sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Questão VI - Da Bondade de Deus

QUESTÃO VI — DA BONDADE DE DEUS


Em seguida devemos tratar da bondade de Deus. E, nesta questão, discutem-se quatro artigos:
  1. Se ser bom convém a Deus;
  2. Se Deus é o sumo bem;
  3. Se só ele é o bem por essência;
  4. Se todas as coisas são boas em virtude da bondade divina.

ART I. — SE SER BOM CONVÉM A DEUS


(I Cont. Gent., cap. XXXVII; XII Metaphys., lect. VII)

O primeiro discute-se assim. — Parece que ser bom não convém a Deus.

1. — Pois a noção de bem implica a de modo, espécie e ordem. Ora, sendo Deus imenso e não ordenado a nenhum outro ser, estas noções não lhe convém. Logo, também, não lhe convém o ser bom.

2. Demais. — Bem é o que todos os seres desejam, ora, como nem todos o conhecem, nem todos o desejam, porque não se deseja o que não se conhece. Logo, ser bom não convém a Deus.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Lm. 3, 25): Bom é o Senhor para os que nele esperam, para a alma que o busca.

SOLUÇÃO. — Ser bom convém a Deus de modo excelente. Pois uma coisa é boa na medida em que é desejável. Por outro lado, todo ser deseja a perfeição própria; e a perfeição e a forma do efeito é uma certa semelhança do agente, porque todo agente produz um ato que lhe é semelhante. Por onde, o agente, em si mesmo, é desejável e assume o caráter de bem; pois dele é desejada a participação, por semelhança. Ora, como Deus é a causa eficiente primeira de todos os seres, é claro que lhe convém a característica de bom e desejável. E, por isso, Dionísio atribui o bem a Deus, como causa eficiente primeira, dizendo que Deus é chamado bom como sendo o princípio porque todas as coisas subsistem.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO — Ter modo, espécie, e ordem pertence à natureza do bem criado. Ora, o bem existe em Deus, como na sua causa. Logo, pertence a Deus impor aos outros o modo, a espécie e a ordem, que nele existem como na causa.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Todos os seres, desejando as próprias perfeições, desejam a Deus mesmo, por serem elas umas semelhanças do ser divino, conforme resulta claro do que já dissemos. E assim, das criaturas que desejam a Deus, umas — as racionais — o conhecem em si mesmo; outras, porém, conhecem certas participações de sua bondade de que também é susceptível o conhecimento sensível; outras, por fim, têm um apetite natural, sem conhecimento, inclinadas que são para seus fins por um ser superior dotado de conhecimento.

ART. II — SE DEUS É O SUMO BEM


(II Sent., dist. I, q.2, a.2, ad. 4; I Cont. Gent. Cap. XLI)

O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não é o sumo bem.

1. — Pois o sumo bem diz algo mais que bem; do contrário, conviria a qualquer bem. Ora, tudo o que é constituído por adição é composto. Logo, o sumo bem o é. Mas, sendo Deus sumamente simples, como já se demonstrou, não é o sumo bem.

2. Demais. — O bem é o que todos os seres desejam, como diz o Filósofo. Ora, além de Deus, fim de todos os seres, nada mais há que todos desejem. Logo, não há outro bem além de Deus; o que também se vê na Escritura (Lc. 18, 19): Ninguém é bom senão só Deus. Ora, sumo implica comparação com outros: assim, o sumo cálido supõe comparação com tudo o que é cálido. Logo, Deus não pode ser considerado sumo bem.

3. Demais. — sumo importa comparação. Ora, não se comparam coisas que não são do mesmo gênero; assim, inconvenientemente seria dizer que a doçura é maior ou menos que a linha. Ora, Deus, não sendo do mesmo gênero que os outro bens, como resulta claro do sobredito, conclui-se que não pode ser considerado, em relação a eles, o sumo bem.

Mas, em contrario, diz Agostinho que a Trindade das divinas Pessoas é o sumo bem, que sabem discernir as almas inteiramente puras.

SOLUÇÃO. — Deus é o sumo bem, absolutamente, e não só num determinado gênero ou ordem de coisas. Assim, o bem é atribuído a Deus, conforme já se disse, enquanto todas as perfeições desejadas dele efluem, como de causa. Não efluem dele, porém, como de agente unívoco, segundo do sobredito claramente resulta. Mas, como de agente, que não tem de comum com os seus efeitos nem a espécie nem o gênero. Ora, a semelhança do efeito que se encontra, na causa unívoca, de maneira uniforme, encontra-se na causa equivoca, de maneira mais excelente; assim, o calor existe de modo mais excelente no sol, que no fogo. Por onde, existindo o bem em Deus, como na causa primeira, não unívoca de todos os seres, nele necessariamente existe de modo excelentíssimo. E, por isso, é chamado sumo bem.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O sumo bem não acrescenta ao bem nenhuma realidade absoluta mas, somente, uma relação. A relação, porém, em virtude da qual alguma coisa se diz de Deus, relativamente às criaturas, só nestas existe realmente e não, nele, em quem existe só racionalmente; assim, um objeto é considerado cognoscível relativamente à ciência, não porque se refira a esta, mas porque esta se lhe refere a ele. E assim, de nenhum modo, há qualquer composição no sumo bem, mas os outros seres é que lhe são inferiores em bondade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O dito — o bem é o que todos os seres desejam — não significa que cada bem seja desejado por todos, mas, que tudo o que é desejado tem o caráter de bem. E o dito — ninguém é bom senão só Deus — se entende do bem por essência, como a seguir se dirá.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Coisas que não pertencem a um mesmo gênero não podem ser comparadas, desde que estão contidas em gêneros diversos. Ora, negamos que Deus seja do mesmo gênero que os outros bens, não por pertencer a algum outro gênero, mas por estar fora de todos os gêneros e ser o princípio de todos. De modo que é comparável a tudo o mais, por excelência; relação essa expressa pela qualidade de sumo bem.

ART. III – SE É PRÓPRIO DE DEUS SER BOM POR ESSÊNCIA


(I Cont. Gent., cap. XXXVIII; III, cap. XX; De Verit., q. 21, a. 1, ad 1; a. 5; Compend. Theol., cap. CIX; De Div. Nom., cap. IV, lect. I; In Boet., De Hebdomad., Lect. III, IV)

O terceiro discute-se assim. — Parece que não é próprio de Deus ser bom por essência.

1. — Pois também como a unidade, o bem se converte no ser, conforme já se disse. Ora, todo ser é essencialmente um, segundo claramente se vê no Filósofo. Logo, todo ser é bom por essência.

2. Demais. — Se o bem é o que todos os seres desejam, como todas as coisas desejam a existência, a existência de cada uma delas é-lhe o bem próprio. Ora, cada coisa existe pela sua essência. Logo, também será boa por essa mesma essência.

3. Demais. — Cada coisa é boa pela sua bondade; se pois, alguma há que não seja boa pela sua essência, a essência não lhe há-de necessariamente ser a bondade. Logo, sendo a bondade ente, é necessário que seja boa; mas, se outra por bondade o for, ressurge a questão. Ora, ou se há-de proceder ao infinito, ou se há-de chegar a alguma bondade que não seja boa por outra. Logo, pela mesma razão, devia-se ficar no primeiro termo, sendo, então, cada coisa boa pela sua própria essência.

Mas, em contrario, diz Boécio que todos os seres, menos Deus, são bons por participação e, portanto, não por essência.

SOLUÇÃO. — Só Deus é bom pela sua essência. Pois dizemos que um ser é bom enquanto perfeito, e uma coisa pode ter perfeição de três modos. A primeira a constitui na sua existência; pela segunda, alguns acidentes se lhe acrescentam, necessários à sua perfeita operação; pela terceira atinge uma outra coisa, como fim. Assim, a primeira perfeição de fogo consiste na sua existência, que lhe advém da forma substancial; a segunda, na calidez, leveza, secura e acidentes semelhantes; a terceira perfeição em repousar no seu lugar. Ora, esta tríplice perfeição a nenhum ser é própria, por essência, senão só a Deus, de quem só a essência é a existência, e a quem nenhum acidente advém; e o que dos mais seres se diz acidentalmente, a ele lhe convém essencialmente, como, ser poderoso, sábio e atribuições semelhantes, conforme do sobredito claramente resulta; e assim, também ele a nenhum outro ser se ordena como ao fim, antes é o fim último de todas as coisas. Por onde, é manifesto que só Deus tem, por essência, omnímoda perfeição. Logo, só ele é bom por essência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A unidade não implica a noção de perfeição mas, só a de indivisibilidade, que convém a cada coisa em conformidade com a sua essência. Quanto às essências dos seres simples, elas são indivisas, atual e potencialmente; as dos compostos, porém, só atualmente. Logo, é forçoso que cada coisa seja uma por essência, mas não boa, desse mesmo modo, como se demonstrou.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora uma coisa seja boa na medida em que tem a existência, contudo, a essência da criatura não se lhe identifica com a existência. Logo, não se conclui que uma coisa criada seja boa pela sua essência.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A bondade da criatura não é a essência da mesma, mas, algo de acrescentado que consiste, quer, na sua existência, quer em alguma perfeição sobreveniente, ou na sua ordem para um fim. Porém essa mesma bondade acrescentada chama-se boa, do mesmo modo por que se chama ser. Ora, é considerada ser pela razão de, por ela, alguma coisa existir e não, por existir ela, em virtude de outra coisa. Logo, será considerada boa porque, por ela, alguma coisa é boa e não por ter alguma outra bondade que a torne tal.

ART. IV — SE TODAS AS COISAS SÃO BOAS PELA BONDADE DIVINA


(I Sent., dist. XIX, q. 5, a. 2, ad 3; I Cont. Gent., cap. XL; De Verit., q. 21, a. 4)

O quarto discute-se assim. — Parece que todas as coisas são boas pela bondade divina.

1. — Pois, diz Agostinho: Considera tal bem e tal outro; elimina isto e aquilo e contempla o bem em si mesmo, se puderes; então, verás Deus, bem que não o é por outro, mas, bem de todos os bens. Logo, as coisas são boas pelo bem mesmo, que é Deus.

2. Demais. — Como diz Boécio, todas as coisas se consideram boas enquanto ordenadas a Deus, e isto em razão da bondade divina. Logo, todas são boas em razão desta bondade.

Mas, em contrario, todas as coisas são boas enquanto existem. Ora, dizemos que existem, não pelo ser divino, mas, pelo próprio. Logo, todas são boas, não pela bondade divina, mas pela própria.

SOLUÇÃO. — Nada impede, que aquilo que implica relação seja denominado como do exterior; assim, o que está colocado num lugar é por este denominado, e o que é medido é designado pela sua medida. Variaram, porém, as opiniões, quanto ao que recebe denominação absoluta. — Assim, Platão admitia espécies separadas de todas as coisas, e que os indivíduos recebem a sua denominação, quase participando dessas espécies; p. ex., dizemos que Sócrates é homem, por participar da idéia separada de homem, e assim como admitia serem separadas as idéias de homem e de cavalo, a que chamava homem em si, e cavalo em si, assim também considerava separadas as idéias de ser e de unidade, a que chamava ser em si e unidade em si, pela participação das quais cada ser é ente e uno. Porém, ensinava que o ente em si, e a unidade em si, constituem o sumo bem, e como o bem e a unidade no ser se convertem, dizia que o bem em si mesmo é Deus, por cuja participação todas as coisas são chamadas boas. — E embora tenhamos por irracional esta opinião, como também Aristóteles abundantemente o prova, por ensinar que as espécies separadas das coisas naturais são subsistentes por si mesmas, contudo é absolutamente verdadeiro, que há uma realidade primeira que é, por essência, ser e bondade e é chamada Deus, conforme de sobredito resulta. E com este modo de ver também Aristóteles concorda. — Ora, é participando dessa realidade, primaria e essencialmente ser e bondade, por uma certa forma de assimilação, embora remonta e deficiente, que as coisas podem ser consideradas seres e boas, como do sobredito se conclui. — Assim, pois, cada ser é bom pela divina bondade, princípio primeiro exemplar, efetivo e final de toda bondade. Contudo, cada realidade é considerada boa também por uma semelhança da divina bondade, que lhe é inerente, que é a sua forma própria e o fundamento essencial das suas denominações. De modo que há uma só bondade, em virtude da qual todas as coisas são boas; e, por outro lado, há muitas bondades. Donde se deduzem claras as respostas às objeções.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Questão V - Do Bem em geral

QUESTÃO V — DO BEM EM GERAL


Em seguida, devemos tratar do bem. Primeiro, do bem em geral; segundo, da bondade de Deus; na primeira questão discutem-se seis artigos:
  1. Se o bem e o ser constituem uma só realidade;
  2. Suposto que difiram só pela razão, qual é o primeiro na ordem racional — o bem, ou o ser;
  3. Suposto que o ser seja o primeiro, se todo o ser é bom;
  4. A que causa se reduz a noção do bem;
  5. Se a essência do bem consiste no modo, na espécie e na ordem;
  6. Da divisão do bem em honesto, útil e deleitável.

ART. I — SE O BEM DIFERE REALMENTE DO SER


(I. Sent., dist. VIII, q.1, a.3; dist. XIX, q.5, a.1, ad 3; De Verit., q.1, a.1., q.21, a.1; De Pot., q.3, a.7, ad 6)

O primeiro discute-se assim. — Parece que o bem difere realmente do ser.

1. — Pois diz Boécio: Vejo que, nas coisas, difere o ser do bem. Logo, ser e bem diferem realmente.

2. Demais. — Nenhum ser se dá forma a si mesmo. Ora, o bem se concebe como informação do ser, como se vê no Comentador. Logo, o bem difere realmente do ser.

3. Demais. — O bem é susceptível de mais e de menos, e o ser não o é. Logo, este difere realmente daquele.

Mas, em contrário, Agostinho: Somos bons na medida em que somos.

SOLUÇÃO. — O bem e o ser, realmente idênticos, diferem racionalmente, o que assim se demonstra. A essência do bem consiste em tornar alguma coisa desejável; pois, por isso, diz o Filósofo, que o bem é o que todas as coisas desejam. Ora, é claro que uma coisa é desejável na medida em que é perfeita, pois todos os seres desejam a própria perfeição. E como um ser é perfeito na medida em que é atual, é claro que é bom na medida em que é ser, pois o ser é a atualidade das coisas, como resulta manifestamente do que já se disse. Por onde, é claro, que o bem e o ser são realmente idênticos; mas, o bem acrescenta à noção de ser a de desejável, que lhe é estranha.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora o ser e o bem sejam na realidade idênticos, contudo, como racionalmente diferem, essas duas noções não têm, tomadas em absoluto, a mesma significação. Pois, como o ser significa, propriamente, o que é atual, e o ato, em sentido próprio, se ordena à potência, é ente, absolutamente falando, o que se distingue, primariamente da potência pura. Ora, tal é o caso de toda realidade substancial; e, por isso, pelo seu ser substancial, é que uma coisa é chamada ente, em sentido absoluto. Pelos atos que se lhe acrescentarem, porém, é chamada ser, de certo modo; assim, ser branco exprime o ser sob determinado aspecto, porque o tornar-se branco, advindo ao já atualmente preexistente, não elimina nenhum estado potencial absoluto. Mas, bem significa perfeição desejável e, por conseqüência, refere-se a um estado último. Por onde, o que tem a perfeição última se chama o bem perfeito absoluto. Aquilo, porém, que não tem essa perfeição, que deve ter, embora tenha a perfeição proveniente da atualidade, não é considerado, contudo, absolutamente, nem perfeito, nem bom, senão só relativamente. Assim, pois, pelo seu ser primeiro, e que é substancial, uma coisa é considerada ser, no sentido absoluto da palavra, e boa relativamente, isto é na medida em que é ser. Pelo contrário, quanto ao último ato, é considerada ser, relativamente, e boa, absolutamente. Por onde, o dito de Boécio, que nas coisas, difere o ser, do bem, deve ser referido ao bem e ao ser, tomados absolutamente; pois, pelo ato primeiro, uma coisa é ser, absolutamente, como, pelo ato último é bem, em sentido absoluto. E contudo, pelo ato primeiro, é bem, de certo modo, assim como, de certo modo é ente, quanto ao último ato.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O bem se concebe como informação, quando considerado, em sentido absoluto, quanto ao último ato.

