quarta-feira, 14 de abril de 2010

Questão XXVII - Da Processão ou da origem das pessoas divinas

QUESTÃO XXVII — DA PROCESSÃO OU DA ORÍGEM DAS PESSOAS DIVINAS


Depois de termos tratado do que concerne à unidade da essência divina, resta tratar do que pertence à Trindade das Pessoas, em Deus. E distinguindo-se as Pessoas divinas pelas relações de origem, devemos, conforme a ordem da doutrina, tratar primeiro da origem ou da processão; segundo, das relações de origem; terceiro, das Pessoas. Sobre a processão discutem-se cinco artigos:
  1. Se há processão em Deus;
  2. Se há alguma processão em Deus, que possa ser chamada geração;
  3. Se além da geração pode haver em Deus alguma outra processão;
  4. Se essa outra processão pode chamar-se geração;
  5. Se há em Deus mais de duas processões.

ART. I. — SE EM DEUS HÁ ALGUMA PROCESSÃO


(I Sent., dist. XIII, a. 1; IV Cont. Gent., cap. XI; De Pot., q. 10, a. 1)

O primeiro discute-se assim. — Parece que em Deus não há nenhuma processão.

1. — Pois, processão significa movimento para o exterior. Ora, em Deus nada há de móvel nem exterior. Logo, nem processão.

2. Demais. — Todo procedente é diverso daquilo de que procede. Ora, em Deus, sumamente simples, não há nenhuma diversidade. Logo, em Deus não há processão.

3. Demais. — Proceder de outro parece repugnar à noção de primeiro princípio. Ora, Deus é o primeiro princípio, como já se demonstrou (q. 2 a. 3). Logo, em Deus não pode haver processão. Mas, em contrário, diz o Senhor (Jo 8, 42): Eu saí de Deus.

SOLUÇÃO. — A Escritura usa, falando das coisas divinas, de expressões que implicam processão. Ora, dessa processão há vários conceitos. Uns a compreendem no sentido em que o efeito procede da causa; e assim Ário, dizendo que o Filho procede do Pai como a primeira criatura deste, e o Espírito Santo, do Pai e do Filho, como criatura de ambos. E segundo esta opinião, nem o Filho nem o Espírito Santo seriam verdadeiro Deus, o que vai contra a Escritura quando diz, do Filho (1 Jo, 5, 20): E estejamos em seu verdadeiro Filho. Este é o verdadeiro Deus; e do Espírito Santo (1 Cor 6, 19): Acaso não sabeis que os vossos membros são templos do Espírito Santo? Ora, só Deus pode ter templo. — Outros, porém, concebem a processão no sentido em que se diz que a causa se manifesta no efeito, movendo-o ou imprimindo-lhe a sua semelhança. Assim o entendeu Sabélio, ensinando que o mesmo Deus Padre se chama Filho, enquanto encarnado na Virgem, e Espírito Santo enquanto santifica e dá vida à criatura racional.

Mas contra esta doutrina vão as palavras do Senhor, a respeito de si mesmo (Jo 5, 19): O Filho não pode de si mesmo fazer coisa alguma; e muitas outras, mostram não ser o Pai o mesmo que o Filho.

Mas, consideradas diligentemente, ambas essas opiniões concebem a processão como tendendo para o exterior; e por isso não a atribuem a Deus. Mas como toda processão supõe uma certa ação, assim como pela ação que recai sobre a matéria exterior, a processão é exterior, assim pela que permanece no próprio agente, é interior. O que sobretudo se vê no intelecto, cuja ação, o inteligir, permanece no ser que intelige; pois, quem intelige, por isso mesmo causa algo dentro de si, que é o conceito da coisa inteligida, nascida da potência intelectiva e procedente do conhecimento da coisa. E esse conceito, expresso pela palavra, chama-se verbo mental, significado pelo verbo oral. Mas, como Deus está acima de tudo, o que dele se diz não se deve entender ao modo das criaturas ínfimas, que são os corpos, mas por semelhança com as criaturas supremas, que são as substâncias intelectuais, se bem tal semelhança seja deficiente para representar o divino.

Por onde, não se deve conceber a processão como a dos seres corpóreos, quer pelo movimento local, quer pela ação de alguma causa produtora de um efeito exterior, como o calor procedente do agente, que aquece, para o corpo aquecido; mas segundo a emanação inteligível, isto é, do verbo inteligível emanando de quem o pronuncia e neste permanecendo. E é assim que a fé católica atribui a processão a Deus.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Ela se funda na processão por movimento local, ou na que se realiza pela ação transitiva para a matéria exterior ou o efeito exterior. Ora, tal processão não existe em Deus, como dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O que procede por processão exterior deve ser diverso daquilo donde procede; mas o que procede interiormente pelo processo inteligível, não é necessariamente diverso; antes, quanto mais perfeitamente proceder, tanto mais se unifica com o ser donde procede. Pois, é manifesto, que quanto mais uma coisa é inteligida, tanto mais íntima e mais unida com o ser inteligente é a concepção intelectual; porque o intelecto, ao inteligir em ato, unifica-se com a coisa inteligida. Donde, como o inteligir divino é o auge da perfeição, como vimos, necessário se faz que o Verbo divino seja perfeitamente uno com o ser donde procede, sem a mínima diversidade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Proceder de um principio, como de estranho e diverso, repugna à essência do primeiro princípio; mas proceder como íntimo e sem diversidade, de maneira inteligível, é da essência do primeiro princípio. Assim, pois, quando dizemos ser o construtor o princípio da casa, esse princípio inclui, por essência, a concepção da sua arte, que também se incluiria na essência do primeiro princípio se tal princípio fosse o construtor. Ora, Deus, primeiro princípio das coisas, está para as coisas criadas como o artífice, para as artificiadas.

