre se cumpre a vontade de Deus.

1. — Pois, diz o Apóstolo (1 Tm 2, 4): Deus quer que todos os homens se salvem e que cheguem a ter conhecimento da verdade. Ora, tal não se dá. Logo, a vontade de Deus nem sempre se cumpre.

2. Demais. — A ciência está para a verdade, como a vontade para o bem. Ora, Deus sabe toda a verdade. Logo, quer todo o bem. Mas nem todo o bem se faz; pois, há muitos que podem ser feitos e não se fazem. Logo, nem sempre se cumpre a vontade de Deus.

3. Demais. — A vontade de Deus, sendo a causa primeira, não exclui as causas médias, como já se disse (a. 5). Ora, os efeitos da causa primeira podem ser impedidos por deficiência da causa segunda. Assim, o efeito da virtude motiva é impedido pela debilidade da tíbia. Logo, o efeito da vontade divina pode ser impedido pela deficiência das causas segundas, e, portanto, nem sempre se cumpre essa vontade de Deus.

Mas, em contrário, a Escritura (Sl 113, 3): Tudo quanto quis Deus, fez.

SOLUÇÃO. — Necessariamente, a vontade de Deus há de sempre cumprir-se. Para evidenciá-lo devemos considerar que o efeito, conformando-se pela sua forma, com o agente, o mesmo se dá, com as causas agentes, que se dá com as causas formais. Ora, quanto às formais, embora algum ente possa ser deficiente, em relação a alguma forma particular, contudo nenhum pode sê-lo em relação à forma universal; assim, pode um ente não ser homem ou vivente, nenhum porém há que não seja ser. E o mesmo há de dar-se com as causas agentes. Pois, um ser pode escapar à ordem de uma causa agente particular; não porém, à de uma causa agente universal, na qual estão compreendidos todos os seres particulares.

Se uma causa particular falhar seu efeito, tal será por impedimento de alguma outra causa particular, contida na ordem da causa universal. Portanto, o efeito de nenhum modo pode escapar à ordem da causa universal. E bem o mostram os seres corpóreos. Assim pode ficar impedida uma estrela de produzir o seu efeito, contudo, qualquer efeito resultante, para as coisas corpóreas, da causa corpórea impediente, é forçoso que se reduza, por algumas causas médias, à virtude universal do primeiro céu. Ora, sendo a vontade de Deus a causa universal de todas as coisas, é impossível não consiga o seu efeito. Donde, o que escapa à vontade divina, numa ordem, entra nela por outra. Assim, o pecador pecando, afasta-se, o quanto pode, da vontade divina; reentra, porém, na ordem desta quando punido pela divina justiça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O lugar do Apóstolo, Deus quer que todos os homens se salvem etc., podemos entendê-lo de tríplice modo. Primeiro, acomodando-se a distribuição a este sentido: Deus quer que se salve todos os homens que se salvam; não que haja algum que ele queira que não se salve, mas, que nenhum se salva sem que Deus o queira, como diz Agostinho. De um segundo modo, podemos entendê-lo no sentido em que a distribuição se faça conforme os gêneros dos indivíduos e não conforme os indivíduos de cada gênero: e, assim, Deus quer que haja quem se salve, em todos os estados humanos — homens e mulheres — judeus e gentios, pequenos e grandes: não porém, todos de cada estado. De terceiro modo, segundo Damasceno, entendemo-lo relativamente à vontade antecedente e não à consequente. Mas, esta distinção não se aplica à vontade divina, na qual não há anterioridade nem posterioridade, mas às coisas queridas. E, para a compreensão disto, devemos atender a que cada ser, enquanto bom, é querido de Deus.

Um ser, porém, considerado em si mesmo, primária e absolutamente, pode ser bom ou mau; contudo, considerado juntamente com outro, o que é considerá-lo consequentemente, pode comportar-se de maneira contrária. Assim, considerado absolutamente, é bom o homem viver, e mau morrer; mas se acrescentarmos que certo homem é homicida ou constitui perigo para a multidão, nesse caso é-lhe bom morrer e mau, viver. Portanto, podemos dizer, que o juiz justo quer, antecedentemente, que todo homem viva, mas, conseqientemente, que o homicida seja enforcado. Do mesmo modo, Deus quer, antecedentemente, que todo homem se salve; mas, consequentemente, que alguns se danem, conforme a exigência da sua justiça.