E semelhantemente, deve-se responder à terceira objeção, que o bem é susceptível de mais e de menos, enquanto ato superveniente, p. Ex., como ciência ou virtude.

ART. II – SE O BEM É LOGICAMENTE ANTERIOR AO SER


(I. Sent., dist. VIII, q.1, a.3; III Cont. Gent., cap. XX; De Verit., q. 21. a.2, ad 5; a. 3)

O segundo discute-se assim. — Parece que o bem é logicamente anterior ao ser.

1. — Pois a ordem dos nomes é relativa ao que significam. Ora, entre os nomes de Deus, Dionísio coloca o bem, antes do ser. Logo, aquele é logicamente anterior a este.

2. Demais. — Devemos considerar como primeira a noção que se estende a maior número de objetos. Ora, o bem tem maior extensão que o ser; pois, como diz Dionísio, o bem se estende ao que existe e ao que não existe, ao passo que o ser, só ao que existe. Logo, o bem é logicamente anterior ao ser.

3. Demais. — O que é mais universal tem, logicamente prioridade. Ora, o bem é mais universal que o ser, porque é, por natureza, desejável, e certos desejam mesmo o não-ser, como diz a Escritura (Mt. 26,24): Melhor fora ao tal homem não haver nascido, etc. logo, o bem é logicamente anterior ao ser.

4. Demais. — não só o ser é desejável, mas também a vida, a sabedoria e coisas semelhantes. Por onde se vê, que o ser é um caso particular do desejável, do qual o bem exprime o aspecto universal. Logo, o bem é logicamente anterior ao ser.

Mas, em contrário, diz o livro De Causis: A primeira das coisas criadas é o ser.

SOLUÇÃO. — O ser é logicamente anterior ao bem. Pois a noção que o nome significa é aquilo que a inteligência concebe a respeito do objeto e que exprime pela palavra. Ora, é anterior logicamente aquilo que o intelecto concebe em primeiro lugar; e isto é o ser, porque uma coisa é cognoscível na medida em que é atual, como diz Aristóteles. Por onde, o ser é o objeto próprio do intelecto e, portanto, é o primeiro inteligível, assim como o som é o primeiro audível. Logo, logicamente o ser é anterior ao bem.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dionísio considera os nomes divinos e os classifica enquanto se referem à causalidade divina; pois diz, designamos a Deus pelas criaturas, como a causa, pelos efeitos. Ora, o bem, sendo de natureza desejável, implica relação de causa final, cuja causalidade é a primeira de todas; pois o fim é considerado causa das causas porque faz agir o agente, que, por sua vez, move a matéria para a forma. E assim, no causar, o bem é anterior ao ser, como o fim, à forma; e é por isso que, entre os nomes designativos da causalidade divina, o bem vem antes do ser. — Por outro lado, os Platônicos, não distinguindo a matéria da privação, e considerando-a não-ser, davam maior extensão à participação do bem que à do ser; mas como a matéria prima participa do bem, para o qual tende, e como nada tende senão para o semelhante, a matéria dos platônicos, sendo não-ser, não participa do ser. E por isso diz Dionísio que o bem se estende ao que não existe.

Donde se deduz clara a resposta à segunda objeção — Ou também se pode dizer que o bem se estende ao existente e ao não-existente; não, pela predicação, mas, pela causalidade; e, assim, devemos entender por não-existente, não o que absolutamente não existe, mas o que, sendo potencial, está privado da atualidade. Pois o bem exerce a função de fim, no qual repousa o que já é atual e para o qual se move o que, ainda não estando atualizado, é potencia pura. O ser, porém, implica somente a relação de causa formal e inerente ou exemplar; ora, essa causalidade só se estende ao que já é atual.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O não-ser é desejável, não por si, mas acidentalmente, enquanto é desejável a suspensão de um mal, a qual se dá pelo não-ser. — Mas, a eliminação do mal só é desejável por privar de algum ser; e, portanto, este é que é desejável em si, ao passo que o não-ser o é só acidentalmente, enquanto o homem deseja um certo ser cuja privação não suporta. E, neste sentido, se diz que o não-ser é um bem acidentalmente.

RESPOSTA À QUARTA. — A vida, a sabedoria e causas semelhantes são desejadas enquanto atuais; o que em tudo isso se deseja é um certo ser. E assim, só o ser é desejável e, por conseqüência, só ele é bom.

ART. III — SE TODO O SER É BOM


(I. Sent., dist. VIII, q.1, a.3; II Cont. Gent., cap. XLI; III, cap. XX; De Verit., q.21, a.2; In Boet., De Hebd., lect. II)

O terceiro discute-se assim. — Parece que nem todo ser é bom.

1. — Pois a idéia de bem acrescenta alguma coisa à de ser, conforme do sobredito resulta; e, portanto a restringe, como o faz a substância, a quantidade, a qualidade e atributos semelhantes. Se, pois, a idéia de bem restringe a de ser, nem todo ser é bom.

2. Demais. — Nenhum mal é bom, pois diz a Escritura (Is. 5, 20): ai de vós os que ao mal chamais bem, e ao bom mau! Ora, há seres maus. Logo, nem todo ser é bom.

3. Demais. — O bem é por natureza desejável. Ora, tal não é a natureza da matéria prima, que é, somente, uma tendência ou um desejo. Logo, ela não é boa por natureza e, por tanto, nem todo ser é bom.

4. Demais. — Como diz o Filósofo, na ordem matemática não há bem. Ora, as idéias matemáticas são seres, pois, do contrario não constituiriam ciência. Logo, nem todo ser é bom.

Mas, em contrario. — Tudo o que não é Deus é criatura de Deus. Ora, toda criatura de Deus é boa, como diz a Escritura, (I Tm. 4, 4); e Deus mesmo é o máximo bem. Logo, todo ser é bom.

SOLUÇÃO. — Todo ser, como tal, é bom, pois é atual e, de certo modo, perfeito, porque toda atualidade é perfeição. Ora, esta, sendo, por natureza desejável e boa, como do sobredito resulta, conclui-se daí, a bondade de todo ser.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A substância, a quantidade, a qualidade e tudo o que nelas se contém, restringem o ser, aplicando-o a alguma quididade ou natureza. Assim, o bem nada acrescenta ao ser senão o atributo de desejável e perfeito, o que convém a este em qualquer natureza em que se encontre. Por onde, o bem não restringe o ser.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Nenhum ser é como tal, considerado mau, mas enquanto tem alguma deficiência; assim, considera-se mau o homem sem virtude, como a vista sem penetração.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A matéria prima, sendo ser potencial, também é bem potencial. E embora, com os platônicos, se possa dizer que ela é não-ser, por causa da privação que lhe é adjunta, contudo, participa algo do bem, a saber, a sua ordenação ou aptitude para o mesmo. E, por isso, não lhe convém o ser desejado, mas, o desejar.

RESPOSTA À QUARTA. — As idéias matemáticas não subsistem realmente separadas, pois, se subsistissem, o ser mesmo delas seria um bem. São separáveis só racionalmente, enquanto abstraídas do movimento e da matéria; e, assim, são estranhas ao fim, que tem natureza motora. E nem é inconveniente haver algum ser que nosso espírito não identifica com o bem, porque a noção de ser é anterior a de bem, como já se disse.

ART. IV — SE O BEM TEM, ANTES, A NATUREZA DA CAUSA FINAL DO QUE AS DEMAIS CAUSAS


(I. Sent., dist. XXXIV. Q.2, a.1, ad 4; I Cont. Gent., cap. XL; De Verit., q.21, a.1; De Div. Nom., cap. I. Lect. III; II Phys., lect. V)

O quarto discute-se assim. — Parece que o bem tem mais a natureza das outras causas do que a da final.

1. — Pois, como diz Dionísio, o bem é louvado como belo. Ora, este implica a natureza da causa formal. Logo, o bem implica igualmente essa natureza.

2. Demais. — O bem é difusivo de si, como resulta das palavras de Dionísio, dizendo: pelo bem é que tudo subsiste e é. Ora, ser difusivo implica a natureza de causa eficiente. Logo, o bem tem a natureza dessa causa.

3. Demais. — Diz Agostinho que nós existimos porque Deus é bom. Ora, nós existimos porque Deus é a nossa causa eficiente. Logo, o bem implica a natureza de tal causa.

Mas, em contrário, diz o Filósofo: Aquilo para o que alguma coisa existe é o fim e o bem de tudo o mais. Logo, o bem tem a natureza de causa final.

SOLUÇÃO. — Sendo o bem aquilo que todos os seres desejam, e implicando isto a idéia de fim, é claro que o bem implica essa mesma idéia, mas também a de causa eficiente e de causa formal. Pois vemos que aquilo que é primeiro no causar, é último no efeito; assim o fogo aquece antes de comunicar sua forma, embora esta lhe resulte da sua forma substancial. Assim, na ordem da causalidade, primeiro, vem o bem e o fim, que move a causa eficiente; depois, ação desta, que move para a forma; e, terceiro, sobrevém a forma. E universalmente, quanto ao efeito: primeiro, vem a forma, que determina o ser; segundo, nessa forma descobrimos uma virtude ativa, própria do ser enquanto perfeito, pois é perfeito o que pode produzir algo de semelhante a si, como diz o Filósofo; terceiro, segue-se a noção do bem, pela qual a perfeição se funda no ser.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O belo e o bem considerados em relação ao sujeito, se identificam, porque têm o mesmo fundamento — a forma; e, por isso, o bem é louvado como belo. Mas, racionalmente, diferem, pois o bem, propriamente, se refere ao apetite, sendo o que todos os seres desejam; e, portanto, exerce a função de fim, porque o apetite é um como que movimento para a realidade. O belo, porém, diz respeito à faculdade cognoscitiva, pois, chamam-se belas às coisas, que, vistas, agradam. E, por isso, o belo consiste na proporção devida; pois os sentidos se deleitam com os seres, devidamente proporcionados, como se lhes fossem semelhantes; porque eles, ao modo de toda virtude cognoscitiva, são, de certa maneira, proporção. Ora, o conhecimento implicando assimilação, e esta supondo uma forma, o belo depende, propriamente, da noção de causa formal.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O bem é considerado difusivo de si, no mesmo sentido em que se diz que o fim move.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O ser dotado de vontade é considerado bom se a tem boa, porque, por meio da vontade é que usamos de todas as nossas faculdades; e por isso não se chama bom o homem que tem bom intelecto, mas o que tem a vontade boa. Pois a vontade visa o fim como objeto próprio; e assim, a expressão — nós existimos porque Deus é bom — refere-se à causa final.

ART. V — SE A NOÇÃO DE BEM IMPLICA O MODO, A ESPÉCIE E A ORDEM


(Ia. Ilae, q. 85, a.4; De Verit., q.21, a.6)

O quinto discute-se assim. — Parece que a noção de bem não implica o modo, a espécie e a ordem.

1. — Pois o bem e o ser diferem racionalmente, como já se disse. Ora, o modo, a espécie e a ordem parece pertencerem à noção de ente; pois, diz a Escritura (Sb. 11, 21): Todas as coisas dispuseste com medida, e conta, e peso, reduzindo-se a esta trindade a espécie, o modo e a ordem; e, como diz Agostinho — A medida determina o modo a cada coisa, o número dá-lhe espécie, e o peso a atrai para o repouso e a estabilidade. Logo, a noção de bem não implica o modo, a espécie e a ordem.

2. Demais. — O modo, a espécie e a ordem são bens. Ora, se a noção de bem os implicasse, o modo também seria modo, espécie e ordem, o mesmo se dando com a espécie e com a ordem; o que seria proceder ao infinito.

3. Demais. — o mal é privação do modo, da espécie e da ordem. Ora, ele não elimina totalmente o bem. Logo, a noção de bem não consiste no modo, na espécie e na ordem.

4. Demais. — Aquilo que implica a noção de bem não pode ser chamado mal. Oram diz-se mau modo, má espécie, má ordem. Logo, a noção de bem não implica o modo, a espécie e a ordem.

5. Demais. — O modo, a espécie e a ordem, são causados pelo peso, pelo número e pela medida, como se vê no passo aduzido de Agostinho. Ora, nem todos os bens tem peso, número e medida, pois diz Ambrósio: é da natureza da luz não ter sido criada com número, peso e medida. Logo, a noção de bem não consiste no modo, na espécie e na ordem.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Estas três coisas — o modo, a espécie e a ordem, — existem nas coisas feitas por Deus como bens gerais; e assim, onde elas são grandes os bens são grandes; onde pequenas, também eles são pequenos e, onde não existem, nenhum bem existe. Ora, tal não se daria se a noção de bem as implicasse. Logo, esta noção implica o modo, a espécie e a ordem.

SOLUÇÃO. — Um ser é considerado bom na medida em que é perfeito, pois, nessa mesma, é desejável, como já se demonstrou. Ora, consideramos como perfeito aquilo a que nada falta, segundo o modo da sua perfeição. E como pela forma é que cada ser é o que é, e esta tem as suas pressuposições e as suas conseqüências necessárias, para um ente ser perfeito e bom é necessário que tenha a forma, com o que ela preexige a determinação ou comensuração ou dos seus princípios, materiais ou eficientes; e isso é expresso pela palavra modo, dizendo-se, por isso, que a medida determina o modo. A forma mesma, por sua vez, é expressa pela palavra espécie, porque é a forma que constitui cada ser na sua espécie; e se diz que o número dá a espécie porque as definições, que a significam, são como os números, segundo o Filósofo. Pois, assim como a unidade adicionada ou subtraída ao número faz-lhe variar a espécie, assim, as diferenças apostas ou subtraídas às definições. Da forma, em último lugar, resulta a tendência para um fim, para a ação ou para algo semelhante, porque o ser atual age e tende para o que formalmente lhe convém; o isso pertence ao peso e à ordem. Por onde a noção de bem, implicando a perfeição, há de implicar o modo, a espécie e a ordem.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A divisão do bem em questão não resulta do ser enquanto perfeito e, como tal, bom.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O modo, a espécie e a ordem chamam-se bens da mesma maneira porque se chamam entes; não por serem como subsistentes, mas por fazerem com que certas coisas sejam entes e boas. Mas, por isso, não é necessário tenham outros atributos, pelos quais sejam bons, pois são considerados tais, não em virtude de uma informação estranha, mas por serem a razão formal de certas coisas serem boas. Assim, dizemos que a brancura é um ser, não porque sejam em si mesma, um princípio de ser, mas porque faz um sujeito ser, sob certo ponto de vista, i. é, branco.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Um ser corresponde a uma determinada forma; por onde, quantos modos de ser tiver um sujeito, tantas vezes haverá lugar para o modo, a espécie e a ordem. Assim, um homem realiza uma vez essa trindade enquanto homem, outra, enquanto branco, outra enquanto virtuoso, enquanto sábio e enquanto ao mais que se possa dizer dele. O mal, porém, priva de um desses modos de ser; p. ex., a cegueira, privando da vista, não elimina totalmente o modo, a espécie e a ordem, mas, só na medida em que resultem do ser dela.

RESPOSTA À QUARTA. — Como diz Agostinho, todo modo, como tal, é bom, o mesmo podendo-se afirmar da espécie e da ordem; mas, o mau modo, a má espécie ou a má ordem chamam-se assim por serem menores, que o que deveriam ser; ou por se não acomodarem às coisas a que se deviam acomodar, considerando-se, portanto, maus por seres não adaptados e incongruentes.

