sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Questão IV - Da perfeição de Deus

QUESTÃO IV — DA PERFEIÇÃO DE DEUS


Depois de termos tratado da simplicidade divina, devemos tratar da perfeição de Deus. E como um ser é bom na medida em que é perfeito, havemos de tratar, primeiro, da perfeição divina e, depois, da bondade divina. Na primeira questão, discutem-se três artigos:
  1. Se Deus é perfeito;
  2. Se Deus é universalmente perfeito, encerrando em si a perfeição de todos os seres;
  3. Se as criaturas podem ser consideradas semelhantes a Deus.

ART. I — SE DEUS É PERFEITO


De Verit. q.2 a.3 ad 13; Cont. Gentes 1, 28; Compend. Theol. c.20

O primeiro discute-se assim. — Parece Que não é próprio de Deus ser perfeito.

1. — Pois, "perfeito" é como quem diz — totalmente feito. Ora, a Deus não pode convir o ser feito. Logo, nem ser perfeito.

2. Demais. — Deus é o princípio primeiro das coisas. Ora, este é imperfeito; assim, a semente é o princípio dos animais e das plantas. Logo, Deus é imperfeito.

3. Demais. — Como já estabelecemos, a essência de Deus é o ser mesmo. Ora, parece que este é imperfeitíssimo, pois é generalíssimo e susceptível de todas as adições. Logo, Deus não é perfeito.

Mas, em contrário, a Escritura (Mt. 5, 48): Sede vós logo perfeitos como também vosso pai celestial é perfeito.

SOLUÇÃO. — Conforme refere Aristóteles, certos filósofos antigos — os Pitagóricos e Speusipo — não concebiam que o princípio primeiro fosse ótimo e perfeitíssimo. E a razão é que tais filósofos consideravam só o princípio material. Ora, o principio material primeiro é imperfeitíssimo; pois, sendo a matéria em si mesma potencial, por força o princípio material primeiro há de ser totalmente potencial por excelência e, portanto, totalmente imperfeito. Deus, porém, é considerado como primeiro princípio, não material, mas, no gênero, da causa eficiente; e, então, há de necessariamente ser perfeitíssimo. Pois, assim como, em si mesma, a matéria é potencial, assim, o agente é, em si mesmo, atual. Por onde, o primeiro princípio ativo há de, por força, ser soberanamente ativo, e, por conseqüência, perfeito em máximo grau. Pois, um ser é considerado perfeito na medida em que é atual; porque perfeito se chama aquilo ao que nada falta, nos limites da sua perfeição.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz Gregório: Balbuciando, proclamamos como podemos os atributos excelsos de Deus: pois, o que não é feito, não pode, propriamente, ser chamado perfeito. Ora, como, dentre as cousas feitas, chamamos perfeita à que passa da potência para o ato, essa palavra — perfeito — foi empregada para significar tudo aquilo a que não falta o ser atual, quer o tenha por ser feito, quer não.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O princípio material, que em nós existe imperfeitamente, não pode ser, em absoluto, primeiro, mas é precedido por outro, que é perfeito. Assim, embora o sêmen seja o principio do animal dele gerado, tem contudo, como princípio, o animal ou a planta donde deriva. Pois, antes do potencial, há de necessariamente existir o atual, porque o ser potencial não se atualiza senão pelo que já é atual.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O ser em si é o mais perfeito de todos por atualizar a todos; pois, nenhum ser é atual senão enquanto existente. Por onde, o ser em si é o que atualiza todos os outros e, mesmo, as próprias formas. Por isso, não está para outros como o recipiente para o recebido, mas, antes, como o recebido para o recipiente. Assim, quando designo o ser do homem, do cavalo, ou de qualquer outro ente, considero o ser mesmo como princípio formal e como recebido; e não como um sujeito a que sobrevém a existência.

ART. II — SE DEUS ENCERRA AS PERFEIÇÕES DE TODOS OS SERES


De ente et ess. c.6; In Sent 1, d.2 a.23: Cont. Gentes 1, 28.31.40; De Div. Nom. c.5 lect. 1.2.

O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não encerra a perfeição de todos os seres.

1. — Pois, Deus é simples, como já se demonstrou. Ora, muitas e diversas são as perfeições dos seres. Logo, Deus não encerra todas as perfeições deles.

2. Demais. — Os contrários não podem coexistir num mesmo ser. Ora, as perfeições dos seres são contrárias; pois, cada espécie se completa pela sua diferença especifica, e as diferenças que dividem um gênero e constituem as espécies, são contrárias. Logo, não podendo os contrários coexistir num mesmo ser, Deus não encerra as perfeições de todos os seres.