ART. II. — SE A PROCESSÃO, EM DEUS, PODE CHAMAR-SE GERAÇÃO


(IV Cont. Gent., cap. X, XI; De Pot., q. 2, a. 1; Opusc. II, Contra Graecos, Armemos, etc., cap. III; Compend. Theologiae, cap. XL, XLIII; ad Coloss., cap. 1, lect IV)

O segundo discute-se assim. — Parece que a processão, em Deus, não pode chamar-se geração.

1. — Pois, a geração é a passagem do não ser para o ser e se opõe à corrupção, sendo a matéria o sujeito de uma e outra. Ora, nada disto convém a Deus. Logo, não pode haver nele geração.

2. Demais. — Como se disse (a. 1), em Deus há processão ao modo inteligível. Ora, em nós, tal processão não se chama geração. Logo, nem em Deus.

3. Demais. — Todo gerado, recebendo o ser do gerador, o ser de qualquer gerado é recebido. Mas nenhum ser recebido é por si subsistente. Ora, como o ser divino é por si subsistente, segundo antes se provou (q. 3, a. 4), segue-se que o ser de nenhum gerado é divino. Logo, em Deus não há geração. Mas, em contrário, a Escritura (Sl 2, 7): Eu te gerei hoje.

SOLUÇÃO. — A processão do Verbo, em Deus, chama-se geração. O que se evidencia considerando-se que em duplo sentido usamos do vocábulo geração. Num sentido, é comum a todos os seres susceptíveis de geração e de corrupção; e assim, a geração nada mais é que a mudança do não-ser para o ser. Noutro sentido, refere-se propriamente aos seres vivos; e assim, a geração significa a origem de um ser vivo do princípio vivente conjunto, ao que propriamente se chama natividade. Todavia, nem tudo que de tal maneira existe se diz gerado, senão propriamente o que procede por semelhança de natureza. Assim, o pêlo ou o cabelo não têm a natureza de ser gerado ou de filho, mas somente aquilo que procede por semelhança de natureza. Não, porém, qualquer semelhança. Assim, os vermes, gerados dos animais, não têm natureza de geração nem de filiação, embora tenham semelhança genérica.

O que é necessário, pois, para haver em essência tal geração, é que ela proceda por semelhança, em a natureza da mesma espécie, como o homem procede do homem e o cavalo, do cavalo. Ora, nos seres vivos, que passam da potência para o ato, como o homem e os animais, incluem-se ambos os modos de geração. Se, porém houver algum ser vivo cuja vida não seja uma passagem da potência para o ato, a processão, se porventura existir em tal ser, exclui absolutamente a primeira espécie de geração, mas pode ter a própria dos seres vivos. — Por onde, a processão do Verbo, em Deus, é por natureza uma geração, pois procede a modo de atividade inteligível, que é uma operação vital, e de um princípio conjunto, como dissemos (a.1); e pela razão de semelhança, pois a concepção do intelecto é semelhança da coisa inteligída, e é existente na mesma natureza, sendo em Deus idênticos o inteligir e o existir, como demonstramos (q. 14, a. 4). Portanto, a processão do Verbo, em Deus, se chama geração e o próprio Verbo procedente se chama Filho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Ela colhe, quanto à geração no primeiro sentido, enquanto implica a passagem da potência para o ato. E, nesse sentido, não existe em Deus, como o dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O inteligir em nós não é a substância mesma do intelecto. Por onde, o nosso verbo, procedente da atividade intelectual, não é da mesma natureza que o ser donde procede; e por isso não tem a natureza própria e completa da geração. Ao contrário, o inteligir divino é a substância mesma do ser divino que intelíge, como vimos (q. 14, a. 4). Por onde, o Verbo procede como subsistente na mesma natureza, e por isso propriamente se chama gerado e Filho. Daí o empregar a Escritura expressões próprias a significar a geração dos seres vivos, como a concepção e o parto, para exprimir a processão da divina Sapiência. Assim, da pessoa da divina Sapiência diz (Pr 8, 24): Ainda não havia os abismos e eu estava já concebida. Antes de haver outeiros era eu dada à luz. Porém, usamos do nome concepção, em relação ao nosso intelecto, por existir no verbo deste semelhança com a causa inteligida, embora não haja identidade de natureza.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Nem tudo o que é recebido o é num sujeito; do contrário não se poderia dizer que toda a sua substância a criatura a tenha recebido de Deus; pois, não há nenhum sujeito capaz de receber toda a sua substância. Por onde, o que é gerado, em Deus, recebe o ser do gerador; não que tal ser seja recebido em alguma matéria, o que repugna à subsistência do ser divino; mas se diz recebido enquanto, procedendo de outro, tem o ser divino, e não como tendo existência diversa da do ser divino. Pois a própria perfeição do ser divino contém o Verbo, por processão inteligível; e o principio do Verbo, bem como tudo o que lhe pertence à perfeição, como dissemos (q. 4, a. 2).

ART. III. — SE HÁ EM DEUS OUTRA PROCESSÃO ALÉM DA GERAÇÃO DO VERBO


(I Sent., dist. XIII, a. 2; IV Cont. Gent., cap. XIX; De Pot., q. 10, a. 1, 2; Opusc. II, Contra Graecos, Armenos. etc., cap. III)

O terceiro discute-se assim. — Parece não haver em Deus outra processão além da geração do Verbo.

1. — Pois, pela mesma razão haveria, dessa processão, outra, e assim ao infinito, o que repugna. Logo, é mister limitarmo-nos à primeira, de modo que haja em Deus só uma processão.