RESPOSTA À QUINTA. — Diz-se que a natureza da luz é sem número, peso e medida, não absolutamente, mas por comparação com as coisas corpóreas; pois a virtude da luz atinge a todos os seres corpóreos, como qualidade ativa do céu, que é o primeiro corpo alterante.

ART. VI — SE O BEM SE DIVIDE ADEQUADAMENTE EM HONESTO, ÚTIL E DELEITÁVEL


(Ila. Hae, q. 145, a. 3; II Sent., dist. 21, q. 1, a. 3; I Eth., lect. V)

O sexto discute-se assim. — Parece que o bem não se divide adequadamente em honesto, útil e deleitável.

1. — Pois o bem, como diz o Filósofo, se reparte pelos dez predicamentos. Ora, o honesto, o útil e o deleitável, podem-se encontrar num só. Logo, tal divisão não é adequada.

2. Demais. — Toda divisão se faz por contrariedades. Ora, as três partes da divisão supra não são contrárias; pois o honesto também é deleitável e nada de desonesto é útil, como também diz Túlio. Logo, tal divisão não é adequada.

3. Demais. — Quando uma coisa tem sua razão de ser em outra, ambas não constituem mais que uma. Ora, o útil é bom, só por causa do deleitável ou do honesto. Logo, não deve ser-lhes considerado contrário, na divisão.

Mas, em contrario, Ambrosio aceita esta divisão do bem.

SOLUÇÃO. — Esta divisão é propriamente do bem humano. Mas serve também, propriamente, para o bem como tal, se considerarmos essa noção mais alta e largamente. Pois é bem aquilo que é desejável e termo do movimento do apetite, termo que pode ser apreciado conforme o movimento dos corpos naturais. Ora, o movimento de um corpo natural acaba, absolutamente falando, no seu último termo; relativamente, porém, no termo médio, pelo qual chega ao último; e assim, chama-se termo de um movimento qualquer ponto em que uma parte dele acaba. Porém, o termo último do movimento pode ser tomado, em sentido amplo, como a causa mesma para o qual ele tende, p. ex., o lugar ou a forma; ou como o repouso na mesma. Por onde, chama-se útil o que é desejável e termina o movimento do apetite, relativamente, como meio de tender a outra coisa. Honesto se chama ao que é desejado com uma coisa, que termina total e ultimamente o movimento do apetite, à qual, em si mesma este tende; pois, honesto se denomina aquilo que é desejado em si mesmo. A deleitação, por fim, é o que termina o movimento do apetite, como repouso na coisa desejada.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O bem, enquanto tem o mesmo sujeito que o ente, se reparte pelos dez predicamentos; mas em na sua noção própria, aplica-se-lhe a divisão supra.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A referida divisão não se estabelece por contrariedades reais, mas, nocionais. — Assim, chama-se propriamente deleitável aquilo que nada tem de desejável, além da deleitação; podendo ser, às vezes, nocivo e desonesto. Útil é chamado aquilo que é desejado, não por si mesmo, mas só enquanto conducente a outra coisa, como p. ex., tomar um remédio amargo. Honesto, por fim, o que é desejado em si mesmo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Ao bem se aplica a tripartida divisão supra, não como se ele fosse unívoco, isto é, predicado igualmente de cada um dos três termos; mas, como análogo, que se predica por prioridade e posteridade. Assim, é predicado, primariamente, do honesto; secundariamente, do deleitável e, em terceiro lugar, do útil.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Questão IV - Da perfeição de Deus

QUESTÃO IV — DA PERFEIÇÃO DE DEUS


Depois de termos tratado da simplicidade divina, devemos tratar da perfeição de Deus. E como um ser é bom na medida em que é perfeito, havemos de tratar, primeiro, da perfeição divina e, depois, da bondade divina. Na primeira questão, discutem-se três artigos:
  1. Se Deus é perfeito;
  2. Se Deus é universalmente perfeito, encerrando em si a perfeição de todos os seres;
  3. Se as criaturas podem ser consideradas semelhantes a Deus.

ART. I — SE DEUS É PERFEITO


De Verit. q.2 a.3 ad 13; Cont. Gentes 1, 28; Compend. Theol. c.20

O primeiro discute-se assim. — Parece Que não é próprio de Deus ser perfeito.

1. — Pois, "perfeito" é como quem diz — totalmente feito. Ora, a Deus não pode convir o ser feito. Logo, nem ser perfeito.

2. Demais. — Deus é o princípio primeiro das coisas. Ora, este é imperfeito; assim, a semente é o princípio dos animais e das plantas. Logo, Deus é imperfeito.

3. Demais. — Como já estabelecemos, a essência de Deus é o ser mesmo. Ora, parece que este é imperfeitíssimo, pois é generalíssimo e susceptível de todas as adições. Logo, Deus não é perfeito.

Mas, em contrário, a Escritura (Mt. 5, 48): Sede vós logo perfeitos como também vosso pai celestial é perfeito.

SOLUÇÃO. — Conforme refere Aristóteles, certos filósofos antigos — os Pitagóricos e Speusipo — não concebiam que o princípio primeiro fosse ótimo e perfeitíssimo. E a razão é que tais filósofos consideravam só o princípio material. Ora, o principio material primeiro é imperfeitíssimo; pois, sendo a matéria em si mesma potencial, por força o princípio material primeiro há de ser totalmente potencial por excelência e, portanto, totalmente imperfeito. Deus, porém, é considerado como primeiro princípio, não material, mas, no gênero, da causa eficiente; e, então, há de necessariamente ser perfeitíssimo. Pois, assim como, em si mesma, a matéria é potencial, assim, o agente é, em si mesmo, atual. Por onde, o primeiro princípio ativo há de, por força, ser soberanamente ativo, e, por conseqüência, perfeito em máximo grau. Pois, um ser é considerado perfeito na medida em que é atual; porque perfeito se chama aquilo ao que nada falta, nos limites da sua perfeição.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz Gregório: Balbuciando, proclamamos como podemos os atributos excelsos de Deus: pois, o que não é feito, não pode, propriamente, ser chamado perfeito. Ora, como, dentre as cousas feitas, chamamos perfeita à que passa da potência para o ato, essa palavra — perfeito — foi empregada para significar tudo aquilo a que não falta o ser atual, quer o tenha por ser feito, quer não.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O princípio material, que em nós existe imperfeitamente, não pode ser, em absoluto, primeiro, mas é precedido por outro, que é perfeito. Assim, embora o sêmen seja o principio do animal dele gerado, tem contudo, como princípio, o animal ou a planta donde deriva. Pois, antes do potencial, há de necessariamente existir o atual, porque o ser potencial não se atualiza senão pelo que já é atual.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O ser em si é o mais perfeito de todos por atualizar a todos; pois, nenhum ser é atual senão enquanto existente. Por onde, o ser em si é o que atualiza todos os outros e, mesmo, as próprias formas. Por isso, não está para outros como o recipiente para o recebido, mas, antes, como o recebido para o recipiente. Assim, quando designo o ser do homem, do cavalo, ou de qualquer outro ente, considero o ser mesmo como princípio formal e como recebido; e não como um sujeito a que sobrevém a existência.

ART. II — SE DEUS ENCERRA AS PERFEIÇÕES DE TODOS OS SERES


De ente et ess. c.6; In Sent 1, d.2 a.23: Cont. Gentes 1, 28.31.40; De Div. Nom. c.5 lect. 1.2.

O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não encerra a perfeição de todos os seres.

1. — Pois, Deus é simples, como já se demonstrou. Ora, muitas e diversas são as perfeições dos seres. Logo, Deus não encerra todas as perfeições deles.

2. Demais. — Os contrários não podem coexistir num mesmo ser. Ora, as perfeições dos seres são contrárias; pois, cada espécie se completa pela sua diferença especifica, e as diferenças que dividem um gênero e constituem as espécies, são contrárias. Logo, não podendo os contrários coexistir num mesmo ser, Deus não encerra as perfeições de todos os seres.

3. Demais. — O vivente é mais perfeito que o ser simplesmente existente, e o que pode compreender, do que o simples vivente. Logo, viver é mais perfeito que existir e compreender, que viver. Ora, Deus é o ser, por essência. Por onde, não encerra em si a perfeição da vida, da sabedoria e outras.

Mas, em contrário, Dionisio: Deus encerra, de modo perfeito, em seu ser, tudo o que existe.

SOLUÇÃO. — Deus encerra em si as perfeições de todos os seres e, por isso, é denominado ser universalmente perfeito; pois, no dizer do Comentador, não lhe falta nobreza de nenhum gênero. — E isto pode ser demonstrado de dois modos. — Primeiro, porque toda a perfeição do efeito deve existir na causa eficiente. — Segundo, conforme a mesma noção, quando o agente é unívoco; tal o caso de um homem, que gera outro. Ou de modo mais eminente, sendo o agente equívoco; assim, no sol está o equivalente das coisas por virtude dele geradas. Ora, como é manifesto, o efeito preexiste virtualmente na causa agente. Mas, preexistir na virtude da causa agente é preexistir de modo não mais imperfeito, senão, mais perfeito. Pois, preexistir na potência da causa material é preexistir de modo mais imperfeito, porque a matéria, como tal, é imperfeita; ao contrário, o agente, como tal, é perfeito. Ora, sendo Deus a causa primeira eficiente das coisas, necessário é que as perfeições de todas nele preexistam de modo mais eminente. E nesta razão tocou Dionísio dizendo: Deus, sendo um ser deixa de ser outro, mas, é tudo, como causa de tudo. — Segundo, porque, como do sobredito resulta, Deus é o ser por si subsistente; por onde, é necessário encerre em si a perfeição total do ser. Ora, é manifesto que, se um corpo cálido não tem toda a perfeição da calidez, é porque não participa do calor em toda a natureza deste; mas se o calor fosse por si subsistente, nada lhe poderia faltar da sua virtude. Donde, sendo Deus o próprio ser subsistente, nenhuma das perfeições do ser lhe pode faltar. Ora, na perfeição do ser se incluem as perfeições de todas as causas, pois cada uma é perfeita na medida em que é ser. Donde resulta que a Deus não pode faltar nenhuma das perfeições das causas. E também nesta razão toca Dionísio, dizendo, que Deus não existe, de certo modo, mas de modo primário e uniforme, encerra em si a totalidade do ser, pura, simples e incircunscritamente. E, depois, acrescenta que é ele o ser de tudo que subsiste.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Assim como o sol no dizer de Dionísio, sendo único e luzindo para todos igualmente, não deixa de encerrar, virtual e antecedentemente, na unidade da sua ação, as substâncias e as qualidades múltiplas e diferentes dos seres sensíveis, assim, com maior razão, na causa universal, hão de necessariamente preexistir todas as coisas unificadas na sua própria natureza.

Por onde, é clara a resposta à segunda objeção.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Dionísio, no mesmo capítulo, embora o ser em si seja mais perfeito que a vida, e a vida, que a sabedoria, consideradas essas noções abstratamente, todavia, o vivente é mais perfeito que o simples ser, porque também o tem; e o que tem a sabedoria, além de ser, vive. Embora, pois, a noção do ser em si não inclua a do vivente e a do que tem a sabedoria, por não haver necessidade de o participante do ser o participar em todas as suas formas; contudo, o ser mesmo de Deus inclui em si a vida e a sabedoria, por não lhe poder faltar nenhuma das perfeições do ser, a ele que é o ser mesmo subsistente.

ART. III — SE ALGUMA CRIATURA PODE SER SEMELHANTE A DEUS


q.6 a.4; q.13 a.2; In Sent. 1 d.48 q.1 a.1; 2 d.16 q.1 a.1 ad 3; De Verit. q.2 a.11, q.3 a.1 ad 9; q.23 a.7 ad 9; Cont. Gentes 129; De Pot. q.7 a.7; De div. nom. c.9 lect. 3.

O terceiro discute-se assim. — Parece que nenhuma criatura pode ser semelhante a Deus.

1. — Pois, como diz a Escritura (Sl. 85, 8), não há semelhante a ti entre os deuses, Senhor. Ora, dentre todas as criaturas, são mais excelentes as que se chamam deuses, por participação. Com muito menos razão, portanto, podem outras criaturas ser chamadas semelhantes a Deus.

2. Demais. — Semelhança supõe comparação. Ora, não se comparam coisas de gêneros diversos, que, portanto, também não têm semelhança entre si; assim, não dizemos que a doçura é semelhante à brancura. E não sendo nenhuma criatura congênere com Deus, que não pertence a nenhum gênero, segundo já se demonstrou, resulta que nenhuma criatura é semelhante a Deus.

3. Demais. — Semelhantes se chamam os seres que têm a mesma forma. Ora, nenhum ser pode ter a mesma forma que Deus, pois em nenhum, senão só em Deus, a essência é a existência. Logo, nenhuma criatura pode ser semelhante a Deus.

4. Demais. — Seres semelhantes têm semelhança mútua, pois a um se assemelha o outro. Se, pois, alguma criatura for semelhante a Deus, há de Deus ser semelhante a ela, o que vai contra a Escritura (Is. 40,18) que diz: A quem, pois, tendes vós assemelhado a Deus?

Mas, em contrário, a Escritura (Gn. 1, 26): Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. E noutro lugar (1 Jo. 3, 2): Quando ele aparecer seremos semelhantes a ele.

SOLUÇÃO. — Fundando-se a semelhança na conveniência ou comunidade de forma, a sua multiplicidade é correlativa aos múltiplos modos por que existe a comunidade formal. Assim, certas coisas se consideram semelhantes por terem de comum a mesma forma, na mesma proporção e do mesmo modo; e, destas se diz que são, não somente semelhantes, mas iguais na semelhança; assim, duas coisas igualmente brancas são semelhantes pela brancura. E esta é a mais perfeita das semelhanças. — De outra maneira, dizem-se semelhantes as coisas que têm forma comum, na mesma proporção, não, porém, do mesmo modo, mas, mais ou menos; assim, se diz que o menos branco é semelhante ao mais branco. E esta semelhança é imperfeita. — De terceiro modo, semelhantes se dizem as coisas que têm forma comum, não porém, na mesma proporção, como claramente se dá com os agentes não unívocos, Ora, todo agente, como tal, produzindo efeito semelhante a si, e agindo pela sua forma, é necessário haver no efeito a semelhança da forma do agente. Se, pois, este for da mesma espécie que o seu efeito, haverá semelhança formal entre um e outro, na mesma proporção especifica; assim, um homem gera outro. Se, porém, o agente não for da mesma espécie, haverá semelhança, não, porém, quanto à proporção específica; assim, as coisas geradas pela virtude do sol encerram, certamente, alguma semelhança com ele, do qual recebem a forma, por semelhança, não específica, mas genérica apenas. Se, pois, houver algum ente não contido em nenhum gênero, os seus efeitos ainda mais remotamente terão a semelhança da forma agente e não chegarão a participar da semelhança desta, na mesma proporção especifica ou genérica, mas só analogicamente, no sentido em que se diz que o ser em si é comum a tudo.

E deste modo, as coisas criadas por Deus, primeiro e universal princípio de todos os seres, com ele se assemelham, enquanto seres.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como ensina Dionísio, a expressão da Escritura — nada é semelhante a Deus — não é contrária ao assemelhar-se com ele; pois, as mesmas coisas podem ser semelhantes e não semelhantes a Deus. Semelhantes, enquanto o imitam, na medida em que é possível ser imitado quem não e perfeitamente imitável, Não semelhante, por outro lado, enquanto deficientes, relativamente à causa; e isso, não somente no concernente à intensidade e à remissão, no sentido em que o menos branco é deficiente em relação ao mais branco, mas ainda, por não haver conveniência específica nem genérica.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus não se comporta com as criaturas como sendo seres de gêneros diversos; mas, como o ser que está acima de todos os gêneros, dos quais é o princípio.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não se diz que a semelhança da criatura com Deus se funda na comunidade de forma, relativamente à mesma proporção genérica, e específica. Mas, só relativamente à analogia, sendo então, Deus o ser por essência e os outros, por participação.

