quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Questão LVII - Do conhecimento angélico em relação às coisas materiais

QUESTÃO LVII — DO CONHECIMENTO ANGÉLICO EM RELAÇÃO ÀS COISAS MATERIAIS


Em seguida se trata das coisas materiais conhecidas dos anjos. E, sobre este assunto, cinco artigos se discutem:
  1. Se os anjos conhecem as naturezas das coisas materiais;
  2. Se conhecem os seres singulares;
  3. Se conhecem as coisas futuras;
  4. Se conhecem as cogitações dos corações;
  5. Se conhecem todos os mistérios da graça.

ART. I — SE OS ANJOS CONHECEM AS COISAS MATERIAIS


(II Cont. Gent., cap. XCIX; De Verit., q. 8, a. 8; q. 10, a. 4)

O primeiro discute-se assim. — Parece que os anjos não conhecem as coisas materiais.

1. — Pois, o objeto inteligido é a perfeição de quem intelige. Ora, as coisas materiais não podem ser a perfeição dos anjos, por lhes serem inferiores. Logo, os anjos não as conhecem.

2. Demais. — A visão intelectual apreende as coisas que estão na alma pela essência delas, como diz a Glosa. Ora, os seres materiais não podem estar na alma do homem ou na inteligência do anjo, pelas essências delas. Logo, não podem ser conhecidos pela visão intelectual, mas só pela imaginaria, que apreende as semelhanças dos corpos, e pela sensível, que apreende os próprios corpos. Como, porém, os anjos não têm visão imaginaria, nem a sensível, mas só a intelectual, não podem conhecer as coisas materiais.

3. Demais. — As coisas materiais não são inteligíveis em ato, mas são cognoscíveis pela apreensão do sentido e da imaginação, que não existem nos anjos. Logo, estes não as conhecem.

Mas, em contrário, o que pode a virtude inferior pode também a superior. Ora, se o intelecto humano, que é, na ordem da natureza, inferior ao angélico, pode conhecer as coisas materiais, como muito maior razão o pode este último.

SOLUÇÃO. — A ordem dos seres e tal, que os superiores são mais perfeitos que os inferiores e, o que estes contém de deficiente, parcial e multiplicente, aqueles contêm eminentemente e por uma certa totalidade e simplicidade. E, portanto, como no sumo vértice das coisas, todas preexistem sobresubstancialmente, em Deus, no seu ser simples, como diz Dionísio. Ora, dentre todas as outras criaturas, os anjos, sendo as mais próximas e semelhantes a Deus, mais e mais perfeitamente participam da bondade divina, como diz Dionísio. Portanto, nos anjos, todas as coisas materiais preexistem, mais simples e imaterialmente do que nelas próprias; porém, mais multíplice e imperfeitamente do que em Deus. Mas, como o ser está noutro ao está ao modo desse outro; e sendo os anjos, por naturezas inteligentes; por isso, como Deus, por essência, conhece as coisas materiais, eles as conhecem pelas possuírem nas espécies inteligíveis delas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O objeto inteligido é a perfeição de quem intelige pela espécie inteligível existente. E, assim, as espécies inteligíveis existentes no intelecto angélico são deste as perfeições e os atos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O sentido apreende as essências das coisas, mas somente os acidentes exteriores. Do mesmo modo a imaginação, que só apreende as semelhanças dos corpos. Só o intelecto apreende as essências das coisas; e por isso, diz Aristóteles, que o objetivo dele é a quididade da coisa, em relação à qual o intelecto não erra, assim como também não erra o sentido em relação ao sensível próprio. Assim, pois, as essências das coisas materiais estão na inteligência do homem ou do anjo, como o inteligido está em quem intelige e não pela existência real delas. Há, porém, certas coisas que estão na inteligência ou na alma, por ambos os modos de ser; e, de ambos, há visão intelectual.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Se o anjo recebesse das próprias coisas materiais o conhecimento que delas tem, necessariam, ente abstraindo-as, as tornaria inteligíveis em ato, ora, não é delas que ele tira o conhecimento; mas as conhece pela espécies inteligíveis, em ato, das coisas que que são conaturais, assim como a nossa inteligência conhece pelas espécies que torna inteligíveis por abstração.

