CAPÍTULO XVII
Creio que esse é o caso do famoso monge João, a quem o imperador Teodósio Magno consultou a respeito de uma guerra civil.
De fato, ele possuía o dom da profecia...
Mas eu não duvido que os dons [do Espírito] sejam distribuídos um por pessoa, isto é, acho que é possível a uma mesma pessoa receber diversos dons.
Certa vez, esse monge João soube que uma mulher muito piedosa desejava vê-lo.
Então, através de seu marido, ela insistiu em marcar uma entrevista, mas ele recusou, como costumava a fazer quando se tratava de mulheres.
Contudo, disse ao marido: "Ide e dize à tua esposa que ela me verá esta noite durante o sono".
E, de fato, ela o viu dando-lhe conselhos convenientes a uma mulher cristã casada.
Quando acordou, essa mulher contou tudo a seu marido, que conhecera pessoalmente esse homem de Deus e o reconheceu tal como ela o descreveu.
O casal, então, revelou esse fato a um senhor que me comunicou, senhor esse sério, nobre e digno de fé.
Ora, se me fosse possível encontrar esse santo monge que, como me disseram, se deixava interrogar pacientemente, sabendo responder tudo com grande sabedoria, perguntar-lhe-ia algo que nos interessa aqui: se ele realmente se apresentou a essa mulher que dormia, pessoalmente, sob os traços aparentes do seu corpo, tal como os nossos corpos se apresentam a nós mesmos durante nossos sonhos; ou se a visão ocorreu pelo ministério dos anjos ou outra modalidade, enquanto ele mesmo fazia outra coisa ou até mesmo dormia, tendo seus próprios sonhos...
E, caso confirmasse esta segunda hipótese, perguntar-lhe-ia se foi por uma revelação do Espírito de profecia que pôde prometer sua aparição naquela noite, durante o sonho da mulher.
Ora, se ele se apresentou pessoalmente em sonho à mulher, ele o fez por uma graça extraordinária e não por meios naturais, isto é, por um dom de Deus e não por seu próprio e natural poder.
Mas, se essa mulher o viu enquanto ele fazia uma outra coisa (por exemplo: estivesse ele dormindo e tendo seus próprios sonhos), o fato se assemelhará ao que lemos nos Atos dos Apóstolos, quando o Senhor Jesus, falando a Ananias sobre Saulo, revela-lhe que Saulo vê Ananias ir até ele, ao passo que este nada sabia sobre isso.
Porém, qualquer que fosse a resposta dada pelo monge João, esse homem de Deus, às minhas perguntas, eu ainda o teria questionado sobre os mártires.
Perguntar-lhe-ia se eles aparecem pessoalmente durante o sono ou outro modo, sob figura que lhes apraz.
E perguntaria, principalmente, como explicar o fato de dêmonios que habitam pessoas possessas queixarem-se de ser atormentados pelos mártires, a ponto de suplicarem que sejam poupados.
Ainda lhe perguntaria se a sua intervenção se produz por ordem de Deus e pelo ministério dos anjos, para a glorificação dos santos e utilidade dos homens, já que os mártires encontram-se em repouso, longe de nós, em visões mais altas, contentando-se em orar por nossa intenção.
De fato, em Milão, junto à sepultura de Gervásio e Protásio, quando se pronunciava os nomes desses heróis e dos falecidos comemorados com eles, os demônios gritavam o nome de Ambrósio, que ainda era vivo, suplicando-lhe que os poupasse.
E o bispo encontrava-se longe dali, ignorando o que se passava e entretido com outras ocupações...
Será que podemos pensar que os mártires às vezes agem por presença efetiva e outras vezes pelos ministérios dos anjos?
Podemos discernir o modo empregado por eles? Sob quais sinais podemos reconhecer isso?
Somente quem recebeu esse dom do Espírito Santo é que pode discernir, pois é o Espírito que distribui os favores particulares a cada um, conforme lhe apraz.
Creio que o monge João, a meu pedido, poderia me esclarecer sobre essas dificuldades.
Em sua escola eu poderia aprender o verdadeiro e correto conhecimento, ou até mesmo poderia crer - mesmo sem o compreender - naquilo que me afirmasse saber com certeza.
Talvez até ele me responderia com as seguintes palavras da Escritura: "Não procures saber o que excede a tua capacidade e não especules o que ultrapassa as tuas forças; mas creia sempre no que Deus te mandou".
Com gratidão, eu também acolheria esse conselho, pois não é de pouco proveito, nas coisas obscuras e incertas - e que não podemos compreender, adquirir a convicção clara e correta de que elas não devem ser investigadas, ou seja, convencer-se de que não é nocivo ignorar aquilo que se quer saber, imaginando que poderíamos tirar proveito em o saber.