2. Demais. — Cada natureza tem apenas um modo de comunicação; e isto porque as operações tendentes a um termo têm unidade e diversidade. Ora, a processão, em Deus, implica a comunicação da natureza divina; e sendo esta somente uma, como se viu (q. 11, a. 3), conclui-se que só uma processão há em Deus.

3. Demais. — Se há em Deus outra processão além da processão inteligível do Verbo, não poderá ser senão a do Amor, que implica ato da vontade. Ora, tal processão não pode ser diferente da do intelecto inteligível, porque em Deus a vontade não difere do intelecto, como se viu (q. 19, a. 1). Logo, em Deus não há outra processão além da do Verbo. Mas, em contrário, o Espírito Santo procede do Pai. Pois é diferente do Filho, segundo a Escritura (Jo 15, 26): Eu rogarei ao Pai e Ele vos dará outro consolador. Logo, em Deus há outra processão, além da do Verbo.

SOLUÇÃO. — Em Deus há duas processões, a do Verbo e uma outra. O que se evidencia considerando que em Deus a processão implica um ato que não tende a nenhum termo extrínseco, mas permanece no próprio agente. Ora, tal ato, nos seres de natureza intelectual, pertence ao intelecto e à vontade. Ora, a processão do Verbo implica um ato inteligível. Segundo, porém, o ato da vontade, há em nós outra processão — a do amor, pela qual o amado está no amante, assim como, pela concepção do verbo, a coisa dita ou inteligida está no inteligente. Donde, além da processão do Verbo, há em Deus outra processão, que é a do Amor.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não é necessário ir até ao infinito, nas processões divinas; pois, a processão interior, em a natureza intelectual, termina na processão da vontade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Tudo o que há em Deus é Deus, como vimos (q. 3, a. 3, 4); o que não se dá com os outros seres. Por onde, a natureza divina se comunica por qualquer processão sem termo exterior; não assim as demais naturezas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora em Deus não haja diferença entre a vontade e o intelecto, contudo é da essência da vontade e do intelecto que as processões dependentes da ação de uma e de outro se realizem numa certa ordem. Não há, portanto, processão do amor senão relativamente à processão do verbo; pois, nada pode ser amado pela vontade sem ser concebido pelo intelecto. Assim, pois, como há uma certa ordem entre o Verbo e o principio donde procede, embora em Deus sejam idênticas a substância e a concepção do intelecto, assim também, embora em Deus se identifiquem a vontade e o intelecto, a processão do amor divino distingue-se, por ordem, da processão do Verbo divino; porque da essência do Amor é proceder da concepção do intelecto.

ART. IV. — SE A PROCESSÃO DO AMOR, EM DEUS, É GERAÇÃO


(Infra, q. 30, a. 2, ad 2; I Sent., dist. XIII, a 3, ad 3, 4; III. dist. VIII. a. 1, ad 8; IV Contra Cent., cap. XIX; De Pot., q. 2. a. 4, ad 7; q. 10, a. 2, ad 22; Compend. Theol., cap. XLVI)

O quarto discute-se assim. — Parece que a processão do Amor, em Deus, é geração.

1. — Pois, o que procede por semelhança de natureza, nos seres vivos, se diz gerado e nascido. Ora, o que em Deus procede ao modo do amor procede por semelhança de natureza, do contrário seria estranho à natureza divina e haveria então processão para o exterior. Logo, o que em Deus procede ao modo do amor procede como gerado e nascido.

2. Demais. — Como a semelhança é da essência do verbo, assim também é da essência do amor; e por isso diz a Escritura (Ecl 13, 19): Todo animal ama o seu semelhante. Se, portanto, em razão da semelhança, convém ao Verbo procedente ser gerado e nascido, resulta que também ao Amor procedente convém o ser gerado.

3. Demais. — Não está num gênero o que não está em nenhuma das suas espécies. Se pois, há em Deus alguma processão do Amor, é necessário que, além desse nome comum, tenha ela um nome especial. Ora, não se lhe pode dar outro nome sem ser o de geração. Logo, resulta que a processão do Amor em Deus é geração.

Mas, em contrário, é que, se assim fosse, seguir-se-ia que o Espírito Santo, procedente como Amor, procederia como gerado; o que vai contra o dito de Atanásio: O Espírito Santo vem do pai e do Filho, não feito, nem criado, nem gerado, mas procedente.

SOLUÇÃO. — A processão do Amor em Deus se não deve chamar geração. Para evidenciá-lo, devemos saber que a diferença entre o intelecto e a vontade está em que o intelecto se atualiza quando nele está à causa inteligida, segundo a semelhança dela; ao passo que a vontade se atualiza, não porque nela exista alguma semelhança do que é querido, mas por inclinar-se para a causa querida. Portanto, a processão, segundo a natureza do intelecto, funda-se na noção de semelhança e como tal, pode ter natureza de geração, pois todo gerador gera o seu semelhante. Porém a processão, segundo a natureza da vontade, não se funda na noção de semelhança, mas antes, na noção de um agente que impele e move para algum termo. Logo, o que em Deus procede ao modo do amor não procede como gerado ou como filho, mas antes como espírito, nome que designa uma certa moção vital e um impulso, no sentido em que se diz que alguém é movido ou impelido pelo amor a fazer alguma causa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Tudo o que existe em Deus se identifica com a divina natureza, não se podendo portanto, em razão dessa identificação, conceber a noção própria de tal ou tal processão, segundo a qual uma se diferencia de outra. Mas, é necessário que a noção distinta de tal e tal processão seja considerada segundo a ordem de uma em relação à outra. Ora, semelhante ordem é considerada segundo a noção de vontade e de intelecto. Donde, segundo tal noção própria, a cada processão, em Deus, lhe cabe o nome adequado, imposto para significar a noção própria do objeto. E daí resulta que o procedente ao modo do amor recebe a natureza divina e contudo não se chama nascido.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Uma é a semelhança do verbo e outra a do amor. Tem-na o verbo enquanto é certa semelhança da causa inteligida, como o gerado é semelhança do gerador. Tem-na o amor, não por ser em si mesmo semelhança, mas por esta ser princípio do amor. Donde se não segue que o amor seja gerado, mas que o gerado é princípio do amor.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Só pelas criaturas podemos nomear a Deus, como dissemos (q. 13, a. 1). E porque nas criaturas a comunicação da natureza só se dá pela geração, a processão em Deus não tem outro nome próprio ou especial senão o de geração. Dai o ficar sem nome especial a processão que não é geração, podendo contudo chamar-se espiração por ser processão do Espírito.