ART. II — SE O ANJO CONHECE O SINGULAR


(Infra., q. 89, a. 4; II Sent., dist. III, part. II, q. 2, a. 3; II Cont. Gent., cap. C; De Verit., q. 8, a. 11; q. 10, a. 5; Qu. De Anima, a. 20; Quodl. VII, a. 1, a. 3; Opusc. XV, De Angelis, cap. XII, XV.)

O segundo discute-se assim. — Parece que o anjo não conhece o singular.

1. — Pois, diz o Filósofo que o sentido conhece o singular porém, a razão (ou o intelecto), o universal. Ora, os anjos têm unicamente o intelecto, como faculdade cognoscitiva, segundo já se viu (q. 54, a. 5). Logo, os anjos não cohecem o singular.

2. Demais. — Todo conhecimento se realiza por certa assimilação do conhecente com o conhecido. Ora, como o anjo é imaterial, conforme se viu (q. 50, a. 2), e a matéria é o princípio da singularidade, não pode haver nenhuma assimilação do anjo com o singular como tal, logo, aquele não pode conhecer este.

3. Demais. — Só por espécies singulares ou por espécies universais é que o anjo poderia conhecer o singular. Ora, não pelas primeiras, porque, então, ele deveria ter infinitas espécies. Nem pelas ultimas, pois, o universal não é princípio suficiente de conhecimento do singular como tal, porque todo universal se conhece o singular só em potência. Logo, o anjo não conhece o singular.

Mas, em contrario. Ninguém pode guardar o que não conhece. Ora, os anjos guardam os homens, conforme a Escritura (Sl 90, 11): Mandou aos seus anjos acerca de ti, que te guardem em todos os teus caminhos. Logo, o anjo não conhece o singular.

SOLUÇÃO. — Alguns negaram totalmente aos anjos o conhecimento do singular. — Mas isto, em primeiro lugar, derroga a fé católica dizendo que as coisas inferiores deste mundo são administradas pelos anjos, como diz a Escritura (Heb 1, 14): Todos os espíritos são administradores. Ora, se não conhecessem o singular nenhuma providência poderiam tomar em respeito do que se faz neste mundo, porque os atos têm por objeto o singular. O que vai contra a Escritura (Ecle 5, 5): Não digas diante do anjo: Não há Providência. E, segundo lugar, derroga o ensinamento da filosofia dizendo que os anjos são os motores dos orbes celestes, pela inteligência e pela vontade.

E, por isso, outros ensinaram que o anjo tem, certamente, conhecimento do singular, mas por causas universais, às quais se reduzem todos os efeitos particulares; como se um astrólogo julgasse certo eclipse futuro pelas disposições dos movimentos celestes. — Mas esta opinião não escapa às dificuldades apontadas, porque conhecer de tal modo o singular não é conhece-lo como tal, isto é, como existente num lugar e momento dados. Assim, o astrólogo, conhecendo o eclipse futuro pelo cômputo dos movimentos celestes, conhece-o universalmente e não como realizado num lugar e momento dados, salvo se o conhecer pelos sentidos. Ora, a administração, a providência e o movimento visam o singular, enquanto relativos de um determinado lugar e tempo.

Portanto deve-se responder diferentemente, que, assim como o homem conhece, por diversas potências cognoscitivas, os gêneros de todas as coisas — pelo intelecto o universal e o imaterial; pelo sentido, o singular e o corpóreo; assim o anjo, por uma só potência intelectiva tem ambos esses conhecimentos. Pois a ordem das coisa postula que, quanto mais for um ser superior, tanto mais íntima tenha a sua potência, que mais coisas abranja. Assim, como no homem mesmo se vê, o sentido comum, superior ao próprio, embora seja uma potência única, conhece tudo o que conhecem os cinco sentidos exteriores, e certas outras coisas, como a diferença entre o branco e o doce, que nenhum dos sentidos exteriores conhece; e o mesmo se dá em outros casos. Donde, sendo o anjo pela ordem natural superior ao homem, inconveniente é dizer-se que o homem, por qualquer das suas potências, conheça alguma coisa, que o anjo, pela sua única potência cognoscitiva, o intelecto, não conheça. Por isso, Aristóteles não admite que uma disputa conhecida de nós Deus a ignore.