RESPOSTA À QUARTA. — Embora de algum modo se possa conceder que a criatura é semelhante a Deus, contudo, de maneira nenhuma é admissível seja Deus semelhante à criatura. Pois, como diz Dionísio, entre seres da mesma ordem admite-se a mútua semelhança; não, porém, entre a causa e seu efeito. Assim, dizemos que a imagem de uma pessoa lhe é semelhante, e não, ao contrário. E, do mesmo modo, pode-se de certa maneira dizer que a criatura é semelhante a Deus; não, porém, que seja Deus semelhante à criatura.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Questão III - Da simplicidade de Deus

QUESTÃO III — DA SIMPLICIDADE DE DEUS


Conhecida a existência de uma coisa, resta inquirir como existe, para que se saiba o que é. Porém, como não podemos saber o que é Deus, mas o que não é, não podemos considerar como é, mas, como não é.
Logo,
  1. consideraremos como não é;
  2. como é de nós conhecido;
  3. como se nomeia.

Ora, podemos mostrar como Deus não é removendo o que lhe não convém, p. ex.: a composição, o movimento, e atributos semelhantes.
Portanto,
  1. devemos tratar da sua simplicidade, pela qual dele se remove a composição. E sendo os seres corpóreos simples, imperfeitos e partes, devemos tratar,
  2. da perfeição de Deus;
  3. da sua infinidade;
  4. da sua imutabilidade;
  5. da sua unidade.

Na primeira questão, discutem-se oito artigos:
  1. Se Deus é corpo;
  2. Se há nele composição de forma e de matéria;
  3. Se há composição quiditativa ou essencial, ou de natureza, e de sujeito;
  4. Se em Deus se identificam a essência e a existência;
  5. Se há composição de gênero e de diferença;
  6. Se há composição de sujeito e acidente;
  7. Se há qualquer espécie de composição, ou se é totalmente simples;
  8. Se entra em composição com outros seres.

ART. I — SE DEUS É CORPO


O primeiro discute-se assim — Parece que Deus é corpo.

1. Pois, corpo é o que tem três dimensões. Ora, a Sagrada Escritura atribui a Deus dimensão tríplice, dizendo (Jó 11,8-9): Ele é mais elevado que o céu, e que farás tu? E mais profundo do que o inferno, e como o conhecerás? A sua medida é mais comprida do que a terra e mais longa que o mar. Logo, Deus é corpo.

2. Demais — Todo figurado é corpo, pois a figura é qualidade quantitativa. Ora, Deus é figurado, como escreve a Escritura (Gn. I, 26): Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e a figura se chama imagem, segundo o Apóstolo (Heb. I, 3): sendo o resplendor da glória e a figura da sua substância, i. é, a imagem. Logo, Deus é corpo.

3. Demais. — Tudo o que tem partes corpóreas é corpo. Ora, a Escritura as atribui a Deus: Se tu tens braços como Deus (Jó. 40, 4); e a destra do Senhor fez proezas (Sl. 33, 16); e os olhos do Senhor estão sobre os justos (Sl. 117, 16). Logo, Deus é corpo.

4. Demais. — O corpo tem situação. Ora, o que se diz desta, a Escritura diz de Deus: Vi ao Senhor assentado (Is. 6,1); e o Senhor está para julgar (Is. 3, 13). Logo, Deus é corpo.

5. Demais. — Nada pode significar lugar donde ou para onde, sem ser corpo ou algo de corpóreo. Ora, na Escritura, Deus é denominado termo local para onde (Sl. 33, 6): Chegai-vos a ele e sereis iluminados; e donde (Jr. 17, 13): Os que se apartam de ti serão escritos sobre a terra. Logo, Deus é corpo.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Jo. 4, 24): Deus é espírito.

SOLUÇÃO. — Que, absolutamente, Deus não é corpo, pode-se demonstrar de três modos: Primeiro, porque nenhum corpo move sem ser movido, como claramente se induz dos casos singulares.

Ora, já se demonstrou ser Deus o primeiro motor imóvel. Logo, é manifesto que não é corpo; Segundo, porque é necessário que o ser primeiro exista em ato e de nenhum modo em potência. Pois, embora num mesmo ser, que passa da potência para o ato, aquela seja, temporalmente, anterior a este, em si, contudo, o ato é anterior à potência, porque o potencial não se atualiza senão pelo atual. Ora, como se demonstrou, Deus é o ente primeiro; logo, é impossível existir nele algo de potencial. E, sendo todo corpo potencial, porque o contínuo, como tal é divisível ao infinito, é impossível Deus ser Corpo; Terceiro, porque Deus é o mais nobre dos seres, como do sobredito resulta. Ora, é impossível um corpo ser tal, porque todo o corpo é vivo ou não vivo. Se vivo, é manifestamente mais nobre que o não vivo; não vivendo, porém, enquanto corpo — porque então todo corpo viveria — necessariamente há-de viver por outro princípio; assim o nosso corpo vive pela alma. Ora, o princípio da vida do corpo é mais nobre que este. Logo, é impossível Deus ser corpo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — como já se disse, a Sagrada Escritura nos transmite as coisas espirituais e divinas comparando-as com as corpóreas. Assim, quando atribui a Deus dimensão tríplice, designa-lhe a quantidade virtual, por comparação com a quantidade corpórea; com a profundidade atribuí-lhe a virtude de conhecer as coisas ocultas; com a altitude, a excelência da sua virtude sobre todos os seres; com a longitude, a duração do seu ser; com a latitude, o afeto de dileção para com todos. — Ou, como diz Dionísio, pela profundidade de Deus se lhe intelige a incompreensibilidade da essência; pela longitude, o processo da virtude que tudo penetra; e pela latitude, a sua superextensão sobre os seres enquanto todos caem sob a sua proteção.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O homem é considerado imagem de Deus, não pelo corpo, mas pelo que o torna mais excelente que os outros animais; por isso a Escritura, depois de ter dito (Gn. I, 26): Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, acrescenta: O qual presida aos peixes do mar, etc. Ora, o homem é mais excelente que todos os animais, pela razão e pelo intelecto. Donde, pelo intelecto e pela razão, que são incorpóreos, é a imagem de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A Escritura atribui a Deus partes corpóreas, em razão de seus atos, por uma certa semelhança. Pois, assim como o ato dos olhos é ver, atribuem-se olhos a Deus, para lhe significar a virtude visual, inteligível e não, sensivelmente, E assim, simultaneamente, em relação às outras partes.

RESPOSTA À QUARTA. — Mesmo o que é próprio da situação não se atribui a Deus, senão por semelhança; assim, diz-se que se assenta, por causa da imobilidade e autoridade; e que está de pé por causa da força em debelar tudo o que se lhe opõe.

RESPOSTA À QUINTA. — Não nos aproximamos de Deus com passos corpóreos, pois, está em toda parte; mas, com afetos mentais: e do mesmo modo, dele nos afastamos. E assim, o aproximar-se e o afastar-se, à semelhança com o movimento local, designam o afeto espiritual.

ART. II — SE EM DEUS HÁ COMPOSIÇÃO DE MATÉRIA E FORMA


O segundo discute-se assim. — Parece que há em Deus composição de forma e matéria.

1. — Pois, sendo a alma a forma do corpo, tudo o que tem alma é composto de matéria e forma. Ora, a Escritura atribui a alma a Deus, quando o Apóstolo, falando da pessoa divina, diz (Heb. 10, 38): Mas o meu justo vive de fé; porém, se ele se apartar, não agradará à minha alma. Logo, Deus é composto de matéria e forma.

2. Demais. — A ira, a alegria e paixões tais são próprias do composto, diz o Filósofo. Ora, a Escritura atribui a Deus todas as paixões (Sl. 105, 40): E se acendeu de furor o Senhor contra o seu povo. Logo, Deus é composto de matéria e forma.

3. Demais. — A matéria é o princípio da individuação. Ora, parece que Deus é um indivíduo: pois, não se predica de muitos. Logo, é composto de matéria e forma.

Mas, em contrário, todo composto de matéria e forma é corpo; pois, a quantidade dimensiva é a primeira inerente à matéria. Ora, Deus não é corpo, como se demonstrou. Logo, não é composto de matéria e forma.

SOLUÇÃO. — É impossível haver matéria em Deus. Primeiro, porque esta é potencial. Ora, como demonstramos, Deus é ato puro, sem nenhuma potencialidade. Logo, é impossível ser composto de matéria e forma. Segundo, por ser a forma a causa da bondade de todo composto em que ela concorre com a matéria; o qual, por isso, e necessariamente, é bom por participação, na medida em que a matéria participa da forma. Ora, Deus, ser primariamente bom e ótimo, não é bom por participação, porque o bem essencial é anterior ao participado. Terceiro, porque todo agente age pela sua forma e, portanto, esta é que determina o modo de ser daquele. Ora, o ser que é agente primária e essencialmente há de, por força, ser também forma, essencial e primariamente. Mas, Deus é o agente primeiro, por ser causa eficiente primeira, como já demonstramos. Logo, é essencialmente a sua forma e não é composto de matéria e forma.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A alma é atribuída a Deus por semelhança no agir. Pois, como pela nossa alma é que queremos alguma coisa, assim, consideramos agradável à alma de Deus o que lho é à vontade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A ira e outras paixões se atribuem a Deus por semelhança de efeito; pois, sendo próprio do irado punir, à ira de Deus se chama punição, metaforicamente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — As formas de que a matéria é susceptível, por ela se individuam; a qual, por sua vez, não pode existir em outro ser, porque é o sujeito primeiro. Porém, a forma, em si mesma, e se nada o impedir, pode ser recebida por muitos sujeitos. Mas, a forma que não puder ser recebida pela matéria, e for subsistente por si mesma, individua-se pelo fato mesmo de não poder ser recebida. Ora, tal é a forma de Deus. Logo, daí se não segue que ele tenha matéria.

ART. III — SE DEUS É IDÊNTICO À SUA ESSÊNCIA OU NATUREZA


O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus não é idêntico à sua essência ou natureza.

1. — Pois, nada pode estar em si mesmo. Ora, diz-se que a essência ou a natureza de Deus, que é a divindade, está em Deus. Logo, Deus não é idêntico à sua essência ou natureza.

2. Demais. — O efeito assimila-se à causa, porque todo agente, como é, assim age. Ora, nos seres criados, não se identificam o suposto e a sua natureza; assim, o homem não é o mesmo que a humanidade. Logo, nem Deus é idêntico à divindade.

Mas, em contrário. — Dizemos que Deus não somente é vivo, mas, que é a vida, como o faz a Escritura (Jo. 14, 6): Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ora, a vida está para o vivente como a deidade, para Deus. Logo, Deus é a própria divindade.

SOLUÇÃO. — Para entendermos que Deus é idêntico à sua essência ou natureza, é preciso saber que, nos seres compostos de matéria e forma, necessariamente diferem entre si a natureza, a essência e o suposto, Pois, a essência ou natureza, em si mesma, compreende somente o que entra na definição da espécie. Assim, a humanidade, em si mesma, compreende o que constitui a definição do homem e faz com que este seja o que é. A humanidade é, pois, o que faz o homem ser homem. Mas, a matéria individual, com todos os acidentes individuantes, não entra na definição da espécie; assim, a definição do homem não implica que ele tenha tais carnes e tais ossos, tal brancura e tal negrura, ou atributos semelhantes. Por isso, tais carnes e tais ossos, bem como os acidentes designativos de uma determinada matéria, não se incluem na humanidade. E, contudo, incluindo-se no ser humano, este encerra em si algo que não encerra a humanidade. Por onde, não são totalmente idênticos o homem e a humanidade: esta constitui como que a parte formal daquele, pois os princípios definidores desempenham o papel de forma, relativamente à matéria individuante. Ora, a individuação dos seres não compostos de matéria e forma não se opera pela matéria individual, i. é, por uma determinada matéria, mas antes, as próprias formas por si se individuam. Por onde, em tais seres, essas formas mesmas é que hão de, necessariamente ser os supostos subsistentes, não diferindo, por isso, o suposto, da natureza. E, como já demonstramos, não sendo Deus composto de matéria e forma, há de por força ser a sua divindade, a sua vida e o mais que dele se predicar.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não podemos dizer nada dos seres simples, senão comparando-os com os compostos, de que temos conhecimento. Por isso, tratando de Deus, usamos de palavras concretas para lhe exprimirmos a subsistência, porque, para nós, só os compostos subsistem; e empregamos nomes abstratos para lhe significarmos a simplicidade. Quando, pois, atribuímos a Deus a divindade, a vida ou outro atributo qualquer, essa atribuição deve referir-se à diversidade existente na acepção do nosso intelecto e não, a qualquer diversidade existente em Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os efeitos de Deus o imitam, não perfeitamente, mas na medida do possível, por causa da deficiência na imitação. Pois, o ser simples e uno não pode ser representado senão pelo múltiplo. Por isso, esses efeitos implicam a composição, donde resulta não terem o suposto idêntico à natureza.

ART. IV — SE EM DEUS SE IDENTIFICAM A ESSÊNCIA E A EXISTÊNCIA


O quarto discute-se assim. — Parece que em Deus não se identificam a essência e a existência.

1. — Pois, se assim não fosse, nada se poderia acrescentar ao ser divino. Ora, o ser que não é susceptível de nenhuma adição é o ser em geral, que se predica de todos; e, portanto, Deus seria tal ser de todos predicado. Ora; isto é falso, segundo aquilo da Escritura (Sb. 14,21): Deram às pedras e ao pau um nome incomunicável. Logo, a existência de Deus não é idêntica à sua essência.

2. Demais. — Como já se disse, podemos saber se Deus existe, mas não, o que é. Logo, não se identificam a existência de Deus e a sua essência, quididade ou natureza.

Mas, em contrário, diz Hilário: A existência não é um acidente, em Deus, mas verdade subsistente. Logo, o que subsiste em Deus é a sua existência.

SOLUÇÃO. — Deus é, não somente, a sua essência, como já demonstramos, mas também a sua existência, o que se pode provar de muitos modos. Primeiro, porque tudo o que existe num ente, sem lhe constituir a essência, deve ser causado pelos princípios desta, como acidentes próprios resultantes da espécie. Assim, a faculdade de rir resulta do ser humano e é causada pelos princípios essenciais da espécie. Ou, então, deve ser causado por algum ser exterior: assim, o calor da água é causado pelo fogo. Por onde, sendo a existência mesma do ente diferente da sua essência, é necessário seja essa existência causada por algum ser exterior, ou pelos princípios essenciais do referido ente. Ora, é impossível seja ela causada somente pelos princípios essenciais deste, pois, nenhum ente de existência causada é suficiente para ser causa da sua própria existência. Portanto e necessariamente, o ente cuja existência difere da essência, há de ter aquela causada por outro ser. Mas, isto não se pode dizer de Deus, pois, já provamos ser ele a causa eficiente primeira. Logo, é impossível que, em Deus, a existência seja diferente da essência. Segundo, porque a existência é a atualidade de toda forma ou natureza; assim, a bondade ou a humanidade não são atuais senão quando as supomos existentes. Necessariamente, pois, a existência está para a essência, da qual difere, como o ato para a potência. Ora, Deus nada tendo de potencial, como demonstramos, resulta que a sua essência não difere da sua existência e, portanto, são idênticas. Terceiro, porque, assim como o que tem fogo, sem ser fogo, é ígneo por participação, assim também o que existe, sem ser a existência, existe por participação. Ora, como já estabelecemos, Deus é a sua essência. Se, portanto, não for a sua existência, será ser por participação e não, por essência. Logo, não será o ser primeiro, o que é absurdo. Por conseqüência, Deus é a sua existência e não somente, a sua essência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A expressão — ser que não é susceptível de nenhuma adição — pode ser entendida em duplo sentido. Ou porque é tal que, por natureza, não se lhe pode adicionar nada, como se dá com o animal irracional, que, por natureza, não pode ter razão; ou porque a sua essência não comporta nenhuma adição, como é o caso do animal em geral, que, por essência, sendo desprovido de razão, não a comporta, sem que, por outro lado essa essência exija que seja privado dela.