ART. V. — SE EM DEUS HÁ MAIS DE DUAS PROCESSÕES


(IV Cont Gent., cap. XXIV; De Pot., q. 9,a. 9; 10, a. 2. ad argumenta sed contra)

O quinto discute-se assim. — Parece que há em Deus mais de duas processões.

1. — Pois, assim como a ciência e a vontade se atribuem a Deus, assim também a potência. Se, portanto, se admitem em Deus duas processões, segundo o intelecto e a vontade, resulta que se deve admitir uma terceira, segundo a potência.

2. Demais. — A bondade é por excelência o princípio da processão; pois, como se disse, o bem é difusivo de si. Logo, devemos admitir uma processão, em Deus, segundo a bondade.

3. Demais. — O vigor da fecundidade é maior em Deus que em nós. Ora, em nós não há só uma, mas muitas processões do verbo; pois de um verbo procede outro, e semelhantemente, de um, outro amor. Logo, há em Deus mais de duas processões. Mas, em contrário, em Deus só há dois procedentes, o Filho e o Espírito Santo. Logo, só há nele duas processões.

SOLUÇÃO. — Em Deus só se podem admitir processões segundo os atos imanentes no agente. Ora, tais atos, em a natureza intelectual e divina, são apenas dois — inteligir e querer. Pois o sentir, que também se considera como operação do que sente, está fora da natureza intelectual; nem é totalmente diverso do gênero de atos tendentes ao exterior, pois o sentir se completa pela ação sensível, no sentido. Donde se conclui que em Deus não pode haver outra processão, além da do Verbo e do Amor.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A potência é princípio de ação transitiva, e por isso, fundados nela, admitimos a ação transitiva. E assim, quanto ao atributo da potência, não se admite processão da Pessoa divina, mas só das criaturas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A bondade, como diz Boécio, pertence à essência e não à operação, a não ser talvez como objeto da vontade. Donde, como é necessário admitir as processões divinas, em relação a certos atos, não se podem admitir outras processões, relativamente à bondade e atributos semelhantes, a não ser a do Verbo e a do Amor, pelas quais Deus intelige e ama a sua essência, a sua verdade e a sua bondade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como já demonstramos (q. 14, a. 7; q. 19, a. 5), Deus, por um ato simples, tudo intelige e semelhantemente tudo quer. Donde, o não poder existir nele um verbo, procedendo, de outro verbo, nem um amor procedendo de outro amor; mas existe um só Verbo perfeito com um só perfeito amor. E isto lhe manifesta a perfeita fecundidade.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Questão XXVI - Da Beatitude Divina

QUESTÃO XXVI — DA BEATITUDE DIVINA


Depois de termos tratado da unidade da divina essência, devemos tratar da divina beatitude. E, nesta questão, discutem-se quatro artigos:
  1. Se a beatitude compete a Deus;
  2. Em virtude de que se diz que Deus é feliz; se é em virtude de um ato do intelecto;
  3. Se ele é essencialmente a beatitude de qualquer criatura feliz;
  4. Se sua beatitude inclui todas as outras.

ART. I. — SE A BEATITUDE CONVÉM A DEUS


(II Sent., dist. 1, q. 2, a. 2, ad 4; I Conto Gent., cap. C)

O primeiro discute-se assim. — Parece que a beatitude não convém a Deus.

1. — Pois, segundo Boécio, ela é o estado perfeito pela reunião de todos os bens. Ora, em Deus não existe reunião de bens nem composição. Logo, não lhe convém a beatitude.

2. Demais. — A beatitude ou a felicidade é o prêmio da virtude, segundo o Filósofo. Ora, em Deus não convém o prêmio, tampouco o mérito. Logo, nem a bem-aventurança. Mas, em contrário, o Apóstolo (1 Ti 6, 15): A Cristo mostrará Deus a seu tempo o bem-aventurado e o só poderoso, o Rei dos reis, e o Senhor dos senhores.

SOLUÇÃO. — A Deus convém a máxima beatitude. Pois, o que se entende pela denominação de beatitude é o bem perfeito da natureza intelectual, à qual compete conhecer a suficiência do bem que possui; da qual depende o bem ou o mal, que lhe possa suceder, e o ser senhora dos seus atos. Ora, uma e outra coisa convém excelentissimamente a Deus, isto é, ser perfeito e inteligente. Por onde a máxima beatitude lhe convém.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A reunião dos bens existe em Deus, não, a modo de composição, mas, por simplicidade. Porque, o múltiplo nas criaturas preexiste em Deus de modo simples e uno, como dissemos (q. 4, a. 2, ad 1; q. 13, a. 4).