Quanto ao modo, porém, pelo qual o intelecto angélico conhece o singular, podemos explica-lo assim. De Deus efluem as criaturas para subsistirem em as suas naturezas próprias, de modo a também serem objeto do conhecimento angélico. Ora, é manifesto que, de Deus, eflui para as coisas não só o pertencente à natureza universal, mas também o que constitui o princípio de individuação; pois, Deus é a causa da substância total da coisa, material e formalmente. E, como causa, do mesmo modo conhece, porque a ciência divina é causa das coisas, como já se demonstrou (q. 14, a. 8). Portanto, assim como Deus, pela sua essência. Pela qual causa todas as coisas não só é de todas a semelhança; mas também conhece a todas, tanto pelas naturezas universais como pela singularidade delas; assim também os anjos, pelas espécies neles infundidas por Deus, conhecem a coisas, não só quanto à natureza universal, mas também quanto à singularidade delas, por serem elas certas representações multiplicadas da única e simples essência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Filósofo se refere à nossa inteligência, que só por abstração intelige as coisas; e, por essa mesma abstração das condições materiais, o abstraído torna-se universal. Ora, tal modo de inteligir não convém aos anjos, como já se disse (q. 55, a. 2); e, logo, a razão não é a mesma.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os anjos, por natureza, não se assimilam às coisas materiais, como uma coisa assimila a outra por conveniência genérica, especifica ou acidental; mas como o superior se assimila ao inferior; assim, o sol com o fogo. E, por este mesmo modo, Em Deus há a semelhança formal e material de todas as coisas, por preexistir, nele, como na causa, tudo o que se encontra nas coisas. Assim, pela mesma razão, as espécies da inteligência angélica, que são certas semelhanças das coisas, não só formal, mas também materialmente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os anjos conhecem o singular por formas universais, que, todavia, são semelhanças das coisas, tanto quanto aos princípios universais como aos princípios de individuação. E, como podem conhecer muitas coisas, pela mesma espécie, já antes ficou dito. (q. 55, a. 3, ad 3)

ART. III — SE OS ANJOS CONHECEM O FUTURO


(Infra, q. 86, a. 4; IIa Iiae, q. 95, a. 1; I Sent., dist. XXXVIII, a. 5; II, dist. III, q. 2, a. 3, ad 4; dist. VII, q. 2, a. 2; III Cont. Gent., cap. CLIV; De Verit., q. 8, art. 12; De Malo, q. 16, a. 7; De Spirit Creat., a. 5, ad 7; Qu. De Anima, a. 20, ad 4; Quodl. VII, q. 3, a. 1, ad 1; Compend. Theol., cap. CXXXIV; In Isaiam, cap. III)

O terceiro discute-se assim. — Parece que os anjos conhecem o futuro.

1. — Pois, os anjos são superiores aos homens, pelo conhecimento. Ora, alguns homens conhecem o futuro. Logo, com maior razão, os anjos.

2. Demais. — O presente e o futuro são diferenças de tempo. Ora, o intelecto do anjo está acima do tempo; pois, a inteligência se equipara à eternidade, i. é., ao evo, como diz o livro Das causas. Logo, para o intelecto angélico não difere o pretérito do futuro, os quais ele conhece indiferentemente.

3. Demais. — O anjo não conhece por espécies oriundas das coisas, mas por espécies inatas universais. Ora, estas se referem igualmente ao pretérito, ao presente e ao futuro. Logo, resulta que os anjos indiferentemente os conhecem.

4. Demais. — Diz-se que alguma coisa está distante tanto temporal como localmente. Ora, os anjos conhecem as coisas localmente distantes. Logo, também as distantes no futuro.

Mas, em contrário. O que é próprio só à divindade não convém aos anjos. Ora, é-lhe sinal próprio conhecer o futuro, conforme a Escritura (Is 41, 23): Anunciar as coisas que hão de vir para o futuro, é ficaremos sabendo que vós sois deuses. Logo, os anjos não conhecem o futuro.

