sexta-feira, 9 de abril de 2010

Questão XXVI - Da Beatitude Divina

QUESTÃO XXVI — DA BEATITUDE DIVINA


Depois de termos tratado da unidade da divina essência, devemos tratar da divina beatitude. E, nesta questão, discutem-se quatro artigos:
  1. Se a beatitude compete a Deus;
  2. Em virtude de que se diz que Deus é feliz; se é em virtude de um ato do intelecto;
  3. Se ele é essencialmente a beatitude de qualquer criatura feliz;
  4. Se sua beatitude inclui todas as outras.

ART. I. — SE A BEATITUDE CONVÉM A DEUS


(II Sent., dist. 1, q. 2, a. 2, ad 4; I Conto Gent., cap. C)

O primeiro discute-se assim. — Parece que a beatitude não convém a Deus.

1. — Pois, segundo Boécio, ela é o estado perfeito pela reunião de todos os bens. Ora, em Deus não existe reunião de bens nem composição. Logo, não lhe convém a beatitude.

2. Demais. — A beatitude ou a felicidade é o prêmio da virtude, segundo o Filósofo. Ora, em Deus não convém o prêmio, tampouco o mérito. Logo, nem a bem-aventurança. Mas, em contrário, o Apóstolo (1 Ti 6, 15): A Cristo mostrará Deus a seu tempo o bem-aventurado e o só poderoso, o Rei dos reis, e o Senhor dos senhores.

SOLUÇÃO. — A Deus convém a máxima beatitude. Pois, o que se entende pela denominação de beatitude é o bem perfeito da natureza intelectual, à qual compete conhecer a suficiência do bem que possui; da qual depende o bem ou o mal, que lhe possa suceder, e o ser senhora dos seus atos. Ora, uma e outra coisa convém excelentissimamente a Deus, isto é, ser perfeito e inteligente. Por onde a máxima beatitude lhe convém.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A reunião dos bens existe em Deus, não, a modo de composição, mas, por simplicidade. Porque, o múltiplo nas criaturas preexiste em Deus de modo simples e uno, como dissemos (q. 4, a. 2, ad 1; q. 13, a. 4).

RESPOSTA À SEGUNDA. — À beatitude ou à felicidade se acrescenta o prêmio quando a adquirimos, assim como o termo da geração se acrescenta ao ser, que passa da potência para o ato. Portanto, como Deus tem o ser, sem que seja gerado, assim, sem merecer, tem a beatitude.

ART. II. — SE DEUS É FELIZ PELO INTELECTO


(II Sent., dist. XVI, a. 2; I TIM., cap. VI lect III)

O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não é feliz pelo intelecto.

1. — Pois, a beatitude é o sumo bem. Ora, Deus é bom por essência, porque o bem é próprio ao ser que é por essência, segundo Boécio. Logo, também a beatitude existe em Deus, pela sua essência e não, pelo intelecto.

2. Demais. — A beatitude tem natureza de fim. Ora, o fim, como o bem, é objeto da vontade. Logo, Deus é feliz pela vontade e não, pelo intelecto.

Mas, em contrário, Gregório: Glorioso é ele que, gozando-se a si mesmo, não precisa do louvor acidenta. Ora, ser glorioso é ser feliz. E como gozamos de Deus pelo intelecto, porque a visão é a recompensa total, segundo Agostinho, a beatitude existe em Deus, pelo intelecto.

SOLUÇÃO. — A beatitude, como do sobredito se colhe (a. 1), significa o bem perfeito da natureza intelectual. Donde, do mesmo modo que cada ser deseja a sua perfeição, também a natureza intelectual deseja naturalmente ser feliz. Ora, a operação da inteligência pela qual uma natureza intelectual apreende, de certo modo, tudo, é o que há nessa natureza de mais perfeito. Logo, a beatitude de qualquer natureza intelectual criada consiste em inteligir. Mas, em Deus, a essência e o inteligir só diferem pela noção racional, e não, realmente. Portanto, devemos atribuir a Deus a beatitude pela inteligência, bem como aos bem-aventurados, assim chamados por assimilação com a beatitude divina.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O argumento prova que Deus é feliz por essência; não porém, que a felicidade lhe convenha em virtude da sua essência, mas antes, em virtude do intelecto.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A beatitude, sendo um ser, é objeto da vontade. Ora, o objeto nós o concebemos como anterior ao ato da potência. Por onde, quanto ao modo de inteligir, a beatitude divina é anterior ao ato da vontade que nela repousa. Ora, ela não pode ser senão um ato da inteligência. Logo, a beatitude consiste num ato do intelecto.