3. Demais. — O vivente é mais perfeito que o ser simplesmente existente, e o que pode compreender, do que o simples vivente. Logo, viver é mais perfeito que existir e compreender, que viver. Ora, Deus é o ser, por essência. Por onde, não encerra em si a perfeição da vida, da sabedoria e outras.

Mas, em contrário, Dionisio: Deus encerra, de modo perfeito, em seu ser, tudo o que existe.

SOLUÇÃO. — Deus encerra em si as perfeições de todos os seres e, por isso, é denominado ser universalmente perfeito; pois, no dizer do Comentador, não lhe falta nobreza de nenhum gênero. — E isto pode ser demonstrado de dois modos. — Primeiro, porque toda a perfeição do efeito deve existir na causa eficiente. — Segundo, conforme a mesma noção, quando o agente é unívoco; tal o caso de um homem, que gera outro. Ou de modo mais eminente, sendo o agente equívoco; assim, no sol está o equivalente das coisas por virtude dele geradas. Ora, como é manifesto, o efeito preexiste virtualmente na causa agente. Mas, preexistir na virtude da causa agente é preexistir de modo não mais imperfeito, senão, mais perfeito. Pois, preexistir na potência da causa material é preexistir de modo mais imperfeito, porque a matéria, como tal, é imperfeita; ao contrário, o agente, como tal, é perfeito. Ora, sendo Deus a causa primeira eficiente das coisas, necessário é que as perfeições de todas nele preexistam de modo mais eminente. E nesta razão tocou Dionísio dizendo: Deus, sendo um ser deixa de ser outro, mas, é tudo, como causa de tudo. — Segundo, porque, como do sobredito resulta, Deus é o ser por si subsistente; por onde, é necessário encerre em si a perfeição total do ser. Ora, é manifesto que, se um corpo cálido não tem toda a perfeição da calidez, é porque não participa do calor em toda a natureza deste; mas se o calor fosse por si subsistente, nada lhe poderia faltar da sua virtude. Donde, sendo Deus o próprio ser subsistente, nenhuma das perfeições do ser lhe pode faltar. Ora, na perfeição do ser se incluem as perfeições de todas as causas, pois cada uma é perfeita na medida em que é ser. Donde resulta que a Deus não pode faltar nenhuma das perfeições das causas. E também nesta razão toca Dionísio, dizendo, que Deus não existe, de certo modo, mas de modo primário e uniforme, encerra em si a totalidade do ser, pura, simples e incircunscritamente. E, depois, acrescenta que é ele o ser de tudo que subsiste.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Assim como o sol no dizer de Dionísio, sendo único e luzindo para todos igualmente, não deixa de encerrar, virtual e antecedentemente, na unidade da sua ação, as substâncias e as qualidades múltiplas e diferentes dos seres sensíveis, assim, com maior razão, na causa universal, hão de necessariamente preexistir todas as coisas unificadas na sua própria natureza.

Por onde, é clara a resposta à segunda objeção.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Dionísio, no mesmo capítulo, embora o ser em si seja mais perfeito que a vida, e a vida, que a sabedoria, consideradas essas noções abstratamente, todavia, o vivente é mais perfeito que o simples ser, porque também o tem; e o que tem a sabedoria, além de ser, vive. Embora, pois, a noção do ser em si não inclua a do vivente e a do que tem a sabedoria, por não haver necessidade de o participante do ser o participar em todas as suas formas; contudo, o ser mesmo de Deus inclui em si a vida e a sabedoria, por não lhe poder faltar nenhuma das perfeições do ser, a ele que é o ser mesmo subsistente.

ART. III — SE ALGUMA CRIATURA PODE SER SEMELHANTE A DEUS


q.6 a.4; q.13 a.2; In Sent. 1 d.48 q.1 a.1; 2 d.16 q.1 a.1 ad 3; De Verit. q.2 a.11, q.3 a.1 ad 9; q.23 a.7 ad 9; Cont. Gentes 129; De Pot. q.7 a.7; De div. nom. c.9 lect. 3.

O terceiro discute-se assim. — Parece que nenhuma criatura pode ser semelhante a Deus.

1. — Pois, como diz a Escritura (Sl. 85, 8), não há semelhante a ti entre os deuses, Senhor. Ora, dentre todas as criaturas, são mais excelentes as que se chamam deuses, por participação. Com muito menos razão, portanto, podem outras criaturas ser chamadas semelhantes a Deus.