RESPOSTA À SEGUNDA. — À beatitude ou à felicidade se acrescenta o prêmio quando a adquirimos, assim como o termo da geração se acrescenta ao ser, que passa da potência para o ato. Portanto, como Deus tem o ser, sem que seja gerado, assim, sem merecer, tem a beatitude.

ART. II. — SE DEUS É FELIZ PELO INTELECTO


(II Sent., dist. XVI, a. 2; I TIM., cap. VI lect III)

O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não é feliz pelo intelecto.

1. — Pois, a beatitude é o sumo bem. Ora, Deus é bom por essência, porque o bem é próprio ao ser que é por essência, segundo Boécio. Logo, também a beatitude existe em Deus, pela sua essência e não, pelo intelecto.

2. Demais. — A beatitude tem natureza de fim. Ora, o fim, como o bem, é objeto da vontade. Logo, Deus é feliz pela vontade e não, pelo intelecto.

Mas, em contrário, Gregório: Glorioso é ele que, gozando-se a si mesmo, não precisa do louvor acidenta. Ora, ser glorioso é ser feliz. E como gozamos de Deus pelo intelecto, porque a visão é a recompensa total, segundo Agostinho, a beatitude existe em Deus, pelo intelecto.

SOLUÇÃO. — A beatitude, como do sobredito se colhe (a. 1), significa o bem perfeito da natureza intelectual. Donde, do mesmo modo que cada ser deseja a sua perfeição, também a natureza intelectual deseja naturalmente ser feliz. Ora, a operação da inteligência pela qual uma natureza intelectual apreende, de certo modo, tudo, é o que há nessa natureza de mais perfeito. Logo, a beatitude de qualquer natureza intelectual criada consiste em inteligir. Mas, em Deus, a essência e o inteligir só diferem pela noção racional, e não, realmente. Portanto, devemos atribuir a Deus a beatitude pela inteligência, bem como aos bem-aventurados, assim chamados por assimilação com a beatitude divina.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O argumento prova que Deus é feliz por essência; não porém, que a felicidade lhe convenha em virtude da sua essência, mas antes, em virtude do intelecto.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A beatitude, sendo um ser, é objeto da vontade. Ora, o objeto nós o concebemos como anterior ao ato da potência. Por onde, quanto ao modo de inteligir, a beatitude divina é anterior ao ato da vontade que nela repousa. Ora, ela não pode ser senão um ato da inteligência. Logo, a beatitude consiste num ato do intelecto.

ART. III. — SE DEUS É A BEATITUDE DE TODOS OS QUE SÃO FELIZES


(Ia IIae, q. 3, a. 1; IV Sent., dist. XLIX, q. 1, a. 2, q. 1)

O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus é a beatitude de todos os que são felizes.

1. — Pois, Deus é o sumo bem, como se viu (q. 6, a. 2). Ora, como também resulta do sobredito (q. 11, a. 30), é impossível haver vários bens sumos. Logo, a beatitude, sendo por essência o sumo bem, não é outra senão Deus.

2. Demais. — A beatitude é o fim da natureza racional. Ora, ser tal fim só a Deus convém. Logo, só Deus é a beatitude dos que são felizes. Mas, em contrário, a felicidade de um é maior que a de outro, conforme a Escritura (1 Cor 15, 41): Há diferença de estrela a estrela, na claridade. Ora, nada é maior do que Deus. Logo, a felicidade é algo diverso de Deus.

SOLUÇÃO. — A beatitude da natureza intelectual consiste num ato do intelecto, no qual podemos considerar dois elementos: o objeto do ato, que é o inteligível; e o próprio ato, que é o inteligir. Considerada, pois, em relação ao seu objeto, a beatitude é só Deus; porque só é feliz quem intelige a Deus, como diz Agostinho: Feliz quem te conhece, mesmo sendo ignorante do mais. Mas, relativamente ao ato de quem intelige, a beatitude é algo de criado, nas criaturas felizes. Em Deus, porém, é algo de increado, mesmo nesta segunda relação.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Quanto ao seu objeto, a beatitude é o sumo bem absoluto. Mas, quanto ao ato é o sumo bem das criaturas felizes, não absoluto, mas no gênero dos bens participados por elas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Há duplo fim, segundo o Filósofo: um, que consiste na coisa possuída, outro, na posse desta coisa. Assim, para o avarento, o fim é o dinheiro e a aquisição dele. Ora, da criatura racional é o fim último Deus, como coisa; e a beatitude criada, como uso, ou antes, como fruição da coisa.

ART. IV. — SE A BEATITUDE DE DEUS INCLUI TODAS AS OUTRAS


(I Cont. Gent., cap. CII)

O quarto discute-se assim. — Parece que a divina beatitude não inclui todas as outras.

1. — Pois, há beatitudes falsas. Ora, em Deus nada pode ser falso. Logo, a divina beatitude não inclui todas as outras.

2. Demais. — Para alguns a beatitude consiste em coisas corpóreas, como os prazeres, as riquezas e coisas semelhantes, que não podem convir a um Deus incorpóreo. Logo, a beatitude de Deus não inclui todas as outras. Mas, em contrário, a beatitude é uma certa perfeição. Ora, a divina perfeição inclui todas as outras, como dissemos (q. 4, a. 2). Logo, a divina beatitude inclui todas as outras.