SOLUÇÃO. — De dois modos se pode conhecer o futuro. Na sua causa; e, então o futuro, necessariamente oriundo das suas causas, pode ser conhecido pela ciência certa, como, p. ex., que o sol nascerá amanha. Porém, as coisas oriundas na maioria dos casos das suas causas, são conhecidas, não certa mas conjecturalmente; assim, o médico conhece de antemão a saúde do enfermo. Este modo de conhecer o futuro o têm os anjos, e, tanto mais que nós, quanto mais universal e perfeitamente conhecem a causas das coisas; assim como os médicos, que mais agudamente vêm as causas, melhor prognosticam do futuro estado da doença. As coisas, porém, provenientes das suas causas, mas na minoria dos casos, são de todo desconhecidas, como o que é casual e fortuito. Por outro lado, o futuro é conhecido em si mesmo. E, assim, só Deus conhece as coisas futuras, não só as provenientes das suas causas necessariamente, ou na maioria dos casos, como também as casuais e fortuitas, pois Deus vê tudo na sua eternidade.

Pois esta, sendo simples, está presente a todo o tempo e o encerra em si. Por isso, Deus, de um intuito, percorre todas as coisas feitas na totalidade do tempo, como se foram presentes e as vê todas como em si mesmas são, conforme já antes se disse (q. 14, a. 13), quando se tratou da ciência de Deus. Ao passo que o intelecto angélico, como qualquer outro intelecto criado, é deficiente, em comparação com a eternidade divina. Por onde, o futuro, na sua substância, não pode ser conhecido por nenhum intelecto criado.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os homens não conhecem o futuro, senão pelas suas causas, ou pela revelação de Deus. E, deste modo, os anjos conhecem muito mais sutilmente as coisas futuras.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora o intelecto angélico esteja fora do tempo que mede os movimentos corpóreos, há todavia, nesse intelecto, o tempo segundo a sucessão das concepções inteligíveis, pois conforme diz Agostinho, Deus move a criatura espiritual no tempo. E assim, havendo sucessão no intelecto angélico, não lhe são presentes todas as coisas feitas na totalidade do tempo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora, em si mesmas, a espécies existentes no intelecto angélico igualmente se refiram ao presente, ao pretérito e ao futuro, todavia, estes tempos não se referem igualmente às espécies. Pois, as coisa presentes são de natureza a se assimilarem às espécies existentes na mente do anjo e, assim, por estas, podem ser conhecidas. Mas, as coisas futuras ainda não têm tal natureza e, por isso, não podem ser conhecidas por meio de tais espécies.

RESPOSTA À QUARTA. — As distâncias locais já estão em a natureza das coisas e participam de alguma espécie cuja semelhança existe no anjo; por que não é verdade das coisas futuras, como já e disse. Logo, o símile não é o mesmo.

ART. IV — SE OS ANJOS CONHECEM AS COGITAÇÕES DOS CORAÇÕES


(De Verit., q. 8, a. 13; De Malo, a. 16, a. 8; Opusc. X, a. 38; Opusc. XII, a. 36; I Cor., cap. II, lect. II)

O quarto discute-se assim. — Parece que os anjos conhecem as cogitações dos corações.

1. — Pois, Gregório diz, a propósito da passagem da Escritura (Jó 28) — Não se lhe igualará o ouro, ou o cristal – que, então, i. é., na beatitude dos ressurgidos, um será conhecido de outro como a si mesmo; e, como se trata do intelecto de cada um, a consciência é simultaneamente penetrada. Ora, os ressurgidos serão semelhantes aos anjos, como diz a Escritura (Mt 22, 30). Logo, um anjo pode ver o que está na consciência do outro.

2. Demais. — As figuras estão para os corpos como as espécies inteligíveis para o intelecto. Ora, o corpo, vista lhe fica a figura. Logo, vista a substância intelectual, vista foca a espécie inteligível que nela está. Portanto, como um anjo vê outro, e mesmo a alma, resulta que pode lhes conhecer o pensamento.

3. Demais. — As coisas que estão em o nosso intelecto são mais semelhantes ao anjo, que as existentes na fantasia; pois aquelas são inteligidas em ato, estas, porém, só em potência., ora, as existentes na fantasia podem ser conhecidas pelo anjo, como seres corporais, pois, a fantasia é uma virtude do corpo. Logo, resulta que o anjo pode conhecer as cogitações do intelecto. Mas, em contrário, o que é próprio de Deus não convém aos anjos. Ora, é próprio de Deus conhecer as cogitações dos corações, segundo a Escritura (Jr 17): Depravado é o coração do homem, e impenetrável: quem o conhecerá? Eu sou o Senhor que esquadrinha os corações. Logo, os anjos não conhecem os segredos dos corações.