Não queremos porém, de maneira absoluta, mas relativa, o que queremos antecedentemente. Porque a vontade quer as coisas como são em si mesmas; ora, em si mesmas, têm existência particular. Donde, queremos uma coisa absolutamente quando a queremos, consideradas todas as suas circunstâncias particulares; o que é querê-la consequentemente. Por isso, podemos dizer, que o juiz justo quer absolutamente que o homicida seja enforcado; mas, relativamente, e enquanto homem, que viva. O que mais se pode chamar veleidade, que vontade absoluta. E assim, é claro, que tudo o que Deus quer, absolutamente se realiza, embora não se realize o que quer antecedentemente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O ato da virtude cognoscitiva se realiza quando o conhecido está no conhecente; porém, o da virtude apetitiva se ordena às coisas como elas existem em si mesmas. Ora, tudo o que pode ter razão de ser e de verdade está totalmente em Deus de modo virtual; mas, não existe totalmente nas coisas criadas. Portanto, Deus conhece toda a verdade, mas não quer todos os bens, senão enquanto se quer a si mesmo, em quem virtualmente existem todos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A causa primeira quando não é universalmente primeira, isto é, quando não compreende em si todas as causas, pode ser impedida no seu efeito, pela deficiência da causa segunda. Mas, quando é universalmente primeira, o efeito de nenhum modo pode escapar à sua ordem. E é o que se dá com a vontade de Deus, como dissemos.

ART. VII. — SE A VONTADE DE DEUS É MUTÁVEL


(I Sent., dist. XXXIX, q. 1, a. 1; dist. XLVIII, q. 2, a. 1, ad 2; I Cont. Gent., cap. LXXXII; III, cap. XCI, XCVI, XCVIII; De Verit., q. 12, a. 2, ad 3; Hebr., cap. VI, lect. IV)

O sétimo discute-se assim. — Parece que a vontade de Deus é mutável.

1. — Pois, diz a Escritura (Gn 6, 7): Pesa-me de os ter feito. Ora, quem se arrependeu do que fez tem vontade mutável.

2. Demais. — A Escritura diz (Jr 18, 7), da pessoa do Senhor: Falarei contra uma gente e contra um reino, para desarraigá-lo e destruí-lo e arruiná-lo. Mas, se aquela gente se arrepender do seu mal, também eu me arrependerei do mal que tenho pensado fazer contra ela. Logo, Deus tem vontade mutável.

3. Demais. — Tudo o que Deus faz, voluntariamente o faz. Ora, Deus não faz sempre as mesmas coisas: assim, ora manda observar a lei, ora o proíbe. Logo, tem vontade mutável.

4. Demais. — Deus não quer necessariamente o que quer, como se disse antes (a. 5). Logo, pode querer e não querer a mesma coisa. Mas, tudo o que tem poder em relação a dois contrários é mutável; assim o que pode ser e não ser é mutável, quanto à substância; e o que pode estar e não estar num lugar é mutável, quanto ao lugar.

Mas, em contrário, a Escritura (Nm 23, 19): Deus não é, como o homem, capaz de mentir, nem, como o filho do homem, sujeito à mudança.

SOLUÇÃO. — A vontade de Deus é absolutamente imutável. Mas, sobre este assunto, devemos considerar que, mudar-se a vontade, é diferente de querer a mutação de certas coisas. Pois, podemos querer que agora se faça tal coisa, e em seguida, o contrário, permanecendo a mesma vontade imóvel. Mas, a vontade se mudaria se começassemos a querer o que antes não queríamos ou deixássemos de querer o que queríamos. O que não se pode dar, sem pressupormos a mutação, por parte do conhecimento, ou quanto à disposição da substância mesma da pessoa que quer. Ora, como a vontade tem por objeto o bem, podemos começar a querer uma coisa de duplo modo.