SOLUÇÃO. — Tudo o que em qualquer beatitude verdadeira ou falsa, é desejável, preexiste na divina, total e eminentemente. Pois, quanto à felicidade contemplativa, Deus tem contínua e certíssima contemplação de si e de todos os demais seres. Quanto à ativa, tem o governo de todo o universo. Quanto à felicidade terrena, consistente no prazer, nas riquezas, no poder, na dignidade, e na glória, segundo Boécio, tem o gáudio de si mesmo e de todos os demais seres, em lugar do prazer; em lugar das riquezas, a omnímoda abastança, que elas prometem; a onipotência, em lugar do poder; a regência de tudo, em lugar da dignidade e, em lugar da glória, a admiração de todas as criaturas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Falsa, e portanto, inexistente em Deus, é a beatitude que não tem natureza verdadeira. Mas, o que quer que se assemelhe, tenuemente que seja com a beatitude, preexiste totalmente na divina.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os bens existentes corporalmente, nos seres corpóreos, existem em Deus ao modo deste, isto é, espiritualmente. E no atinente à unidade da divina essência, baste o que dissemos até aqui.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Questão XXV - Da Potência Divina

QUESTÃO XXV — DA POTÊNCIA DIVINA


Depois de termos tratado da ciência e da vontade divinas, e do que lhes concerne, resta-nos tratar da potência divina. E nesta questão discutem-se seis artigos:
  1. Se Deus tem potência;
  2. Se a sua potência é infinita;
  3. Se onipotente;
  4. Se pode tornar o passado inexistente;
  5. Se Deus pode fazer o que não faz ou deixar de fazer o que faz;
  6. Se pode fazer melhor do que faz.

ART. I. — SE DEUS TEM POTÊNCIA


(I Sent., dist. XLII, q. 1, a. 1; I Cont. Gent., cap. XVI; II. cap. II: De Pot., q. 1, a. 1; q. 7, a. 1)

O primeiro discute-e assim. — Parece que Deus não tem potência.

1. — Pois, a matéria prima está para a potência, como Deus, agente primeiro, para o ato. Ora, nenhum ato há na matéria prima, em si mesma considerada. Logo, nenhuma potência tem Deus, agente primeiro.

2. Demais. — Segundo o Filósofo, melhor que a potência é o seu ato, pois é melhor a forma que a matéria, e a ação que a potência ativa, da qual é o fim. Ora, nada é melhor do que o existente em Deus, por ser divino tudo o que em Deus existe, como se demonstrou (q. 3, a. 3). Logo, nenhuma potência há em Deus.

3. Demais. — A potência é principio de operação. Ora, como em Deus não há acidente, a operação divina é a sua essência. Mas, esta não tem nenhum princípio. Logo, a idéia de potência não convém a Deus.

4. Demais. — Como ficou demonstrado (q. 14, a. 8; q. 19, a. 4), a ciência e a vontade divinas são a causa das coisas. Ora, causa e princípio se identificam. Logo, não se pode atribuir a Deus potência, mas somente ciência e vontade. Mas, em contrário, a Escritura (Sl 88, 9): Poderoso és, Senhor, e a tua vontade está sempre em roda de ti.

SOLUÇÃO. — Há duas espécies de potência — a passiva, que de nenhum modo existe em Deus; e a ativa, que lhe devemos atribuir, soberanamente. Pois, como é manifesto, um ser é principio ativo de um efeito, na medida em que é atual e perfeito; e recebe uma ação, na medida em que é deficiente e imperfeito. Ora, como demonstramos (q. 3, a. 1; q. 4, a. 1, 2), Deus é ato puro, absoluta e universalmente perfeito, não deixando lugar a nenhuma imperfeição. Por isso, soberanamente lhe convém ser princípio ativo, mas de nenhum modo, passivo. Pois, a natureza de princípio ativo convém à potência ativa, por ser esta princípio de ação transitiva. A potência passiva, pelo contrário, é princípio de sofrer a ação exterior, como diz o Filósofo. Donde se conclui, que Deus tem soberanamente a potência ativa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A potência ativa não se divide do ato, por oposição, mas nele se funda; pois um ser age na medida em que é atual. Ao contrário, a potência passiva se divide do ato, por oposição; pois, um ser sofre na medida em que é potencial. Por onde, esta é a potência excluída de Deus, e não, a ativa.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Sempre que o ato difere da potência, necessariamente aquele é que é mais nobre que esta. Ora, a ação de Deus não difere da sua potência, pois tanto esta como aquela lhe pertencem à essência, porque o seu ser não difere da sua essência. Por onde, nenhuma necessidade há de existir nada mais nobre que a potência de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A potência, nas criaturas, não só é princípio de ação, mas também de efeito. Assim, pois, em Deus se verifica a noção de potência, como princípio do efeito, mas não como princípio de ação, a qual é a divina essência. Salvo conforme o modo de o entendermos. Assim, enquanto a essência divina encerra, exemplarmente, tudo o que há de perfeição nas criaturas, podemos concebê-la como dotada de ação e de potência, como também a concebemos sob a noção de suposto, que tem natureza, e sob a de natureza.

RESPOSTA À QUARTA. — Não concebemos a potência, em Deus, como diferente da ciência e da vontade divinas realmente, mas só racionalmente. Isto é, enquanto potência implica a idéia de princípio executor do que é mandado pela vontade, dirigida pela ciência, três coisas que existem em Deus identificadas. — Ou devemos dizer que a ciência mesmo ou a vontade divina, enquanto princípios efetivos, têm natureza de potência. Por onde, a consideração da ciência e da vontade precede, em Deus, à da potência, como a causa precede à obra e ao efeito.

ART. II. — SE A POTÊNCIA DE DEUS É INFINITA


(I Sent., dist. XLIII, q. I, a. 1; I Cont. Gent., cap. XLIII: De Pot., q. 1, a. 2: Compend. Theol., cap. XIX; VIII Physic., lect. XXIII: XII Metaph., lect. VIII)

O segundo discute-se assim. — Parece que a potência de Deus não é infinita.