SOLUÇÃO. — A cogitação do coração pode ser conhecida de duplo modo. — De um modo, pelo seu efeito. E assim pode ser conhecida, não só pelo anjo, mas também pelo homem; e tanto mais sutilmente quanto tal efeito for mais oculto. Pois, às vezes, uma cogitação é conhecida, não só pelo ato exterior, mas também pela imutação do vulto; assim como também os médicos podem conhecer certos afetos da alma, pelo pulso. E tanto mais os anjos, ou os demônios, quanto mais sutilmente compreendem tais imutações corporais ocultas. Por isso Agostinho diz que, por vezes, compreendem muito facilmente as disposições humanas, não só as exteriorizadas pela voz, mas ainda as concebidas no pensamento, por serem sinais expressos no corpo pela alma; embora também diga não se possa afirmar como isso se realiza. De outro modo, as cogitações podem ser conhecidas, enquanto existentes no intelecto, e os afetos, enquanto na vontade. E, assim, só Deus pode conhecer as cogitações dos corações e os afetos das vontades.

Sendo a razão disto que a vontade da criatura racional só de Deus depende e só ele pode agir sobre ela, da qual é o objeto principal e o último fim; o que a seguir se demonstrará (q. 105, a. 4; Ia IIae, q. 9, a. 6). Portanto, as coisas existentes na vontade ou que só dela dependem apenas de Deus são conhecidas. Ora, é manifesto que só da vontade depende que alguém considere alguma coisa atualmente; pois, quem tem o hábito da ciência, ou espécies inteligíveis em si existentes, deles usa quando quiser. E por isso, diz a Escritura (1 Cor 2, 11): Ninguém conhece as coisas que são do homem, senão o espírito do homem, que nele mesmo reside.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA PERGUNTA. — Atualmente o pensamento de um homem não é conhecido de outro, por duplo impedimento: pela crassidão do corpo, ou pela vontade que esconde os seus segredos. Ora, o primeiro obstáculo desaparecerá na ressurreição e não existe nos anjos. Mas o segundo permanecerá depois dela e existe atualmente nos anjos. E contudo, a claridade do corpo representará a qualidade da inteligência, quanto à quantidade da graça e da glória. Assim que um poderá ver a inteligência do outro.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora um anjo veja as espécies inteligíveis de outro, por ser proporcionado à nobreza das substâncias o modo das espécies inteligíveis, na sua maior e menor universalidade; todavia não se segue que um conheça, como outro, pensando atualmente, uma dessas espécies inteligíveis.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O apetite dos brutos não é senhor do seu ato, mas segue a impressão de outra causa, corporal ou espiritual. Como, pois, os anjos conhecem as coisas corpóreas e as disposições delas, pode, por aí, conhecer o que está no apetite e na apreensão fantástica dos brutos e também dos homens, enquanto, nestes, o apetite sensitivo se atualiza por alguma impressão corpórea, como sempre acontece com os brutos. Contudo não resulta daí necessariamente, que os anjos conheçam o movimento do apetite sensitivo e a apreensão da fantasia no homem, enquanto movidos pela vontade e pela razão; pois, a parte inferior da alma participa, de certo modo, da razão, como obediente à que impera, segundo diz Aristóteles. E, por isso, não se segue que o anjo, conhecendo o que está no apetite sensitivo ou na fantasia do homem, conheça o que está na cogitação ou na vontade; porque o intelecto e a vontade não dependem do apetite sensitivo e da fantasia, antes, pode usar destes de diversos modos.

ART. V — SE OS ANJOS CONHECEM OS MISTERIOS DA GRAÇA


(IV Sent., dist, X, a. 4, qa. 4; Ephes., cap. III, lect. III)

O quinto discute-se assim. — Parece que os anjos conhecem os mistérios da graça.

1. — Pois, dentre todos os mistérios, o mais excelente é o da Incarnação de Cristo. Ora, os anjos o conhecem desde o princípio; pois Agostinho diz, que este mistério estava escondido em Deus, desde os séculos, de modo que fosse conhecido dos principados e potestades celestes. E a Escritura diz (1 Tm 3, 16), que foi visto pelos anjos aquele grande sacramento de piedade. Logo, os anjos conhecem os mistérios da graça.