De um modo, se nos começar a ser bom o que dantes não nô-lo era; o que não vai sem mudança nossa. Assim, chegando o frio, começa-nos a ser bom assentarmo-nos ao fogo, o que, dantes, não nô-lo era. De outro modo, quando conhecemos como bom o que dantes ignorávamos que o fosse. Pois, deliberamos para sabermos o que nos é bom. Ora, já demonstramos (q. 9, a. 1; q. 14, a. 15) que tanto a substância de Deus, como a sua ciência é absolutamente imutável. Logo, é forçoso que seja a sua vontade absolutamente imutável.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essa expressão do Senhor devemos entendê-la metaforicamente e por semelhança conosco. Assim, quando nos arrependemos, destruímos o que fizemos, embora isso possa fazer-se sem mutação da vontade; como quando às vezes queremos, sem mutação da nossa vontade, fazer algo com intenção simultânea de o destruir em seguida. Assim, pois, dizemos que Deus se arrependeu, por essa semelhança de agir, delindo da face da terra pelo dilúvio o homem que criara.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A vontade de Deus, com ser a causa primeira e universal, não exclui as causas médias, a cuja virtude pertence produzir certos efeitos. Mas, porque todas as causas médias não podem adequar-se à virtude da causa primeira, muitas causas existem na virtude, na ciência, e na vontade divina, que não estão contidas na ordem das causas inferiores, como a ressurreição de Lázaro. Por onde, quem considerasse as causas inferiores poderia dizer: Lázaro não ressurgirá; — mas considerando a causa primeira divina, dizer: Lázaro ressurgirá. — E Deus quer tanto isto como aquilo, a saber, que alguma coisa haja de ser, segundo as causas inferiores; que, contudo, não será, segundo a causa superior; ou reciprocamente.

Por onde, devemos concluir que Deus, por vezes, prenuncia um futuro, enquanto contido na ordem das causas inferiores — como, p. ex., segundo a disposição da natureza ou dos méritos — que, entretanto, não se realizará, porque existe de maneira diferente na causa superior divina. Assim, o que predisse a Ezequias, como refere a Escritura (Is 38, 1) — Dispõe da tua casa, porque tu morrerás e não viverás — não se realizou, porque estava determinado diferentemente e abeterno, pela ciência e pela vontade divina, que é imutável. E, por isso, diz Gregório: Deus muda a sentença, mas não o conselho, isto é, a sua vontade. Quando diz, pois — Também eu me arrependerei — isso deve entender-se metaforicamente, porque os homens, quando não cumprem o que prometeram, dizemos que se arrependeram.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Da razão aduzida não podemos concluir, que Deus tem vontade mutável, mas que quer a mutação.

RESPOSTA À QUARTA. — Embora não seja necessário, absolutamente, querer Deus alguma coisa, contudo é necessário por suposição, por causa da imutabilidade da divina vontade, como dissemos (a. 3).

ART. VIII. — SE A VONTADE DE DEUS IMPÕE NECESSIDADE ÀS COISAS QUERIDAS


(I Cont. Gent., cap. LXXXV; II, cap. XXIX, XXX; De Verit., q. 23, a. 5; De Malo, q. 16, a. 7, ad 15; Quodl., XI, q. 3; XII, q. 3, ad 1; I Periherm., lect. XIV)

O oitavo discute-se assim. — Parece que a vontade de Deus impõe necessidade às coisas queridas.

1. — Pois, diz Agostinho: Só se salva quem quiser que se salve. Logo, devemos rogar-lhe que queira, porque necessariamente se fará se ele o quiser.

2. Demais. — Toda a causa que não pode ser impedida produz necessariamente o seu efeito, porque a natureza sempre obra do mesmo modo, se nada a impedir, como diz Aristóteles. Ora, a vontade de Deus não pode ser impedida, pois o Apóstolo diz (Rm 9, 19): Quem é o que resiste à sua vontade? Logo, a vontade de Deus impõe necessidade às coisas queridas.

3. Demais. — O necessário apriori o é absolutamente; assim, é necessário que o animal morra, por ser composto de elementos contrários. Ora, as coisas criadas por Deus estão para a vontade divina como para o ser primeiro, do qual recebem a necessidade; pois é verdadeira esta condicional — se Deus quiser alguma coisa, ela existirá — e toda condicional verdadeira é necessária. Logo, tudo o que Deus quer é necessário, absolutamente.