2. Demais. — Semelhança supõe comparação. Ora, não se comparam coisas de gêneros diversos, que, portanto, também não têm semelhança entre si; assim, não dizemos que a doçura é semelhante à brancura. E não sendo nenhuma criatura congênere com Deus, que não pertence a nenhum gênero, segundo já se demonstrou, resulta que nenhuma criatura é semelhante a Deus.

3. Demais. — Semelhantes se chamam os seres que têm a mesma forma. Ora, nenhum ser pode ter a mesma forma que Deus, pois em nenhum, senão só em Deus, a essência é a existência. Logo, nenhuma criatura pode ser semelhante a Deus.

4. Demais. — Seres semelhantes têm semelhança mútua, pois a um se assemelha o outro. Se, pois, alguma criatura for semelhante a Deus, há de Deus ser semelhante a ela, o que vai contra a Escritura (Is. 40,18) que diz: A quem, pois, tendes vós assemelhado a Deus?

Mas, em contrário, a Escritura (Gn. 1, 26): Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. E noutro lugar (1 Jo. 3, 2): Quando ele aparecer seremos semelhantes a ele.

SOLUÇÃO. — Fundando-se a semelhança na conveniência ou comunidade de forma, a sua multiplicidade é correlativa aos múltiplos modos por que existe a comunidade formal. Assim, certas coisas se consideram semelhantes por terem de comum a mesma forma, na mesma proporção e do mesmo modo; e, destas se diz que são, não somente semelhantes, mas iguais na semelhança; assim, duas coisas igualmente brancas são semelhantes pela brancura. E esta é a mais perfeita das semelhanças. — De outra maneira, dizem-se semelhantes as coisas que têm forma comum, na mesma proporção, não, porém, do mesmo modo, mas, mais ou menos; assim, se diz que o menos branco é semelhante ao mais branco. E esta semelhança é imperfeita. — De terceiro modo, semelhantes se dizem as coisas que têm forma comum, não porém, na mesma proporção, como claramente se dá com os agentes não unívocos, Ora, todo agente, como tal, produzindo efeito semelhante a si, e agindo pela sua forma, é necessário haver no efeito a semelhança da forma do agente. Se, pois, este for da mesma espécie que o seu efeito, haverá semelhança formal entre um e outro, na mesma proporção especifica; assim, um homem gera outro. Se, porém, o agente não for da mesma espécie, haverá semelhança, não, porém, quanto à proporção específica; assim, as coisas geradas pela virtude do sol encerram, certamente, alguma semelhança com ele, do qual recebem a forma, por semelhança, não específica, mas genérica apenas. Se, pois, houver algum ente não contido em nenhum gênero, os seus efeitos ainda mais remotamente terão a semelhança da forma agente e não chegarão a participar da semelhança desta, na mesma proporção especifica ou genérica, mas só analogicamente, no sentido em que se diz que o ser em si é comum a tudo.

E deste modo, as coisas criadas por Deus, primeiro e universal princípio de todos os seres, com ele se assemelham, enquanto seres.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como ensina Dionísio, a expressão da Escritura — nada é semelhante a Deus — não é contrária ao assemelhar-se com ele; pois, as mesmas coisas podem ser semelhantes e não semelhantes a Deus. Semelhantes, enquanto o imitam, na medida em que é possível ser imitado quem não e perfeitamente imitável, Não semelhante, por outro lado, enquanto deficientes, relativamente à causa; e isso, não somente no concernente à intensidade e à remissão, no sentido em que o menos branco é deficiente em relação ao mais branco, mas ainda, por não haver conveniência específica nem genérica.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus não se comporta com as criaturas como sendo seres de gêneros diversos; mas, como o ser que está acima de todos os gêneros, dos quais é o princípio.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não se diz que a semelhança da criatura com Deus se funda na comunidade de forma, relativamente à mesma proporção genérica, e específica. Mas, só relativamente à analogia, sendo então, Deus o ser por essência e os outros, por participação.

RESPOSTA À QUARTA. — Embora de algum modo se possa conceder que a criatura é semelhante a Deus, contudo, de maneira nenhuma é admissível seja Deus semelhante à criatura. Pois, como diz Dionísio, entre seres da mesma ordem admite-se a mútua semelhança; não, porém, entre a causa e seu efeito. Assim, dizemos que a imagem de uma pessoa lhe é semelhante, e não, ao contrário. E, do mesmo modo, pode-se de certa maneira dizer que a criatura é semelhante a Deus; não, porém, que seja Deus semelhante à criatura.

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