Ora, no primeiro sentido é o ser divino que não é susceptível de adição; e no segundo, o ser em geral. RESPOSTA À SEGUNDA. — O vocábulo ser é susceptível de duplo sentido. Ora significa o ato de existir; ora a composição proposicional, que o espírito descobre quando une o predicado ao sujeito. Na primeira acepção, não podemos conhecer a existência de Deus nem a sua essência, mas só na segunda. Pois, sabemos que a proposição que formamos sobre Deus, quando dizemos — Deus existe — é verdadeira; e isto sabemos pelos efeitos de Deus, como já dissemos.

ART. V — SE DEUS PERTENCE A ALGUM GÊNERO


O quinto discute-se assim. — Parece que Deus pertence a algum gênero.

1. — Pois, substância é o ser por si subsistente, o que é por excelência próprio de Deus. Logo, Deus pertence ao gênero da substância.

2. Demais. — Uma coisa mede-se pela sua congênere, como as longitudes, pela longitude e os números, pelo número. Ora, Deus é a medida de todas as substâncias, como o diz o Comentador. Logo, Deus pertence ao gênero da substância.

Mas, em contrário, o gênero é, racionalmente, anterior ao seu conteúdo. Ora, nada é anterior a Deus, nem material nem racionalmente. Logo, não pertence a nenhum gênero.

SOLUÇÃO. — De dois modos uma coisa pode pertencer a um gênero: absoluta e propriamente, como as espécies, que ele abrange; ou por via de redução, como os princípios e as privações. Assim, o ponto e a unidade se reduzem ao gênero da quantidade, como princípios; a cegueira, como toda privação, ao gênero do seu hábito. — Ora, de nenhum desses modos Deus pertence a um gênero. E, por outro lado, que não pode ser espécie de nenhum, de três modos pode ser demonstrado. Primeiro, porque uma espécie é constituída pelo seu gênero e pela sua diferença; e sempre a origem da diferença constitutiva da espécie está para a origem do gênero, como o ato, para a potência. Assim, animal deriva da natureza sensitiva, por concreção; pois, chama-se animal o ser dessa natureza sensitiva. Racional, por seu lado, deriva da natureza intelectiva, pois racional é o ser que tem essa natureza. Ora, intelectivo está para sensitivo como o ato, para a potência, o mesmo se dando em casos semelhantes. Ora, como em Deus nenhuma potência vem acrescentar-se ao ato, impossível é que seja espécie de qualquer gênero. Segundo, porque sendo a existência a essência de Deus, como já demonstramos, se Deus pertencesse a algum gênero, este seria necessariamente o do ser, pois o gênero exprime a essência de uma coisa e predica o que a coisa é. Ora, como o Filósofo o demonstra, o ser não pode constituir gênero de nada; pois, todo gênero implica diferenças estranhas à sua essência. E não é possível descobrir nenhuma diferença exterior ao ser, visto que não pode o não-ser diferenciar nada. Donde resulta que Deus não pertence a nenhum gênero. Terceiro, porque todas as coisas pertencentes a um mesmo gênero devem ter também a mesma quididade ou essência genérica, que lhes é atribuída por atribuição essencial. Mas diferem pela existência; assim, não é a mesma a existência do homem e a do cavalo, nem a de tal homem e a de tal outro. Por onde é necessário que, em todas as coisas de um mesmo gênero, difira a existência da quididade ou essência. Ora, em Deus não há tal diferença, como já demonstramos. Portanto, é manifesto que Deus não pertence especificamente a nenhum gênero. Donde resulta que não tem gênero, nem diferenças, nem definição, nem demonstração — salvo pelo efeito; porque a definição consta de gênero e diferença e é o meio para chegar à demonstração. — E também é claro que Deus não se inclui em nenhum gênero, como princípio, por via de redução. Pois, o principio redutível a um gênero não pode estender-se além desse gênero. Assim, o ponto só é princípio da quantidade contínua, e a unidade, da discreta. Ora, Deus é o princípio de todos os seres, como a seguir se demonstrará. Logo, não está contido em nenhum gênero, como em princípio.

DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O nome de substância não significa somente o que subsiste por si, porque o ser em si mesmo não é gênero, como demonstramos. Mas, significa a essência, à qual convém existir desse modo, i. é, por si mesma; sem que isso, porém, lhe constitua a essência própria. Por onde, é claro que Deus não está incluído no gênero da substância.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colhe quanto à medida proporcionada, pois esta há de, necessariamente, ser homogênea com o que mede. Ora, Deus não é medida proporcionada a nenhum ser; mas é considerado como medida de todos, porque cada um existe enquanto dele se aproxima.

ART. VI –SE EM DEUS HÁ ACIDENTES


O sexto discute-se assim. Parece que em Deus há acidentes.

1. — Pois, a substância em nenhum ser é acidente. Ora, o que num é acidente não pode ser substância em outro. Assim, prova-se que o calor, sendo acidente em outros seres, não pode ser a forma substancial do fogo. Ora, a sabedoria, a virtude e qualidades semelhantes, que são acidentes em nós, atribuem-se a Deus. Logo, há nele acidentes.

2. Demais. — Em cada gênero há um primeiro termo. Ora, muitos são os gêneros de acidentes. Se, portanto, os termos primeiros desses gêneros não existem em Deus, haverá muitos seres primeiros além de Deus, o que é inadmissível.

Mas, em contrário, todo acidente existe num sujeito. Ora, Deus não pode ser sujeito, porque não pode sê-lo a forma simples, como diz Boécio. Logo, não há nele acidentes.

SOLUÇÃO. — Do que dissemos, claramente resulta que, em Deus, não pode haver acidentes. — Primeiro, porque o sujeito está para o acidente como a potência para o ato; pois, em relação ao acidente, o sujeito é, de certo modo, atual. Ora, em Deus não há absolutamente nada de potencial, conforme se conclui do que já dissemos. — Segundo, porque Deus é o seu ser. Ora, como diz Boécio, embora o que existe seja susceptível de acréscimo, contudo, o ser em si de nenhum modo o é. Assim, um corpo cálido pode ter algo de estranho à calidez, como a brancura; mas, no calor mesmo, nada mais há além dele próprio. — Terceiro, porque tudo o que existe por si mesmo é anterior ao que tem existência acidental. Donde, sendo Deus o ser absolutamente primeiro, nada pode ter de acidental; nem mesmo os acidentes próprios, — como o de risível, no homem — podem nele existir. Porque todos os acidentes são causados pelos princípios do sujeito, e, em Deus, causa primeira, nada pode ser causado. Donde se conclui, que em Deus, não há nenhum acidente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A virtude e a sabedoria não se atribuem univocamente a Deus e a nós, como a seguir se dirá. — Donde se não segue que os acidentes existam em Deus como em nós.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Sendo a substância anterior aos acidentes, os princípios destes se reduzem aos daquela, como ao que lhes é anterior. Mas, para que todos os seres dependam de Deus, não é necessário que ele seja o primeiro no gênero da substância, senão, o primeiro, fora de todo gênero, relativamente ao ser total.

ART. VII — SE DEUS É ABSOLUTAMENTE SIMPLES


O sétimo discute-se assim. — Parece que Deus não é absolutamente simples.

1. — Pois, como o que provém de Deus o imita, do ser primeiro procedem todos os outros e, do bem primeiro, todos os bens. Ora, dos seres provenientes de Deus nenhum é absolutamente simples. Logo, também não o é Deus.

2. Demais. — Tudo o que há de melhor deve ser atribuído a Deus. Ora, para nós, o composto é melhor que o simples; assim, os corpos mistos são melhores que os elementos e estes, que as suas partes. Logo, não devemos dizer que Deus é absolutamente simples.

Mas, em contrário, como diz Agostinho, Deus é verdadeira e sumamente simples.

SOLUÇÃO. — De muitos modos podemos provar que Deus é absolutamente simples. Primeiro, pelo que já dissemos. Pois, não havendo em Deus composição de partes quantitativas, por não ser corpo, nem de forma e matéria; nem havendo nele, diferença entre a natureza e o suposto; nem composição de gêneros e diferenças; nem de sujeito e acidentes, é claro que Deus de nenhum modo é composto, mas absolutamente simples. Segundo, porque todo composto é posterior aos seus componentes, dos quais depende. Ora, Deus é o ser primeiro, como já demonstramos. Terceiro, porque todo composto terá causa; pois, coisas entre si diversas não se reduzem à unidade, senão por um princípio que as unifique. Ora, Deus não tem causa, como já demonstramos, por ser a causa eficiente primeira. Quarto, em todo composto deve haver potência e ato, que não existem em Deus; pois das partes, uma haveria de ser ato da outra, ou, pelo menos, todas seriam como que potências em relação ao todo. Quinto, porque nenhum composto se identifica com qualquer das suas partes, como manifestamente se dá num todo de partes dessemelhantes. Assim, nenhuma das suas partes é o homem, como não é o pé nenhuma das partes deste. Quanto a um todo de partes dessemelhantes, embora algumas atribuições do todo também o sejam das partes — p. ex., qualquer parte do ar ou da água é ar ou água — contudo há atribuições do todo que não convêm às partes — p. ex., por ter uma quantidade de água dois côvados, não há de tê-los também cada uma das suas partes. Logo, todo composto tem alguma coisa que dele difere. E embora se possa dizer que também no ser que tem forma há algo que dele difere, p. ex., no branco há algo que lhe não pertence à essência — contudo nada há na forma mesma que lhe seja alheio. Por onde, sendo Deus a forma pura, ou antes o ser em si mesmo, de nenhum modo pode ser composto. E a esta razão alude Hilário quando diz: Deus, sendo o poder, não tem fraquezas; nem sendo luz, consta de trevas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Os seres provenientes de Deus o imitam, como os seres causados imitam a causa primeira. Pois, da natureza do causado é, de certo modo, ser composto, porque o seu ser é, pelo menos, diverso da sua quididade, como a seguir se verá.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Para nós, os seres compostos são melhores que os simples, porque a perfeição da bondade da criatura não se encontra no simples, mas no múltiplo. Ao contrário, a perfeição da divina bondade está na simplicidade, como a seguir se verá.

ART. VIII — SE DEUS ENTRA NA COMPOSIÇÃO DOS OUTROS SERES


O oitavo discute-se assim. — Parece que Deus entra na composição dos outros seres.

1. — Pois, Dionísio diz: Ser de todas as coisas é o que, além de existir, é a divindade. Ora, tal ser entra na composição do ser individual. Logo, Deus entra na composição dos outros seres.

2. Demais. — Deus é forma, como o diz Agostinho: O verbo de Deus (que é Deus) é forma não informada. Ora, a forma faz parte do composto. Logo, Deus é parte dos seres compostos.

3. Demais. — Coisas que existem e de nenhum modo diferem são idênticas. Ora, Deus e a matéria prima, em nada diferindo entre si, são absolutamente idênticos. Mas, como a matéria prima entra na composição de todos os seres, o mesmo há de dar-se com Deus. — Prova da média. Seres diferentes hão de diferir por certas diferenças; logo, hão de necessariamente ser compostos. Ora, Deus e a matéria prima são absolutamente simples; portanto, de nenhum modo diferem.

Mas, em contrário, Dionísio: Não há nele (em Deus) contato nem qualquer comunhão por onde vá de mistura com partes.

SOLUÇÃO. — Três erros se cometeram neste assunto. Uns ensinaram ser Deus a alma do mundo, como se lê em Agostinho; e a ele se reduzem os que disseram ser Deus a alma do primeiro céu. — Outros, porém, afirmaram ser ele o principio formal de todas as cousas, e tal se diz ter sido a opinião dos Almarianos. — E o terceiro erro foi o de Davi de Dinant, concebendo estultissimamente Deus como matéria prima. — Ora, todas estas doutrinas são falsas, pois de nenhum modo é possível que Deus entre na composição de qualquer ser, nem como princípio formal, nem como material. — Primeiro, porque, consoante ficou dito, Deus é a causa eficiente primeira. Ora, a causa eficiente não coincide numericamente com a forma de seu efeito, mas só especificamente; assim, um homem gera outro. A matéria, porém, não coincide com a causa eficiente, nem numérica nem especificamente, pois é potencial, e esta atual. — Segundo, porque sendo Deus a causa eficiente primeira, é-lhe próprio, primária e essencialmente o agir. Ora, o que faz parte da composição de um ser não é agente primário e essencial; pois é, antes, o composto que age. Assim, não é a mão que age, mas, o homem, por meio dela; e o fogo aquece pelo calor. Logo, Deus não pode fazer parte de nenhum composto. — Terceiro, porque nenhuma parte do composto pode ser, absolutamente, a primeira entre os seres; nem, portanto, a matéria e a forma que são as partes primeiras dos compostos. Pois, aquela é potencial, e a potência é, em si mesma, posterior ao ato, como do sobredito resulta. A forma, por seu lado, como parte do composto, é participada. Ora, como o participante é posterior ao ser que existe por essência, assim também o é o próprio participado. P. ex., o fogo, matéria ígnea, é posterior, ao que é fogo por essência. Ora, já demonstramos que Deus é o ser absolutamente primeiro.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A divindade é chamada ser de todos os seres, efetiva e exemplarmente, e não, por essência.

RESPOSTA A SEGUNDA. — O verbo é forma exemplar; mas não é forma como parte de um composto.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os seres simples, ao contrário dos compostos, não diferem entre si senão pelo que são. Assim, o homem e o cavalo diferem entre si, por ser aquele racional e este irracional; mas essas diferenças não mais diferem entre si, por outras. Por onde, em rigor de expressão, não se dirá propriamente — diferem, mas — são diversos. Pois, segundo o Filósofo, a palavra — diverso — se emprega em sentido absoluto; ao passo que todo ser diferente de outro, difere por alguma cousa. Por isso, rigorosamente falando, a matéria prima e Deus não diferem, mas são diversos entre si. Donde, não se segue que sejam idênticos.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Questão II - Se Deus existe

QUESTÃO II — SE DEUS EXISTE


O principal intento, pois, da doutrina sagrada é transmitir o conhecimento de Deus, não somente enquanto existente em si, mas ainda como princípio e fim dos seres, e, especialmente, da criatura racional, como é claro pelo que antes se disse. Ora, pretendendo fazer a exposição desta doutrina:
  1. trataremos de Deus;
  2. do movimento da criatura racional para Deus;
  3. de Cristo que, enquanto homem, é via para tendermos a Deus.

Mas a consideração sobre Deus será tripartida. Assim:
  1. trataremos do que pertence à essência divina;
  2. do que pertence à distinção das pessoas;
  3. do que pertence à processão, que de Deus têm as criaturas.

Sobre a essência divina, porém, devemos considerar:
  1. se Deus existe;
  2. como é, ou antes, como não é;
  3. devemos considerar o que pertence à operação de Deus, a saber, a ciência, a vontade e o poder.

Na primeira questão discutem-se três artigos:
  1. Se a existência de Deus é por si mesma conhecida;
  2. Se é demonstrável;
  3. Se Deus existe;

ART. 1 — SE A EXISTÊNCIA DE DEUS É POR SI MESMA CONHECIDA


O primeiro discute-se assim — Parece que a existência de Deus é conhecida por si mesma.