Mas, em contrário, Deus quer que se façam todos os bens que se fazem. Se, pois, a vontade impõe necessidade às coisas queridas, segue-se que todo bem se produz necessariamente. E então perece o livre arbítrio, o conselho e coisas semelhantes.

SOLUÇÃO. — A vontade divina impõe necessidade a certas coisas queridas, mas não, a todas. E a razão disto alguns a foram buscar nas causas médias, porque aquelas coisas que Deus produz por causas necessárias são necessárias; mas, contingentes as que produz por causas contingentes. Porém esta opinião não é exata, por duas razões. — A primeira, porque o efeito de qualquer causa primeira é contingente, pela deficiência da causa segunda, que lho impede; assim, a virtude do sol é impedida por deficiência da planta. Ora, nenhuma deficiência da causa segunda pode impedir a vontade de Deus de produzir o efeito. — A segunda é que, se a distinção entre o contingente e o necessário se referir só às causas segundas, tal estará contra a intenção e a vontade divina, o que é inadmissível.

E portanto melhor diremos, que tal se dá pela eficácia da vontade divina. Pois, da causa eficaz para agir resulta o efeito, não somente, de fato, mas também quanto ao seu feitio ou modo de ser. Assim, da debilidade da virtude seminal ativa resulta que o filho nasce diferente do pai, pelos acidentes próprios, quanto ao modo de existir. Ora, a vontade divina, sendo eficacíssima, não somente produz as coisas que quer que se façam, mas, também do modo pelo qual assim as quer. Ora, Deus quer que algumas se façam necessariamente outras, contingentemente, havendo assim ordem nas coisas, para complemento do universo. E por isso, a certos efeitos adaptou causas necessárias e indeficientes, das quais resultam necessariamente. A outros, causas contingentes, defectíveis, das quais resultam efeitos contingentes. Por onde, não é porque as causas próximas sejam contingentes que os efeitos queridos de Deus se realizam contingentemente, mas, porque Deus, querendo que se realizassem contingentemente, adaptou-lhes causas contingentes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As citadas palavras de Agostinho devem entender-se como referentes à necessidade, não absoluta, mas condicional, nas coisas queridas por Deus. Pois, é necessário que a condicional — se Deus quiser tal coisa, ela se dará necessariamente — seja verdadeira.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como nada resiste à vontade divina, resulta que, não somente se farás as coisas que Deus quer que se façam, mas se farão contingente ou necessariamente, conforme ele o quiser.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O posterior tira a sua necessidade do que lhe é anterior, mas ao modo deste. Donde, as coisas feitas por vontade divina têm a necessidade que Deus quer que tenham, a saber, absoluta, ou somente condicional. E assim, nem todas as coisas são necessárias absolutamente.

ART. IX — SE DEUS QUER O MAL


(Infra., q. 48, a. 6; I Sent., dist. XLVI, a. 4; I Cont. Gent., cap. XCV; De Pot., q. 1, a. 6; De Malo., q. 2, a. 1, ad 6)

O nono discute-se assim. — Parece que Deus quer o mal.

1. — Pois, quer todo o bem que existe. Ora, é bom que o mal exista, conforme Agostinho: Embora o mal em si não seja bem, contudo é bom que exista, para que não somente exista o bem, mas também o mal. Logo, Deus quer o mal.

2. Demais. — Dionísio diz: O mal contribui para a perfeição de todo o universo. E Agostinho: A admirável beleza do universo resulta de todos os seres; e nela, mesmo o que é mal, bem ordenado e posto no seu lugar, põe mais em evidência o bem, de modo que este mais agrade e seja mais louvável, quando comparado com o mal. Ora, Deus quer tudo o que pertence à perfeição e à beleza do universo, pois isso é o que ele sobretudo quer nas criaturas. Logo, quer o mal.

3. Demais. — Ser feito e não ser feito o mal são opostos contraditórios. Ora, Deus não quer que o mal não se faça, porque praticando-se certos males nem sempre se cumpriria a vontade de Deus. Logo, Deus quer que o mal se faça.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Ninguém se torna pior por causa de um homem sábio. Mas, Deus vale mais que qualquer sábio. Logo, com maior razão, ninguém se torna pior por causa de Deus. Pois, uma coisa tem como autor a quem voluntariamente a fez. Logo, pela vontade de Deus o homem não se torna pior: Mas, sabemos que por qualquer mal uma coisa se torna pior. Portanto, Deus não quer o mal.