ART. III. — SE DEUS É A BEATITUDE DE TODOS OS QUE SÃO FELIZES


(Ia IIae, q. 3, a. 1; IV Sent., dist. XLIX, q. 1, a. 2, q. 1)

O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus é a beatitude de todos os que são felizes.

1. — Pois, Deus é o sumo bem, como se viu (q. 6, a. 2). Ora, como também resulta do sobredito (q. 11, a. 30), é impossível haver vários bens sumos. Logo, a beatitude, sendo por essência o sumo bem, não é outra senão Deus.

2. Demais. — A beatitude é o fim da natureza racional. Ora, ser tal fim só a Deus convém. Logo, só Deus é a beatitude dos que são felizes. Mas, em contrário, a felicidade de um é maior que a de outro, conforme a Escritura (1 Cor 15, 41): Há diferença de estrela a estrela, na claridade. Ora, nada é maior do que Deus. Logo, a felicidade é algo diverso de Deus.

SOLUÇÃO. — A beatitude da natureza intelectual consiste num ato do intelecto, no qual podemos considerar dois elementos: o objeto do ato, que é o inteligível; e o próprio ato, que é o inteligir. Considerada, pois, em relação ao seu objeto, a beatitude é só Deus; porque só é feliz quem intelige a Deus, como diz Agostinho: Feliz quem te conhece, mesmo sendo ignorante do mais. Mas, relativamente ao ato de quem intelige, a beatitude é algo de criado, nas criaturas felizes. Em Deus, porém, é algo de increado, mesmo nesta segunda relação.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Quanto ao seu objeto, a beatitude é o sumo bem absoluto. Mas, quanto ao ato é o sumo bem das criaturas felizes, não absoluto, mas no gênero dos bens participados por elas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Há duplo fim, segundo o Filósofo: um, que consiste na coisa possuída, outro, na posse desta coisa. Assim, para o avarento, o fim é o dinheiro e a aquisição dele. Ora, da criatura racional é o fim último Deus, como coisa; e a beatitude criada, como uso, ou antes, como fruição da coisa.

ART. IV. — SE A BEATITUDE DE DEUS INCLUI TODAS AS OUTRAS


(I Cont. Gent., cap. CII)

O quarto discute-se assim. — Parece que a divina beatitude não inclui todas as outras.

1. — Pois, há beatitudes falsas. Ora, em Deus nada pode ser falso. Logo, a divina beatitude não inclui todas as outras.

2. Demais. — Para alguns a beatitude consiste em coisas corpóreas, como os prazeres, as riquezas e coisas semelhantes, que não podem convir a um Deus incorpóreo. Logo, a beatitude de Deus não inclui todas as outras. Mas, em contrário, a beatitude é uma certa perfeição. Ora, a divina perfeição inclui todas as outras, como dissemos (q. 4, a. 2). Logo, a divina beatitude inclui todas as outras.

SOLUÇÃO. — Tudo o que em qualquer beatitude verdadeira ou falsa, é desejável, preexiste na divina, total e eminentemente. Pois, quanto à felicidade contemplativa, Deus tem contínua e certíssima contemplação de si e de todos os demais seres. Quanto à ativa, tem o governo de todo o universo. Quanto à felicidade terrena, consistente no prazer, nas riquezas, no poder, na dignidade, e na glória, segundo Boécio, tem o gáudio de si mesmo e de todos os demais seres, em lugar do prazer; em lugar das riquezas, a omnímoda abastança, que elas prometem; a onipotência, em lugar do poder; a regência de tudo, em lugar da dignidade e, em lugar da glória, a admiração de todas as criaturas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Falsa, e portanto, inexistente em Deus, é a beatitude que não tem natureza verdadeira. Mas, o que quer que se assemelhe, tenuemente que seja com a beatitude, preexiste totalmente na divina.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os bens existentes corporalmente, nos seres corpóreos, existem em Deus ao modo deste, isto é, espiritualmente. E no atinente à unidade da divina essência, baste o que dissemos até aqui.

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