1. — Pois, todo infinito é imperfeito, segundo o Filósofo. Ora, a potência de Deus não é imperfeita. Logo, não é infinita.

2. Demais. — Para não ser frustrada, toda potência há de manifestar-se pelo efeito. Ora, se a potência de Deus fosse infinita, poderia causar um efeito infinito. O que é impossível.

3. Demais. — O Filósofo prova, que se a potência de um corpo fosse infinita, moveria instantaneamente. Ora, Deus não move instantaneamente, mas, no tempo, a criatura espiritual; e no espaço e no tempo, a corpórea, segundo Agostinho. Logo, a sua potência não é infinita.

Mas, em contrário, Hilário diz que Deus tem imenso poder, é vivo e poderoso. Ora, o imenso é infinito. Logo, o poder divino é infinito.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), a potência ativa existe em Deus enquanto ele é um ser em ato. Ora, o seu ser, não sendo limitado por nada de receptivo, é infinito, como ficou claro pelo que dissemos, quando tratamos da infinidade da essência divina (q. 7, a. 1). Por onde, necessariamente, a potência ativa de Deus é infinita. Ora, verifica-se que, quanto mais perfeita é a forma pela qual um agente obra, tanto maior é a sua potência de agir. Assim, quanto mais quente for um corpo, tanto maior será a sua potência de aquecer; e tê-la-ia mesmo infinita se o seu calor fosse infinito. Por onde, a essência divina, em si mesma, pela qual Deus age, sendo infinita, como demonstramos (Ibid), infinita lhe há de ser a potência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Filósofo se refere ao infinito da matéria não determinada pela forma, infinito esse que convém à quantidade. Ora, não é assim infinita a divina essência, como demonstramos (Ibid) e, por conseqüência, nem a sua potência. Donde não se segue que seja imperfeita.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A potência de um agente unívoco se manifesta inteira no seu efeito; assim, a potência geratriz do homem só pode gerar outro homem. Mas a potência do agente não unívoco não se manifesta inteira na produção do seu efeito; assim, a potência solar, não se manifesta inteira na geração de um animal nascido da putrefação. Ora, manifestamente, Deus não é um agente unívoco; pois, como demonstramos (q. 3, a. 5), nada pode com ele convir, nem em espécie nem em gênero. Portanto, o seu efeito sempre será menor que a sua potência. Logo, não é necessário esta se manifeste infinita, pela produção de um efeito infinito. Mas ainda, nem se frustraria a potência de Deus, se nenhum efeito produzisse. Pois, frustrado fica o que não atinge o fim para que se ordena. Ora, a potência de Deus não se ordena a nenhum efeito, como ao fim; antes, é o fim do seu efeito.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O Filósofo prova que, se um corpo tivesse potência infinita moveria instantaneamente. E, contudo, demonstra que a potência do motor do céu é infinita porque pode mover em tempo infinito. Donde se conclui, segundo o seu pensamento, que se existisse, a potência infinita de um corpo moveria instantaneamente; não, porém, a potência de um motor incorpóreo. E a razão é que o corpo motor de outro é um agente unívoco, e, por isso, toda a potência do agente se manifesta no movimento. Ora, sendo tanto maior a potência do corpo motor, quanto mais velozmente move, por força, sendo infinita, moverá improporcionalmente mais rápido, o que é mover num instante. Mas o motor incorpóreo é um agente não unívoco. Por onde, não é necessário se manifeste toda a sua virtude no movimento, de modo que mova num instante. E, sobretudo, porque move segundo a disposição da sua vontade.

ART. III. — SE DEUS É ONIPOTENTE


(IIIª, q. 13, a. 1; I Sent., dist. XLII, q. 2, a. 2; III, dist. I, q. 2, a. 3; II Cont. Gent., cap. XXII, XXV; De Pot., q. 1, a. 7; q. 5, a. 3; Quodl., III, q. 1, a. 1; V, q. 2, a. 1; XII, q. 2, a. 1; VI Ethic., lect. II)

O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus não é onipotente.

1. — Pois, todas as coisas podem ser movidas e sofrer uma ação. Ora, Deus, sendo imóvel, como vimos (q. 2, a. 3; q. 9, a. 1), não o pode. Logo, não é onipotente.

2. Demais. — Pecar é praticar um ato. Ora, Deus não pode pecar nem se negar a si mesmo, como diz a Escritura (2 Ti 2, 13). Logo, não é onipotente.

3. Demais. — Diz-se que Deus manifesta a sua onipotência, sobretudo perdoando e comiserando-se. Logo, o máximo que pode a divina potência é perdoar e comiserar-se. Ora, muito mais que perdoar e comiserar-se é criar outro mundo ou causa semelhante. Logo, Deus não é onipotente.

4. Demais. — Àquilo da Escritura (1 Cor 1, 20): — Deus convenceu de estultícia a sabedoria deste mundo — diz a Glosa: Deus convenceu de estultícia a sabedoria deste mundo mostrando ser possível o que ela julgava impossível. Por onde, não devemos julgar nada possível ou impossível, pelas causas inferiores, como o faz a sabedoria deste mundo, senão pelo poder divino. Logo, se Deus é onipotente tudo lhe é possível, e nada impossível. Mas, eliminando o impossível, eliminado fica o necessário; pois é impossível não existir o que existe necessàriamente. Logo, nada será necessário se Deus for onipotente; e, portanto, Deus não é onipotente.

Mas, em contrário, diz o Evangelho (Lc 1, 37): Porque a Deus nada é impossível.