SOLUÇÃO. — Sendo o bem por natureza apetecível, como dissemos (q. 5, a. 1), e o mal se lhe opondo, é impossível o mal como tal ser apetido, quer pelo apetite natural, quer pelo animal, ou pelo intelectual, que é a vontade. Mas o mal podemos apetece-lo por acidente, enquanto conduz a algum bem. E isto se dá com qualquer apetite, pois, o agente natural não busca a privação ou a corrupção; mas uma forma concomitante à privação de outra e à geração de um ser, que é a corrupção de outro. Assim, o leão, matando o cervo, busca o alimento, que não é possível sem a morte deste animal. Semelhantemente, o impudico busca o prazer, que não é possível sem a deformidade da culpa. Ora, o mal que acompanha um bem é a privação de outro bem; pois, nunca seria apetido o mal, nem mesmo por acidente, se o bem, que vai de mistura com ele, não fosse mais apetido do que o outro bem de que ele priva.

Ora, nenhum bem Deus quer mais do que a sua bondade: mas, quer mais um bem que outro. Donde, o mal da culpa, que priva da ordem para o bem divino, Deus de nenhum modo o quer; mas, quer o mal do defeito natural, ou o da pena, querendo algum bem ao qual se une esse mal. Assim, querendo a justiça, que a pena, e querendo seja conservada a ordem da natureza, quer que algumas coisas naturalmente se corrompam.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Alguns disseram, que, embora Deus não queira o mal quer contudo que ele exista ou seja praticado. E isto diziam porque o mal em si mesmo, se ordena para algum bem; e essa ordem criam estar implicada no dizerem — o mal existir ou ser praticado. Mas, esta opinião não é verdadeira, porque o mal não se ordena ao bem, essencialmente, mas por acidente. Pois, não está na intenção do pecador que, do pecado, resulte algum bem, assim como não estava na intenção do tirano que, pelas suas perseguições, brilhasse a paciência dos mártires. E, portanto, não se pode dizer que tal ordem para o bem se subentenda no dizer-se que é bom que o mal exista ou seja praticado. Porque não se julga uma coisa pelo que lhe convém acidentalmente, senão essencialmente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O mal não contribui para a perfeição ou beleza do universo, senão por acidente, como dissemos. Por onde, que o mal contribui para a perfeição do universo é uma conclusão, que Dionísio considera como inconveniente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora o ato de praticar o mal se oponha contraditoriamente ao de não praticá-lo, contudo, querer que o mal seja praticado e que não o seja não se opõem contraditoriamente, pois, ambas são proposições afirmativas. Assim, Deus nem quer que o mal seja praticado, nem que não o seja; mas, quer permitir que o seja, e isto é bem.

ART. X — SE DEUS TEM LIVRE ARBÍTRIO


(II Sent., dist. XXV, q. 1, a. 1; I Cont. Gent., cap. LXXXVIII; De Verit., q. 24, a. 3; De Malo, q. 16, a. 5)

O décimo discute-se assim. — Parece que Deus não tem livre arbítrio.

1. — Pois, Jerônimo diz: Só em Deus não há pecado, nem pode haver; os outros seres, tendo livre arbítrio, podem-se inclinar para uma e outra parte.

2. Demais. — O livre arbítrio é a faculdade da razão e da vontade, que elege o bem e o mal. Ora, Deus não quer o mal, como se disse (a. 9). Logo, não tem livre arbítrio.

Mas, em contrário, diz Ambrósio: O Espírito Santo distribui a cada um conforme quer, isto é, pelo livre arbítrio da vontade e não, por força da necessidade.

SOLUÇÃO. — Temos livre arbítrio em relação ao que queremos não necessariamente ou por instinto natural. Assim, não é por livre arbítrio, mas, por instinto natural, que queremos ser felizes. Por onde, dos outros animais, pelo que buscam por instinto natural, não dizemos que se movem por livre arbítrio. Ora, Deus, querendo a sua bondade necessariamente, e os outros seres, não necessariamente, como demonstramos (a. 3), em relação ao que quer, não necessariamente, tem livre arbítrio.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Parece que Jerônimo exclui de Deus o livre arbítrio, não absolutamente, mas só quanto à possibilidade de cair em pecado.

RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO. — O mal da culpa é assim chamado pela sua aversão à bondade divina, pela qual Deus quer todas as coisas, como já demonstramos (a. 2). Por onde, é claro que é impossível a deus querer esse mal. E contudo, Deus pode querer termos opostos como que tal coisa exista ou não; do mesmo modo que nós, sem pecar, podemos querer e não querer sentar.

ART. XI. — SE DEVEMOS DISTINGUIR EM DEUS A VONTADE QUE SE MANIFESTA POR UM SINAL


(I Sent., dist. XLV, a. 4; De Verit., q. 23, a. 3)

O undécimo discute-se assim. — Parece que não devemos distinguir em Deus a vontade que se manifesta por um sinal.

1. — Pois, assim como a vontade de Deus é causa das coisas, assim também, a sua ciência. Ora, nenhum sinal se atribui à ciência. Logo, também nenhum sinal devemos atribuir à vontade divina.

2. Demais. — Todo sinal que não concorda com o assinalado é falso. Ora, se os sinais atribuídos à vontade divina não concordam com ela, são falsos; e se concordam, são supérfluos. Logo, nenhum sinal devemos atribuir à vontade divina.

Mas, em contrário, a vontade de Deus é una, por ser una a própria essência de Deus. Mas, às vezes, é expressa no plural, como quando diz a Escritura (Sl 110, 2): Grandes são as obras do Senhor, apropriadas a todas as suas vontades. Logo, é necessário que, às vezes, o sinal da vontade seja tomado por ela.

SOLUÇÃO. — De Deus, umas coisas se predicam propriamente, e outras, metaforicamente, como resulta do que já dissemos (q. 13, a. 3). Assim, certas paixões humanas se predicam de Deus metaforicamente, pela semelhança do efeito. Daí, o que é sinal de tal paixão em nós, é significado metaforicamente em Deus, pelo nome dessa paixão. Assim, entre nós, os irados costumam punir e, por isso, é a punição sinal da ira, sendo daí a punição expressa pelo nome de ira, quando atribuída a Deus.

Semelhantemente, o que em nós costuma ser sinal de vontade dizemos, às vezes, metaforicamente que é vontade em Deus; assim, o ordenar alguma coisa é sinal que quer que tal coisa se faça. Por onde, o preceito divino às vezes se chama, metaforicamente, vontade de Deus, segundo aquilo da Escritura (Mt 6, 10): Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. Mas, entre a vontade e a ira há esta diferença, que a ira nunca se atribui propriamente a Deus, pois, em sua significação principal, ela inclui a paixão; ao contrário, a vontade se lhe atribui propriamente, donde o distinguirmos em Deus a vontade propriamente dita da que o é metaforicamente. Pois, a vontade propriamente dita se chama vontade de beneplácito; porém, a vontade metaforicamente dita se chama vontade de sinal, por se chamar vontade ao sinal mesmo dela.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A ciência não é causa do que fazemos, senão pela vontade; pois, não fazemos o que sabemos, sem querermos. Logo, o sinal não se atribui à ciência, como se atribui à vontade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os sinais da vontade se chamam vontades divinas, não porque sejam sinais que Deus queira; mas, porque aquilo, que em nós costuma ser sinal de vontade, chama-se em Deus — vontades divinas. Assim, a punição não é sinal de Deus estar irado, mas, porque em nós é sinal de ira, chamamos-lhe ira divina.

ART. XII — SE SE DISTINGUEM CONVENIENTEMENTE CINCO SINAIS DA VONTADE DIVINA, A SABER: A PROIBIÇÃO, O PRECEITO, O CONSELHO, A OPERAÇÃO E A PERMISSÃO


(I Sent., dist. XLV, a. 4; De Verit., q. 23, a. 3)

O duodécimo discute-se assim. — Parece inconveniente admitir cinco sinais da vontade divina, a saber, a proibição, o preceito, o conselho, a operação e a permissão.