2. Demais. — As razões de todos os mistérios da graça estão contidas na divina sabedoria. Ora, os anjos vêm a sabedoria mesma de Deus, que lhe é a essência. Logo, os anjos conhecem os mistérios da graça.

3. Demais. — Os profetas são instruídos pelos anjos, como se vê em Dionísio. Ora, os profetas conheceram os mistérios da graça, conforme diz a Escritura (Am 3, 7): Porque o Senhor Deus não faz nada sem ter revelado antes o seu segredo aos profetas, seus servos. Logo, os anjos conhecem os mistérios da graça. Mas, em contrário, ninguém aprende o que conhece. Ora, os anjos, mesmo os mais elevados, interrogam sobre os mistérios divinos da graça e aprendem; pois, como se disse, a Sagrada Escritura introduz certas essências celestes fazendo perguntas ao próprio Jesus e aprendendo a ciência da sua divina operação por nós, e Jesus ensinando-as sem intermediário. E isto mesmo se vê na Escritura (Is 63, 1), onde aos anjos que perguntam: Quem é este que vem de Edom? Jesus responde: Eu, que falo a justiça.

SOLUÇÂO. — Os anjos têm duplo modo de conhecer. – Um, natural, pelo qual conhecem as coisas, quer pela essência deles, quer por espécies inatas. E, por este modo, não podem conhecer os mistérios da graça, que dependem da pura vontade de Deus. Pois, se um anjo não pode conhecer os pensamentos de outro, dependentes da vontade deste, muito menos poderá conhecer o que só da vontade de Deus depende: e assim argumenta a Escritura (1 Cor 2, 11): Ninguém conhece as coisas que são do homem, senão o espírito do homem, que nele mesmo reside; assim também as coisas que são de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus.

Há, porém, outro modo de conhecimento angélico, que os torna felizes, pelo qual vêm o Verbo e neste as coisas. E, por este modo, conhecem os mistérios da graça, não todos, por certo, nem todos os anjos igualmente, mas na medida em que Deus quiser lhes revelar, segundo a Escritura (1 Cor 2, 10): A nós, porém, Deus revelou-o por meio de seu Espírito. E isto de maneira que os anjos superiores, contemplando mais profundamente a divina sabedoria, conhecem, na visão de Deus, mais e mais altos mistérios e os manifestam aos inferiores, iluminando-os. E, desses mistérios, alguns deles os conheceram desde o princípio da sua criação; outros, porém, mais tarde lhes foram revelados, segundo lhes convinham aos deveres.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — De duplo modo podemos nos referir ao mistério da Incarnação de Cristo. Em geral, e assim a todos os anjos foi revelado desde o princípio da beatitude deles. E a razão é que todos os ofícios deles dependem deste princípio geral, como diz a Escritura (Heb 1,14): Em verdade todos os espíritos são uns administradores, enviados para exercer o seu ministério a favor daqueles que hão de receber a herança da salvação; o que se realiza pelo mistério da Incarnação. Por isso é necessário que esse mistério tenha sido revelado a todos comumente, desde o princípio. De outro modo, podemos considerar o mistério da Incarnação quanto à condições especiais. E, assim, nem a todos os anjos foram todas reveladas, desde o princípio; antes, certas só mais tarde foram conhecidas dos anjos, mesmos superiores, como se vê pela citada autoridade de Dionísio.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora os anjos bem-aventurados contemplem a divina sabedoria, todavia, não a compreendendo, não conhecem necessariamente tudo o que ela encerra.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Tudo o que os profetas conheceram sobre o mistério da graça, pela divina revelação, mais excelentemente foi revelado aos anjos. E embora Deus tivesse revelado, em geral, aos profetas, o que haveria de fazer para a salvação do gênero humano, contudo, nesta matéria, os Apóstolos conheceram os profetas, conforme está na Escritura (Ef 3, 4): Por onde podeis, lendo-as, conhecer a inteligência que tenho do mistério de Cristo, o qual em outras gerações não foi conhecido dos filhos dos homens, assim como agora tem sido revelado aos seus santos Apóstolos. Mas ainda, dentre os próprios profetas, os posteriores conheceram o que não conheceram os anteriores, segundo a Escritura (Sl 118, 100): Mais que os anciãos entendi; e Gregório diz que na sucessão dos tempos acentuou-se o aumento do conhecimento divino.

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