1. Pois são assim conhecidas de nós as coisas cujo conhecimento temos naturalmente, como é claro quantos aos primeiros princípios. Ora, diz Damasceno: O conhecimento da existência de Deus é naturalmente ínsito em todos. Logo, a existência de Deus é conhecida por si mesma.

2. Demais — Dizem-se por si mesmas conhecidas as proposições que, conhecidos os termos, imediatamente se conhecem, o que o filósofo atribui aos primeiros princípios da demonstração; pois sabido o que são o todo e a parte, imediatamente se sabe ser qualquer todo maior que a parte. Ora, inteligida a significação do nome Deus, imediatamente se intelige o que é Deus. Pois, tal nome significa aquilo do que se não pode exprimir nada maior; ora, maior é o existente real e intelectualmente, do que o existente apenas intelectualmente. Donde, como o nome de Deus, uma vez inteligido, imediatamente existe no intelecto, segue-se que também existe realmente. Logo, a existência de Deus é por si mesma conhecida.

3. Demais — A existência da verdade é por si mesma conhecida, pois quem lhe nega a existência a concede; porquanto, se não existe, é verdade que não existe. Portanto, se alguma coisa é verdadeira, é necessária a existência da verdade. Ora, Deus é a própria verdade, como diz a Escritura (Jo, 14, 6): Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Logo, a existência de Deus é por si mesma conhecida.

Mas, em contrário — Ninguém pode pensar o contrário do que é conhecido por si, como se vê no Filósofo, sobre os primeiros princípios da demonstração. Ora, podemos pensar o contrário da existência de Deus, segundo a Escritura (Sl. 52, 1): Disse o néscio no seu coração: Não há Deus. Logo, a existência de Deus não é por si conhecida.

SOLUÇÃO — De dois modos pode uma coisa ser conhecida por si: absolutamente, e não relativamente a nós; e absolutamente e relativamente a nós. Pois qualquer proposição é conhecida por si, quando o predicado se inclui em noção do sujeito, p. ex.: O homem é um animal, pertencendo animal à noção de homem. Se, portanto, for conhecido de todos o que é o predicado e o sujeito, tal proposição será para todos evidente; como se dá com os primeiros princípios da demonstração, cujos termos — o ser e o não ser, o todo e a parte e semelhantes — são tão comuns que ninguém os ignora. Mas, para quem não souber o que são o predicado e o sujeito, a proposição não será evidente, embora o seja, considerada em si mesma. E por isso, como diz Boécio, certas concepções de espírito são comuns e conhecidas por si, mas só para os sapientes, como p. ex.: os seres incorpóreos não ocupam lugar. Digo, portanto, que a proposição Deus existe, quanto à sua natureza, é evidente, pois o predicado se identifica com o sujeito, sendo Deus o seu ser, como adiante se verá. Mas, como não sabemos o que é Deus, ela não nos é por si evidente, mas necessita de ser demonstrada, pelos efeitos mais conhecidos de nós e menos conhecidos por natureza.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Conhecer a existência de Deus de modo geral e com certa confusão, é-nos naturalmente ínsito, por ser Deus a felicidade do homem: pois, este naturalmente deseja a felicidade e o que naturalmente deseja, naturalmente conhece. Mas isto não é pura e simplesmente conhecer a existência de Deus, assim como conhecer quem vem não é conhecer Pedro, embora Pedro venha vindo. Pois, uns pensam que o bem perfeito do homem, a felicidade, consiste nas riquezas; outros, noutras coisas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Talvez quem ouve o nome de Deus não o intelige como significando o ser, maior que o qual nada possa ser pensado; pois, alguns acreditam ser Deus corpo. Porém, mesmo concedido que alguém intelija o nome de Deus com tal significação, a saber, maior do que o qual nada pode ser pensado, nem por isso daí se conclui que intelija a existência real do que significa tal nome, senão só na apreensão do intelecto. Nem se poderia afirmar que existe realmente, a menos que se não concedesse existir realmente algum ser tal que não se possa conceber outro maior, o que não é concedido pelos que negam a existência de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A existência da verdade em geral é conhecida por si; mas a da primeira verdade não o é, relativamente a nós.

ART. 2 — SE É DEMONSTRÁVEL A EXISTÊNCIA DE DEUS


O segundo discute-se assim — Parece que não é demonstrável a existência de Deus.

1. Pois, tal existência é artigo de fé. Ora, as coisas da fé não são demonstráveis, porque a demonstração dá a ciência, e a fé é própria do que não é aparente, como se vê no Apóstolo (Heb. 11,1). Logo, a existência de Deus não é demonstrável.

2. Demais — O termo médio da demonstração é a quididade. Ora, não podemos saber o que é Deus, como diz Damasceno. Logo, não lhe podemos demonstrar a existência.

3. Demais — Se se demonstrasse a existência de Deus, só poderia sê-lo pelos seus efeitos. Ora, sendo Deus infinito e estes, finitos, e não havendo proporção entre o finito e o infinito, os efeitos não lhe são proporcionados. E, como a causa se não pode demonstrar pelo efeito, que não lhe é proporcionado, conclui-se que não se pode demonstrar a existência de Deus.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Rm. 1, 20): As coisas invisíveis de Deus se vêm depois da criação do mundo, consideradas pelas obras que foram feitas. Ora, isto não se daria, se a existência de Deus não se pudesse demonstrar pelas coisas feitas, pois o que primeiro se deve inteligir de um ser é se existe.

SOLUÇÃO. — Há duas espécies de demonstração. Uma, pela causa, pelo porquê das coisas, a qual se apóia simplesmente nas causas primeiras. Outra, pelo efeito, que é chamada a posteriori, embora se baseie no que é primeiro para nós; quando um efeito nos é mais manifesto que a sua causa, por ele chegamos ao conhecimento desta. Ora, podemos demonstrar a existência da causa própria de um efeito, sempre que este nos é mais conhecido que aquela; porque, dependendo os efeitos da causa, a existência deles supõe, necessariamente, a preexistência desta. Por onde, não nos sendo evidente, a existência de Deus é demonstrável pelos efeitos que conhecemos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A existência de Deus e outras noções semelhantes que, pela razão natural, podem ser conhecidas de Deus, não são artigos de fé, como diz a Escritura (Rm. 1, 19), mas preâmbulos a eles; pois, como a fé pressupõe o conhecimento natural, a graça pressupõe a natureza, e a perfeição, o perfectível. Nada, entretanto, impede ser aquilo, que em si é demonstrável e cognoscível, aceito como crível por alguém que não compreende a demonstração.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Quando se demonstra a causa pelo efeito, é necessário empregar este em lugar da definição daquela, cuja existência se vai provar: e isto sobretudo se dá em relação a Deus. Pois, para provar a existência de alguma coisa, é necessário tomar como termo médio o que significa o nome e não o que a coisa é, porque a questão — o que é — segue-se à outra — se é. Ora, os nomes a Deus se impõe pelos efeitos, como depois se mostrará; donde, demonstrando a existência de Deus, pelo efeito, podemos tomar como termo médio a significação do nome de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Efeitos não proporcionados à causa não levam a um conhecimento perfeito dela; todavia, por qualquer efeito nos pode ser, manifestamente, demonstrada a existência da causa, como se disse. E assim, pelos seus efeitos, pode ser demonstrada a existência de Deus, embora por eles não possamos perfeitamente conhecê-lo na sua essência.

ART. 3 — SE DEUS EXISTE


O terceiro discute-se assim — Parece que Deus não existe.

1. Pois, um dos contrários, sendo infinito, destrói o outro totalmente. E como, pelo nome de Deus, se intelige um bem infinito, se existisse Deus, o mal não existiria. O mal, porém, existe no mundo. Logo, Deus não existe.

2. Demais — O que se pode fazer com menos não se deve fazer com mais. Ora, tudo o que no mundo aparece pode ser feito por outros princípios, suposto que Deus não exista; pois, o natural se reduz ao princípio, que é a natureza; e o proposital, à razão humana ou à vontade. Logo, nenhuma necessidade há de se supor a existência de Deus.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Ex. 3, 14), da pessoa de Deus: Eu sou quem sou.

SOLUÇÃO. — Por cinco vias pode-se provar a existência de Deus. A primeira e mais manifesta é a procedente do movimento; pois, é certo e verificado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo. Ora, todo o movido por outro o é. Porque nada é movido senão enquanto potencial, relativamente àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma coisa da potência ao ato; assim, o cálido atual, como o fogo, torna a madeira, cálido potencial, em cálido atual e dessa maneira, a move e altera. Ora, não é possível uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de vista diversos; pois, o cálido atual não pode ser simultaneamente cálido potencial, mas, é frio em potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois, tudo o que é movido há-de sê-lo por outro. Se, portanto, o motor também se move, é necessário seja movido por outro, e este por outro. Ora, não se pode assim proceder até ao infinito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por conseqüência, outro qualquer; pois, os motores segundos não movem, senão movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos dão o nome de Deus.

A segunda via procede da natureza da causa eficiente. Pois, descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres sensíveis; porém, não concebemos, nem é possível que uma coisa seja causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma; o que não pode ser. Mas, é impossível, nas causas eficientes, proceder-se até o infinito; pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é causa da média e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só; e como, removida a causa, removido fica o efeito, se nas causas eficientes não houver primeira, não haverá média nem última. Procedendo-se ao infinito, não haverá primeira causa eficiente, nem efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos dão o nome de Deus.

A terceira via, procedente do possível e do necessário, é a seguinte — Vemos que certas coisas podem ser e não ser, podendo ser geradas e corrompidas. Ora, impossível é existirem sempre todos os seres de tal natureza, pois o que pode não ser, algum tempo não foi. Se, portanto, todas as coisas podem não ser, algum tempo nenhuma existia. Mas, se tal fosse verdade, ainda agora nada existiria pois, o que não é só pode começar a existir por uma coisa já existente; ora, nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a existir, e portanto, nada existiria, o que, evidentemente, é falso. Logo, nem todos os seres são possíveis, mas é forçoso que algum dentre eles seja necessário. Ora, tudo o que é necessário ou tem de fora a causa de sua necessidade ou não a tem. Mas não é possível proceder ao infinito, nos seres necessários, que têm a causa da própria necessidade, como também o não é nas causas eficientes, como já se provou. Por onde, é forçoso admitir um ser por si necessário, não tendo de fora a causa da sua necessidade, antes, sendo a causa da necessidade dos outros; e a tal ser, todos chamam Deus.

A quarta via procede dos graus que se encontram nas coisas. — Assim, nelas se encontram em proporção maior e menor o bem, a verdade, a nobreza e outros atributos semelhantes. Ora, o mais e o menos se dizem de diversos atributos enquanto se aproximam de um máximo, diversamente; assim, o mais cálido é o que mais se aproxima do maximamente cálido. Há, portanto, algo verdadeiríssimo, ótimo e nobilíssimo e, por conseqüente, maximamente ser; pois, as coisas maximamente verdadeiras são maximamente seres, como diz o Filósofo. Ora, o que é maximamente tal, em um gênero, é causa de tudo o que esse gênero compreende; assim o fogo, maximamente cálido, é causa de todos os cálidos, como no mesmo lugar se diz. Logo, há um ser, causa do ser, e da bondade, e de qualquer perfeição em tudo quanto existe, e chama-se Deus.

A quinta procede do governo das coisas — Pois, vemos que algumas, como os corpos naturais, que carecem de conhecimento, operam em vista de um fim; o que se conclui de operarem sempre ou freqüentemente do mesmo modo, para conseguirem o que é ótimo; donde resulta que chegam ao fim, não pelo acaso, mas pela intenção. Mas, os seres sem conhecimento não tendem ao fim sem serem dirigidos por um ente conhecedor e inteligente, como a seta, pelo arqueiro. Logo, há um ser inteligente, pelo qual todas as coisas naturais se ordenam ao fim, e a que chamamos Deus.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz Agostinho, Deus sumamente bom, de nenhum modo permitiria existir algum mal nas suas obras, se não fosse onipotente e bom para, mesmo do mal, tirar o bem. Logo, pertence à infinita bondade de Deus permitir o mal para deste fazer jorrar o bem.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A natureza, operando para um fim determinado, sob a direção de um agente superior, é necessário que as coisas feitas por ela ainda se reduzam a Deus, como à causa primeira. E, semelhantemente, as coisas propositadamente feitas devem-se reduzir a alguma causa mais alta, que não a razão e a vontade humanas, mutáveis e defectíveis; é, logo, necessário que todas as coisas móveis e suscetíveis de defeito se reduzam a algum primeiro princípio imóvel e por si necessário, como se demonstrou.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Questão I — Do que é e do que abrange a Doutrina Sagrada

QUESTÃO I — DO QUE É E DO QUE ABRANGE A DOUTRINA SAGRADA


Para que fique bem delimitado o nosso intento, cumpre investigar, primeiro, qual seja a doutrina sagrada, em si mesma, e a que objetos se estende. Sobre este assunto discutem-se dez artigos:
  1. Da necessidade de tal doutrina;
  2. Se é ciência;
  3. Se é só uma ciência ou várias;
  4. Se é especulativa ou prática;
  5. Sua comparação com outras ciências;
  6. Se é sabedoria;
  7. Qual o seu objeto;
  8. Se é argumentativa;
  9. Se deve usar de metáforas ou locuções simbólicas;
  10. Se a Escritura Sagrada, que dessa doutrina faz parte, deve ser exposta em mais de um sentido.

ART. 1 — SE, ALÉM DAS CIÊNCIAS FILOSÓFICAS, É NECESSÁRIA OUTRA DOUTRINA


(IIa IIae., q. 2, a. 3, 4; I Sent., prol., a. 1; I Cont. Gent., cap. IV, V; De Verit., q. 14, a. 10)

O primeiro discute-se assim — Parece desnecessária outra doutrina além das disciplinas filosóficas.

1. — Pois não se deve esforçar o homem por alcançar objetos que ultrapassem a razão, segundo a Escritura (Ecle. 3, 22): Não procures saber coisas mais dificultosas do que as que cabem na tua capacidade. Ora, o que é da alçada racional ensina-se, com suficiência, nas disciplinas filosóficas; logo, parece escusada outra doutrina além das disciplinas filosóficas.

2. — Ademais, não há doutrina senão do ser, pois nada se sabe, senão o verdadeiro, que no ser se converte. Ora, de todas as partes do ser trata a filosofia, inclusive de Deus; por onde, um ramo filosófico se chama teologia ou ciência divina, como está no Filósofo. Logo, não é preciso que haja outra doutrina além das filosóficas.

Mas, em contrário, a Escritura (II Tm. 3, 16): Toda a Escritura divinamente inspirada é útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir na justiça. Porém, a Escritura, divinamente revelada, não pertence às disciplinas filosóficas, adquiridas pela razão humana; por onde, é útil haver outra ciência, divinamente revelada, além das filosóficas.

SOLUÇÃO. — Para a salvação do homem, é necessária uma doutrina conforme à revelação divina, além das filosóficas, pesquisadas pela razão humana. Porque, primeiramente, o homem é por Deus ordenado a um fim que lhe excede a compreensão racional, segundo a Escritura (Is 64, 4): O olho não viu, exceto tu, ó Deus, o que tens preparado para os que te esperam. Ora, o fim deve ser previamente conhecido pelos homens, que para ele têm de ordenar as intenções e atos. De sorte que, para a salvação do homem, foi preciso, por divina revelação, tornarem-se-lhe conhecidas certas verdades superiores à razão.