1. — Pois aquilo mesmo que Deus em nós preceitua ou aconselha, às vezes obra em nós; e por vezes permite o mesmo que proibiu. Logo, tais sinais não se devem dividir por oposição.

2. Demais. — Deus nada obra sem querer, como diz a Escritura (Sb 11, 25-26). Ora a vontade de sinal se distingue da de beneplácito. Logo, a operação não deve ser compreendida na vontade de sinal.

3. Demais. — Operação e permissão são própria em geral a todas as criaturas, porque Deus obra em todas e em todas permite que alguma coisa seja feita. Ora, o preceito, o conselho e a proibição são próprios somente à criatura racional. Logo, não entram convenientemente numa mesma divisão, por não serem da mesma ordem.

4. Demais. — O mal é praticado de mais maneiras que o bem, porque o bem só se realiza de um modo, e o mal, de muitos, como está claro no Filósofo e em Dionísio. Logo, é inconveniente determinar em relação ao mal um só sinal — a proibição, e em relação ao bem, dois — o conselho e o preceito.

SOLUÇÃO. — Pelos sinais em questão costumamos manifestar que queremos alguma coisa. Ora, podemos declarar que queremos alguma coisa, por nós mesmos ou por outrem. Por nós mesmos, fazendo-a direta ou indiretamente, e por acidente. Diretamente, quando fazemos alguma coisa, em si mesma, e então dizemos que o sinal é a operação. Indiretamente, quando não há impedimento para o operante, pois ao que remove o obstáculo se chama motor por acidente, como ensina o Filósofo; então dizemos que o sinal é a permissão. Manifestamos, demais, querer alguma coisa, por meio de outrem, ordenando-o a faze-la; ou por indução necessária, preceituando o que queremos e proibindo o contrário; ou por alguma indução persuasória, o que pertence ao conselho. Ora, como por estes modos manifestamos querer alguma coisa, por isso, esses cinco sinais se denominam, às vezes, pelo nome de vontade divina, como sinais da vontade.

Assim, que o preceito, o conselho e a proibição se chamam vontade de Deus, claramente o diz a Escritura (Mt 6, 10): Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. Que a permissão ou a operação se chamem vontade de Deus, está claro em Agostinho: Nada disso aconteceu sem que o Onipotente o queira, permitindo que aconteça, ou fazendo. — Ou também se pode dizer, que a permissão e a operação referem-se ao presente: a permissão, ao mal, e a operação, ao bem. Quanto ao futuro, a proibição é relativa ao mal; o preceito, ao bem necessário; o conselho, ao bem superabundante.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Nada impede que, em relação à mesma coisa, manifestemos diversamente a nossa vontade, assim como existem muitos nomes com a mesma significação. Por onde, nada impede tenham o mesmo objeto o preceito, o conselho, a operação, a proibição e a permissão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como podemos exprimir metaforicamente que Deus quer alguma coisa, que não quer pela vontade propriamente dita, assim também podemos exprimir do mesmo modo, o que quer propriamente. Por onde, nada impede que a vontade de beneplácito e de sinal se refiram ao mesmo objeto. Mas, a operação sempre se identifica com a vontade de beneplácito; não porém, o preceito ou o conselho, quer porque a operação se refere ao presente e o preceito e o conselho, ao futuro, quer, porque a operação é, em si, efeito da vontade, e o preceito e o conselho se exercem por meio de outrem, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A criatura racional é senhora do seu ato. Por isso, em relação a ela distinguem-se certos sinais da divina vontade, enquanto que Deus ordena a criatura racional a agir voluntariamente e por si. Mas, as outras criaturas só agem movidas da operação divina; e por isso, em relação a elas só têm lugar a operação e a permissão.

RESPOSTA À QUARTA. — Todos os males da culpa, embora se realizem multiplamente, contudo convém no discordarem da vontade divina, e por isso se lhes determina um sinal — a proibição. Mas os bens se relacionam diversamente com a bondade divina. Pois, há certos sem os quais não podemos conseguir a fruição dessa bondade; e para esses é o preceito. Outros, porém, nós os conseguimos mais perfeitamente, e para esses é o conselho. Ou devemos dizer, que o conselho visa, não somente a consecução dos melhores bens, mas ainda evitar os menores males.