Mas também naquilo que de Deus pode ser investigado pela razão humana, foi necessário ser o homem instruído pela revelação divina. Porque a verdade sobre Deus, exarada pela razão, chegaria aos homens por meio de poucos, depois de longo tempo e de mistura com muitos erros; se bem do conhecer essa verdade depende toda a salvação humana, que em Deus consiste. Logo, para que mais conveniente e segura adviesse aos homens a salvação, cumpria fossem, por divina revelação, ensinados nas coisas divinas. Donde foi necessária uma doutrina sagrada e revelada, além das filosóficas, racionalmente adquiridas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora se não possa inquirir pela razão o que sobrepuja a ciência humana, pode-se entretanto recebê-lo por fé divinamente revelada. Por isso, no lugar citado (Ecle. 3, 25), se acrescenta: Muitas coisas te têm sido patenteadas que excedem o entendimento dos homens. E nisto consiste a sagrada doutrina.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O meio de conhecer diverso induz a diversidade das ciências. Assim, o astrônomo e o físico demonstram a mesma conclusão, p. ex., que a terra é redonda; se bem o astrônomo, por meio matemático, abstrato da matéria; e o físico, considerando a mesma. Portanto, nada impede que os mesmos assuntos, tratados nas disciplinas filosóficas, enquanto cognoscíveis pela razão natural, também sejam objeto de outra ciência, enquanto conhecidos pela revelação divina. Donde a teologia, atinente à sagrada doutrina, difere genericamente daquela teologia que faz parte da filosofia.

ART. 2 — SE A DOUTRINA SAGRADA É CIÊNCIA.


(IIa IIae., q.1, a. 5, ad 2; I Sent., prol., a. 3. qa. 2; De Verit., q. 14 a. 9, ad 3; in Boet., De Trin., q. 2, a. 2)

O segundo discute-se assim — Parece não ser ciência a doutrina sagrada.

1. — Pois toda ciência provém de princípios por si evidentes, ao passo que procede a doutrina sagrada dos artigos da fé, inevidentes em si, por serem não universalmente aceitos; porque a fé não é de todos, diz a Escritura (II Ts. 3, 2). Logo, não é ciência a doutrina sagrada.

2. — Ademais, do indivíduo não há ciência. Mas a doutrina sagrada trata de fatos individuais, como sejam os feitos de Abraão, Isaac, Jacó e semelhantes. Logo, não é ciência a doutrina sagrada.

Mas, em contrário, Agostinho: A esta ciência só aquilo se atribui com que se gera, nutre, defende e corrobora a fé salubérrima. Ora, a nenhuma ciência pertence tal, senão à doutrina sagrada. Por onde, é ciência a doutrina sagrada.

SOLUÇÃO. — A doutrina sagrada é ciência. Porém, cumpre saber que há dois gêneros de ciências. Umas partem de princípios conhecidos à luz natural do intelecto, como a aritmética, a geometria e semelhantes. Outras provém de princípios conhecidos por ciência superior; como a perspectiva, de princípios explicados na geometria, e a música, de princípios aritméticos. E deste modo é ciência a doutrina sagrada, pois deriva de princípios conhecidos à luz duma ciência superior, a saber: a de Deus e dos santos. Portanto, como aceita a música os princípios que lhe fornece o aritmético, assim a doutrina sagrada tem fé nos princípios que lhe são por Deus revelados.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os princípios de qualquer ciência, ou são por si mesmos evidentes, ou se reduzem à evidência de alguma ciência superior. E tais são os princípios da doutrina sagrada, como dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Na doutrina sagrada, os fatos individuais não são tratados principalmente, senão apenas introduzidos a título de exemplo prático, como nas ciências morais; ou também no intuito de apurar a autoridade dos homens que nos transmitiram a revelação divina, na qual se funda a Sagrada Escritura ou doutrina.

ART. 3 — SE A DOUTRINA SAGRADA É UMA SÓ CIÊNCIA.


(I Sent., prol., a. 2, 4)

O terceiro discute-se assim — Não parece uma só ciência a doutrina sagrada.

1. — Pois, como diz o Filósofo, cada ciência se ocupa com um só gênero de objetos. Ora, criador e criatura, objetos da doutrina sagrada, não pertencem ao mesmo gênero. Logo, não é uma só ciência a doutrina sagrada.

2. — Ademais, a doutrina sagrada trata dos anjos, das criaturas corpóreas e dos costumes humanos, se bem tais assuntos respeitem a ciências filosóficas diversas. Por onde, não é uma só ciência a doutrina sagrada.

Mas, em contrário, a ela se refere a Sagrada Escritura no singular, quando diz (Sb. 10, 10): E lhe deu a ciência dos santos.

SOLUÇÃO. — É só uma ciência a doutrina sagrada. Pois, da potência, como do hábito, deve-se determinar a unidade pelo respectivo objeto, considerado na idéia formal e não materialmente. Assim: homem, asno e pedra convêm num só conceito formal de cor, objeto da potência visiva. Ora, considerando a Sagrada Escritura vários assuntos como divinamente revelados, conforme dissemos antes, todas as coisas divinamente reveláveis comunicam num só conceito formal do objeto desta ciência. Donde as abrange a doutrina sagrada como sendo uma só ciência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A doutrina sagrada não assenta conclusões a título igual sobre Deus e as criaturas, mas sim de Deus principalmente, e das criaturas enquanto se referem a Deus como princípio ou fim; o que não tolhe a unidade da ciência.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Nada impede se distingam as potências inferiores ou hábitos por objetos, todos dependentes de uma potência ou hábito superior; pois estes últimos consideram o objeto por modo formalmente mais extenso. Assim, o sentido comum tem por objeto o sensível, que abrange o visível e o audível; por onde, apesar de ser uma só potência, estende-se a todos os objetos dos cinco sentidos. Semelhantemente, a doutrina sagrada, suposto seja uma somente, pode ocupar-se com os objetos de ciências filosóficas diversas, sob um aspecto, enquanto reveláveis divinamente; de modo que ela parece impressão da ciência divina, saber simples e singular de todos os objetos.

ART. 4 — SE A DOUTRINA SAGRADA É CIÊNCIA PRÁTICA


(I Sent., prol. a. 3, qa. 1)

O quarto discute-se assim — Parece que a doutrina sagrada é uma ciência prática.

1. — Pois, segundo o Filósofo, no livro II da Metafísica, o fim do saber prático é o operar; e a doutrina sagrada à operação se ordena, conforme a Escritura (Tg. 1, 22): Sede, pois, fazedores da palavra, e não ouvintes tão somente. Logo, é ciência prática.

2. Demais — A doutrina sagrada abrange a lei antiga e a nova. Ora, a lei respeita à ciência moral, que é prática. Donde, é ciência prática a doutrina sagrada.

Mas, em contrário, toda ciência prática tem por objeto as coisas factíveis pelo homem; v.g. a moral, os atos humanos e a arquitetura, os edifícios. Ora, a doutrina sagrada tem por objeto principal Deus, de quem, pelo contrário, são obras os seres humanos. Por onde, não é ciência prática, mas, antes, especulativa.

SOLUÇÃO. — A doutrina sagrada, sendo uma única ciência, como dissemos antes, contém os objetos de várias disciplinas filosóficas pelo aspecto formal, que neles considera, de serem cognoscíveis à luz divina. Donde, embora nas ciências filosóficas, seja uma a especulativa, e outra, a prática, a sagrada doutrina compreende o objeto de ambas; bem como Deus, pela mesma ciência, conhece o próprio ser e suas obras. Contudo, é mais especulativa que prática, por conhecer antes das coisas divinas que dos atos humanos, tratando destes enquanto o homem, por eles, se ordena ao conhecimento perfeito de Deus, essência da felicidade eterna.

Donde resultam claras as respostas às objeções.

ART. 5 — SE A DOUTRINA SAGRADA É MAIS DIGNA QUE AS OUTRAS CIÊNCIAS


(IIa IIae, q. 66, a. 5, ad 3; I Sent., prol., a.1; II Cont. Gent., cap. IV)

O quinto discute-se assim — Parece não ser a doutrina sagrada mais digna que as outras ciências.

1. — Pois é digno o saber enquanto certo; e as demais ciências, que partem de princípios indubitáveis, parecem mais certas que a doutrina sagrada, cujos princípios, ou artigos de fé, são sujeitos à dúvida. Donde, as outras ciências parecem mais dignas que ela.

2. Demais — a ciência inferior aproveita-se da superior; assim, do aritmético, o músico. Ora, a doutrina sagrada recebe algo das disciplinas filosóficas, pois, diz Jerônimo, os doutores antigos de tal modo encheram os livros de doutrinas e sentenças dos filósofos, que não sabemos o que mais seja neles de admirar: se a erudição secular ou a ciência das Escrituras. Logo, a doutrina sagrada é inferior às outras ciências.

Mas, em contrário, as demais ciências são chamadas escravas desta, segundo a Escritura (Pr. 9, 3): Enviou as suas escravas a chamar à fortaleza.

SOLUÇÃO. — A dita ciência, por ser especulativa a um respeito e a outro, prática, sobreleva a todas as demais, tanto especulativas como práticas. Pois, das ciências especulativas, uma é considerada mais digna que outra, quer pela certeza, quer pela nobreza do assunto; e, de ambos os pontos-de-vista excede esta ciência às outras especulativas. Quanto à certeza, porque as outras a têm pelo lume natural da razão humana, que pode errar, e a possui esta pela luz da ciência divina, que se não pode enganar. Quanto à nobreza do assunto, porque esta versa principalmente sobre matérias que, pela sua profundeza, ultrapassam a razão; considerando as outras só aquilo que se pode alcançar racionalmente. — Das ciências práticas, mais digna é aquela que não é subordinada a um fim ulterior; assim, a civil supera a militar, pois o bem do exército se subordina ao do Estado. Ora, o fim da doutrina sagrada, enquanto prática, é a eterna felicidade, para a qual se ordenam, como ao fim último, todos os outros fins das ciências práticas. Por onde, é manifesto que, a todas as luzes, é mais digna que as outras.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Nada impede ser o mais certo, por natureza, menos certo, pelo que nos toca, por causa da fraqueza do nosso intelecto, que está para as coisas mais evidentes como os olhos da coruja para a luz do sol, como diz Aristóteles. Donde, a dúvida de certos sobre os artigos da fé não provém da incerteza do assunto, senão da fraqueza do intelecto humano; se bem o mínimo conhecimento que pudermos adquirir das coisas altíssimas é mais desejável que o conhecimento certíssimo de coisas mínimas, conforme o Filósofo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Esta ciência pode receber auxílio das filosóficas, não por lhe serem indispensáveis, mas para maior clareza dos assuntos de que trata. Porém, das outras ciências não recebe os seus princípios, senão de Deus, por imediata revelação. Nem, portanto, recebe das outras ciências como de superiores, senão que delas usa como inferiores e servas, como as arquitetônicas, das auxiliares e a civil, da militar. E esse mesmo usar delas não é por defeito ou insuficiência sua, e sim por imperfeição do nosso entendimento, que das coisas conhecidas pela razão natural (donde procedem as outras ciências) mais facilmente é levado para aquelas que a sobrepujam e são o objeto desta ciência.

ART. 6 — SE ESTA DOUTRINA É SABEDORIA


(I Sent., prol., a. 3, qa I, 3; II Cont. Gent., cap. IV)

O sexto discute-se assim — Parece que esta doutrina não é sabedoria.

1. Pois nenhuma doutrina que receba de outra os seus princípios, merece o nome de sabedoria, cabendo ao sábio ordenar e não ser ordenado, como diz Aristóteles. Ora, esta doutrina recebe de outra os seus princípios, como do sobredito aparece. Logo, não é sabedoria.

2. Demais — À sabedoria compete provar os princípios das outras ciências, por onde é chamada cabeça das demais, como se vê no Filósofo. Ora, não justifica esta doutrina os princípios das outras ciências, nem é, portanto, sabedoria.

3. Demais — Adquire-se esta doutrina pelo estudo, mas recebemos a sabedoria por infusão, e, por isso, se conta entre os sete dons do Espírito Santo, como se vê na Escritura (Is 2,2). Logo, esta doutrina não é sabedoria.

Mas, em contrário, a Escritura (Dt. 4, 6): Porque nisto mostrarei a vossa sabedoria e inteligência aos povos.

SOLUÇÃO. — De toda a sabedoria humana, é esta doutrina a mais alta, não relativa, mas absolutamente. Pois sendo próprio do sábio ordenar e julgar, e, pela causa mais alta, considerar as inferiores, sábio se chama, em qualquer gênero, quem lhe atende à altíssima causa. Assim, no tocante à construção, o artífice que traça a planta da casa é chamado sábio e arquiteto, em relação aos operários inferiores, que aplainam a madeira e preparam as pedras; donde o dito da Escritura (I Cor. 3,10): Lancei o fundamento como sábio arquiteto. Também, no que respeita à vida humana em conjunto, é o prudente chamado sábio, enquanto ordena os atos humanos ao fim obrigatório; donde outro dito da Escritura (Pr. 10, 23): A sabedoria é, para o homem, prudência. Quem, portanto, considera a causa absoluta mais alta do universo, que é Deus, deve ser chamado sábio por excelência. Pelo que também se define a sabedoria conhecimento das coisas divinas, como se vê em Agostinho. Ora, o próprio da sagrada doutrina é considerar a Deus, causa altíssima, não só enquanto cognoscível por meio das criaturas — o que souberam os filósofos, como diz a Escritura (Rm. 1, 19): O que se pode conhecer de Deus lhes é manifesto — senão também naquilo que só ele de si mesmo conhece e foi aos outros revelado e comunicado. Por isso, tal doutrina em sumo grau merece o nome de sabedoria.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não recebe a sagrada doutrina os seus princípios de nenhum saber humano, senão da ciência divina, a qual regula todo o nosso conhecimento, a título de suprema sabedoria.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os princípios das demais ciências ou são por si evidentes, e não podem ser provados; ou se demonstram noutra ciência por algum motivo natural. Porém, o conhecimento próprio desta ciência assenta na revelação, e não em premissas naturais. Donde, não lhe cabe provar os princípios das outras ciências, mas só julgá-las; porque tudo o que nelas repugnar à verdade desta, condena-se, de vez, como falso, segundo o Apóstolo (II Cor 10, 4-5): Derribando os conselhos e toda a altura que se levanta contra a ciência de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Por ser o juízo próprio do sábio, e por haver dois modos de julgar, deve a sabedoria ter dois sentidos. O primeiro modo de julgar é por inclinação: por exemplo, quem tiver bons costumes, por atração da virtude, pode com acerto julgar dos atos que se devem praticar moralmente. Por isto está em Aristóteles: o virtuoso é medida e regra dos atos humanos. — O segundo modo é pelo conhecimento: como o instruído na ciência moral poderia julgar dos atos de virtude, mesmo se a não tivesse. Ora, o primeiro modo de julgar as coisas divinas pertence à sabedoria enquanto dom do Espírito Santo, segundo a Escritura (I Cor 2,15): O espiritual julga todas as causas; e Dionísio: Hieroteu é douto, não só por aprender mas, antes, por sentir as coisas divinas. O segundo modo de julgar é próprio desta doutrina, enquanto se adquire por estudo, embora sejam os princípios recebidos pela revelação.

ART. 7 — SE DEUS É O OBJETO DESTA CIÊNCIA


(I Sent. Prol., a. 4; in Boet., De Trin., q. 5, a. 4)

O sétimo discute-se assim — Parece não ser Deus o objeto desta ciência.

1. — Pois é necessário, em qualquer ciência, supor a essência do objeto, segundo o Filósofo. Ora, esta ciência não supõe a essência de Deus, pois, diz Damasceno: É impossível assinalar a essência divina. Donde, não é Deus o objeto desta ciência.

2. Demais — abrange o objeto da ciência tudo o que ela trata. Porém, na sagrada doutrina, há muitos outros assuntos além de Deus, p.ex.: as criaturas e os costumes humanos. Logo, não é Deus o objeto desta ciência.

Mas, em contrário, objeto da ciência é o assunto nela principalmente tratado. Ora, Deus é o assunto principal desta ciência, pois é chamada teologia ou tratado de Deus. Logo, Deus é o objeto desta ciência.

SOLUÇÃO. — Deus é o objeto desta ciência, porque o objeto está para a ciência como para a potência ou hábito. Ora, propriamente, é considerado objeto de potência ou hábito aquilo sob cujo aspecto se lhes refere qualquer coisa. Donde, referindo-se à vista, enquanto coloridos, o homem e a pedra, é a cor o objeto próprio da vista. Ora, a sagrada doutrina tudo trata com referência a Deus, por tratar ou do mesmo Deus ou das coisas que lhe digam respeito, como princípio ou fim. Pelo que, é Deus, verdadeiramente, o objeto desta ciência — o que também se demonstra pelos princípios da dita ciência, ou artigos da fé, de que Deus é objeto. Ora, idêntico objeto têm os princípios e toda a ciência, por estar a última, total e virtualmente, contida nos princípios. — Certos, porém, atendendo às matérias tratadas e não ao ponto-de-vista, a esta ciência assinalaram outro objeto; como, a realidade e os símbolos, ou as obras da reparação; ou todo Cristo, i.é., a cabeça e os membros. E, com efeito, são consideradas nesta ciência todas essas matérias, se bem com relação a Deus.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora seja impossível conhecermos a essência divina, contudo nesta doutrina, lhe usamos do efeito, no domínio natural ou da graça, em vez da definição da causa, para daí tirar as conclusões da ordem divina, consideradas na mesma doutrina. Assim como, em certas ciências filosóficas, pelo efeito se demonstra algo da causa, tomando aquele em lugar da definição desta.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Todos os demais assuntos tratados na doutrina sagrada estão incluídos em Deus, não como partes, espécies ou acidentes, mas como a ele de certo modo ordenados.

ART. 8 — SE ESTA DOUTRINA É ARGUMENTATIVA


(IIa IIae, q. I, a. 5, ad 2; I Sent., prol., a. 5; I Cont. Gent., cap. IX; in Boet., De Trin.,q. 2, a. 3; Quodlib., IV, q. 9, a.3)

O oitavo discute-se assim — Parece que esta doutrina não é argumentativa.

1. — Pois, diz Ambrósio: Deixa os argumentos quando se procura a fé. Ora, por esta doutrina procuramos principalmente a fé, pelo que diz a Escritura (Jo. 20, 31): Foram escritos estes (prodígios) afim de que vós creais. Logo, a doutrina sagrada não é argumentativa.

2. Demais — se for argumentativa, há de sê-lo pela autoridade ou pela razão. Se pela autoridade tal não lhe parece caber à dignidade, pois fragilíssimo é o argumento de autoridade, conforme Boécio. Se pela razão, isso não lhe convém ao fim, porque, segundo Gregório, não tem mérito a fé onde a razão fornece a prova. Donde, não é argumentativa a doutrina sagrada.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Tt. 1, 9) a respeito do bispo: Que abrange a palavra fiel, que é segundo a doutrina, para que possa exortar conforme à sã doutrina e convencer aos que o contradizem.

SOLUÇÃO. — Como as outras ciências não argumentam para provar os seus princípios, mas, com estes, raciocinam para demonstrar outros pontos, assim também, não argumenta esta doutrina para provar os seus princípios ou artigos da fé, senão que destes procede para mostrar outra verdade. Assim é que o Apóstolo (I Cor. 15) argumenta com a ressurreição de Cristo para provar a de todos os homens.

Cumpre, no entanto, considerar que as ciências filosóficas inferiores nem provam os seus princípios, nem disputam contra aqueles que os negam, mas isto deixam para a ciência superior. Porém, dentre elas, a suprema, a saber, a Metafísica, discute contra quem lhe nega os princípios, se o adversário concede algum ponto; mas, se nada concede, não se pode com ele discutir, bem que se lhe possam refutar as objeções. Da mesma forma, a sagrada doutrina, por não ter nenhuma superior, disputa contra quem lhe nega os princípios, com argumentos, se o adversário conceder algum ponto revelado; e assim, com as autoridades da doutrina sagrada, discutimos contra os hereges e, por um artigo da fé, contra os negadores de outro. Se, porém, o adversário não acredita em ponto algum da revelação divina, já não há meio para lhe provar com razões os artigos da fé, mas, sim, para lhe refutar as objeções contra esta, porventura assacadas. Porque, assentando a fé na verdade infalível, e sendo impossível demonstrar o contrário da verdade, claro está que as razões dirigidas contra a fé não são demonstráveis, senão argumentos refutáveis.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora não tenham cabimento, para provar os pontos da fé, os argumentos da razão humana, todavia, com os artigos da fé, esta doutrina argumenta para provar outras verdades, segundo o sobredito.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Muitíssimo próprio a esta doutrina é o argumentar por autoridade, sendo-lhe os princípios obtidos pela revelação; pelo que é mister acreditar na autoridade daqueles a quem a revelação foi feita. Nem isso derroga à dignidade de tal doutrina; pois, embora fragilíssima a autoridade fundada na razão humana, eficacíssima é contudo a quem assenta na revelação divina. Apesar disso, a doutrina sagrada também usa da razão humana, não, por certo, para provar a fé, o que lhe suprimiria o mérito, senão para manifestar, de algum modo, ensinamentos seus. Pois, como a graça não tolhe, mas aperfeiçoa a natureza, importa que a razão humana preste serviços à fé, assim como a inclinação natural da vontade está às ordens da caridade. No mesmo sentido julga a Escritura (II Cor. 10,5): Reduzindo a cativeiro todo o entendimento para que obedeça a Cristo. Donde provém que a doutrina sagrada até lança mão da autoridade dos filósofos, nos assuntos em que pela razão natural puderam conhecer a verdade. Assim, Paulo alega a palavra de Arato (At. 17, 28): Como disseram ainda alguns de vossos poetas: Que somos linhagem divina. Porém, de tais autoridades se aproveita a doutrina sagrada como de argumentos estranhos e prováveis, ao passo que emprega as autoridades dos escritores canônicos como argumentos próprios e necessários. Quanto às autoridades dos outros doutores da Igreja, delas usa como argumentos próprios mas de valor provável. Porque a nossa fé se apóia na revelação feita aos Apóstolos e Profetas, que escreveram os livros canônicos; não, porém, na revelação porventura feita aos demais doutores. Donde o dizer Agostinho: Somente aos livros da Escritura, chamados canônicos, aprendi a deferir a honra de crer firmissimamente que nenhum dos seus autores erraram, que os escreveram. Os outros escritores, porém, por mais eminentes que sejam na santidade ou na doutrina, eu os leio de modo a não ter por verdadeira uma sentença só porque foi por eles aceita ou escrita.

ART. 9 — SE A DOUTRINA SAGRADA DEVE USAR DE METÁFORAS


(I Sent. Prol., a. 5; dist. XXXIV, q. 3, a. 1.2; III Cont. Gent., cap. CXIX; in Boet. De Trin., q. 2, a. 4)

O nono discute-se assim — Parece não dever a doutrina sagrada usar de metáforas.

1. — Pois o que é próprio de doutrina ínfima não pode convir a esta ciência, que ocupa, entre todas, o lugar supremo, como já se disse. Ora, proceder por comparações e representações é próprio da poética, ínfima entre todas as doutrinas. Logo, usar de tais comparações não convém a esta ciência.

2. Demais — esta doutrina considera-se como ordenada à manifestação da verdade e, por isso, prêmio é prometido aos seus expositores: Aqueles que me esclarecem têm a vida eterna. Ora, nas comparações, a verdade se oculta. Logo, não convém a esta doutrina ensinar as coisas divinas por comparação com as corpóreas.

3. Demais — quanto mais sublimes as criaturas, tanto mais se assemelham a Deus. Se, pois, algumas delas são assimiladas, metaforicamente, a Deus, para tal hão de, necessariamente e sobretudo, ser escolhidas as mais sublimes e não as ínfimas; o que, entretanto freqüentemente se encontra na Escritura.

Mas, em contrário, a Escritura (Os. 12, 10): Eu lhes multipliquei as visões; e pela mão dos mesmos profetas fui representado. Ora, transmitir alguma coisa, com semelhança, é metafórico. Logo, é próprio da doutrina sagrada usar de metáforas.

SOLUÇÃO. — É conveniente à Sagrada Escritura transmitir as coisas divinas e espirituais por comparações metafóricas com as corpóreas. Pois, provendo Deus a todos, segundo a natureza de cada um, e sendo natural ao homem chegar, pelos sensíveis, aos inteligíveis — pois todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos — convenientemente, a Sagrada Escritura nos transmite as coisas espirituais por comparações metafóricas com as corpóreas. E é isto o que diz Dionísio: É impossível alumiar-nos o raio divino sem ser circunvelado pela variedade dos véus sagrados. — Também convém à Sagrada Escritura, comumente proposta a todos, segundo o Apóstolo (Rm. I, 14) — Eu sou devedor a sábios e a ignorantes — propor as coisas espirituais por comparações com as corpóreas para que, ao menos assim, as compreendam os rudes, não idôneos para conceber os inteligíveis em si.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A poética usa de metáforas para representar, pois a representação é naturalmente deleitável ao homem. Ao passo que a doutrina sagrada dela usa por necessidade e utilidade, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O raio da divina revelação não se destrói, como diz Dionísio, pelas figuras sensíveis que o velam, mas persiste na sua verdade. E não permitem, assim, que permaneçam nas semelhanças os espíritos aos quais foi feita a revelação; antes, eleva-os ao conhecimento dos inteligíveis e, por eles também outros se instruem no referente a tais assuntos. Por onde, o que em um lugar da Escritura é exposto metaforicamente, o é, em outros, mais expressamente. E, ainda o próprio ocultar das figuras é útil, para exercício dos estudiosos e contra a irrisão dos infiéis, dos quais diz o Evangelho (Mt. 7, 6): Não deis aos cães o que é santo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como ensina Dionísio, é mais conveniente, pelas três razões seguintes, que as coisas divinas se transmitam, na Escritura, sob figura de corpos vis, do que sob a de corpos nobres.

Primeiro, porque, assim, mais a alma humana se livra do erro; pois é manifesto que tais coisas não se dizem propriamente de Deus. O que poderia ser dúbio se as coisas divinas fossem descritas sob figuras de corpos nobres, sobretudo para aqueles que nada de mais nobre conhecem que os corpos.

Segundo, por ser este método mais conforme ao conhecimento que temos de Deus nesta vida; pois dele, mais do que aquilo que é, se nos manifesta o que não é. Por onde, as semelhanças com as coisas mais afastadas de Deus, mais verdadeiro nos tornam pensar, que as ultrapassa o que de Deus dizemos ou cogitamos.

Terceiro, porque assim mais se ocultam aos indignos as coisas divinas.

ART. 10 — SE NA SAGRADA ESCRITURA UMA MESMA LETRA TEM VÁRIOS SENTIDOS: O HISTÓRICO OU LITERAL, O ALEGÓRICO, O TROPOLÓGICO OU MORAL E O ANAGÓGICO


(I Sent., prol., a. 5; IV, dist XXI, q.1, a.2, qa 1, ad 3; De Pot., q. 4, a. 1; Quodlib., III, q. 14, a. 1; VIII, q. 6; ad Gal., c. IV, lect. VII)

O décimo discute-se assim — Parece que na Sagrada Escritura, uma mesma letra não tem vários sentidos: o histórico ou literal, o alegórico, o tropológico ou moral e o anagógico.

1. — Pois a multiplicidade dos sentidos, num escrito, gera a confusão e o engano e obsta à segurança da arguição. Donde, não resulta nenhuma argumentação da multiplicidade de proposições, causa esta, antes, de sofismas. Ora, a Escritura Sagrada deve ser eficaz para mostrar a verdade, sem nenhuma falácia. Logo, nela não deve haver, numa mesma letra, vários sentidos.

2. Demais — diz Agostinho: A Escritura chamada Antigo Testamento transmite-se quadriformemente: pela história, pela etiologia, pela analogia e pela alegoria. Ora, essas quatro formas são completamente diferentes das quatros supra enumeradas. Logo, não é admissível que a mesma letra da Escritura Sagrada se exponha nos quatro sentidos preditos.

3. Demais — além dos sentidos preditos, há o parabólico, não contido nos quatro.

Mas, em contrário, Gregório: A Sagrada Escritura, pelo modo mesmo da sua locução, transcende todas as ciências; pois, com a mesma expressão, assim narra o feito como expõe o mistério.

SOLUÇÃO. — O autor da Sagrada Escritura é Deus, em cujo poder está dar significação não só às palavras, o que também o homem pode fazer, mas ainda às próprias coisas. Por isso, além do que se dá com todas as ciências, nas quais as palavras têm significação, esta ciência tem de próprio que as coisas mesmas significadas pelas palavras, por sua vez, também significam. Ora, a primeira significação, pela qual as palavras exprimem as coisas, é a do primeiro sentido, que é o histórico ou literal. E a significação pela qual as coisas expressas pelas palavras têm ainda outras significações, chama-se sentido espiritual, que se funda no literal e o supõe. Mas, este sentido espiritual tem três subdivisões. Pois, como diz o Apóstolo (Heb. 7, 19), a lei antiga é figura da nova e esta, por sua vez, como diz Dionísio, o é da glória futura; e, demais, na lei nova, as coisas feitas pelo chefe são sinais das que nós devemos fazer. Ora, quando as coisas da lei antiga significam as da nova, o sentido é alegórico; quando as realizadas em Cristo, ou nos que o que significam, são sinais das que devemos fazer, o sentido é moral; e quando significam as coisas da glória eterna, o sentido é anagógico.

Mas como o sentido literal é o que o autor tem em vista, e o autor da Sagrada Escritura é Deus, cuja inteligência tudo compreende simultaneamente, não há inconveniente, como diz Agostinho, se, mesmo no sentido literal, uma expressão da Sagrada Escritura tem vários sentidos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A multiplicidade de tais sentidos não gera o equívoco nem nenhuma outra espécie de multiplicidade; pois, como já se disse, esses sentidos se multiplicam, não por ter uma palavra muitas significações, mas porque as próprias coisas significadas pelas palavras podem ser sinais de outras coisas. Donde o não haver nenhuma confusão na Sagrada Escritura, por se fundarem todos os sentidos em um, o literal, com o qual somente se pode argumentar, e não com o sentido alegórico, como diz Agostinho. Mas, nem por isso, nada se perde da Escritura Sagrada; pois, não há nada de necessário à fé, contido no sentido espiritual, que ela não explique manifestamente, alhures, no sentido literal.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A história, a etiologia, a analogia pertencem a um mesmo sentido literal. Pois, como expôs o próprio Agostinho, a história propõe algo pura e simplesmente; a etiologia assinala a causa de uma expressão, como quando o Senhor assinalou a causa por que Moisés deu licença de repudiar as mulheres, isto é, pela dureza do coração dos hebreus; a analogia mostra que a verdade de um passo da Escritura não repugna à de outro. Ora, dentre as quatro divisões propostas, só a alegoria abrange os três sentidos espirituais. E, assim, Hugo de São Vitor compreende, no sentido alegórico, também o anagógico, admitindo somente três sentidos: o histórico, o alegórico e o tropológico.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O sentido parabólico se contém no literal, pois as palavras têm uma significação própria e outra figurada; e nem é o sentido literal a figura, mas o figurado. Pois, quando a Escritura se refere ao braço de Deus, o sentido literal não é que, em Deus, há esse membro corpóreo, mas o que é por tal membro significado, i.e, a virtude operativa.

Por onde se vê que nunca pode haver falsidade no sentido literal da Escritura Sagrada.