SOLUÇÃO. — Todos, em geral, confessam que Deus é onipotente, mas é difícil mostrar a razão dessa onipotência. Pois, pode ser dúbio o sentido dessa atribuição: Deus pode tudo. — Mas, quem considerar retamente compreenderá que, referindo-se a potência ao possível, o dizer-se que Deus pode tudo não significa senão que pode tudo o que for possível e, por isso, dize-mo-lo onipotente. Ora — possível — é susceptível de duplo sentido, segundo o Filósofo.

Num sentido, é relativo a alguma potência; assim, dizemos ser possível ao homem o que lhe depende da potência. Ora, não podemos dizer que Deus é onipotente por poder tudo o possível à natureza criada, porque a divina potência tem maior amplitude. Por outro lado, se dissermos que Deus é onipotente, porque pode tudo o que ao seu poder é possível, haverá círculo nesta explicação da onipotência. Pois, seria o mesmo dizer que Deus é onipotente por poder tudo o que pode. Donde se conclui que Deus é dito onipotente por poder tudo o que é absolutamente possível; que é outro sentido da expressão — possível. Assim, uma coisa é possível ou impossível, absolutamente, pela relação dos termos.

Há possível absoluto quando o predicado não repugna ao sujeito, p. ex., Sócrates estar sentado; e impossível absoluto, quando repugna, p. ex., ser um homem asno. Mas, devemos considerar que, agindo todo agente conforme a sua natureza, a cada potência ativa, segundo a natureza do ato em que se funda, assim, lhe corresponde o possível, como objeto próprio. P. ex., o que pode ser aquecido é objeto próprio da potência calefactiva. Ora, o ser divino, fundamento da divina potência, é infinito, não limitado a nenhum gênero de ser, mas encerra exemplarmente a perfeição de todo o ser. Por onde, tudo o que tem ou pode ter natureza de ente está contido na possibilidade absoluta, em relação à qual dizemos que Deus é onipotente. Pois, só a noção de não ser se opõe à de ser. Portanto, só repugna à noção do possível absoluto, objeto da onipotência divina, o que implica em si simultaneamente o ser e o não-ser.

Porque isto não está sujeito a ela; não por deficiência da potência divina, mas, por não ter natureza de fatível, nem de possível. Por onde, tudo o que não implique contradição está contido nesses possíveis, relativamente aos quais dizemos que Deus é onipotente. As coisas, porém, que implicam contradição não constituem objeto da divina onipotência, por não poderem ter a natureza de coisas possíveis. Por isso, é mais conveniente dizer que não podem ser feitas, em vez de dizer que Deus não pode fazê-las. Nem isto vai contra as palavras do Anjo: Porque a Deus nada é impossível. Pois, o contraditório, não podendo ser conceito, nenhum intelecto pode concebê-lo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como vimos, é pela potência ativa e não, pela passiva, que dizemos ser Deus onipotente. Logo, não repugna à onipotência não poder ser movida nem sofrer.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Pecar é desviar-se da ação perfeita. Por onde, poder pecar é poder desviar-se, ao agir, o que repugna à divina onipotência. Por isso, Deus sendo onipotente, não pode pecar. E o dito do Filósofo — Deus, como o homem virtuoso, pode fazer o mal — pode-se entender condicionalmente, isto é, como aquilo cujo antecedente é impossível; assim, se dissermos que Deus pode agir mal, se quiser. Pois, nada impede seja verdadeira uma cláusula condicional, de que o antecedente e o consequente são impossíveis; como se dissermos, p. ex., — se o homem é asno, tem quatro pés. Ou então, podemos entender essa afirmação no sentido que Deus pode fazer certas coisas que, agora, nos parecem más, e que seriam boas se ele as fizesse. Ou então, o Filósofo se exprime de acordo com a comum opinião dos gentios, que diziam transformarem-se os homens em deuses, como Júpiter ou Mercúrio.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Dizemos que a onipotência de Deus se manifesta, sobretudo em perdoar e comiserar-se, porque o perdoar livremente os pecados é prova do seu poder sumo; pois, quem está sujeito à lei de um superior não pode livremente perdoá-los. Ou porque, perdoando aos homens e deles comiserando-se, leva-os Deus a participar do infinito bem, último efeito da divina virtude. Ou ainda porque, como dissemos (q. 21, a. 4), o efeito da divina misericórdia é o fundamento de todas as obras divinas, pois, o devido a alguém só o é pelo indevido que Deus lhe deu. E nisto principalmente sê manifesta a divina bondade à qual pertence à instituição primeira de todos os bens.

RESPOSTA À QUARTA. — O possível absoluto é assim chamado por sê-lo por si mesmo, e não, por causas superiores ou inferiores. O possível, porém, assim denominado relativamente a uma potência, o é pela causa próxima. Por onde, o que, por natureza, só pode ser feito por Deus, como criar, justificar e coisas semelhantes, chama-se possível em virtude de uma causa superior. Aquilo porém que é de natureza a ser feito por causas inferiores chama-se possível em virtude dessas causas; pois, da condição da causa próxima provém a contingência ou a necessidade do efeito, conforme dissemos (q. 14, a. 13 ad 1). Por onde, considera-se estulta a sabedoria do mundo por julgar impossível a Deus o que o é à natureza. E assim, é claro que a onipotência de Deus não exclui das coisas a impossibilidade e a necessidade.

ART. IV. — SE DEUS PODE TORNAR O PASSADO INEXISTENTE


(IIa IIae, q. 152, a 3, ad 3; I Sent., dist. XLII, q. 2, a. 2; II Cont. Gent., cap. XXV; De Pot., q. 1, a. 3, ad 3; Quodl., V, q. 7, a. 1; VI Ethic., 1ecl. II)

O quarto discute-se assim. — Parece que Deus pode tornar o passado inexistente.

1. — Pois, o impossível por si é mais impossível que o por acidente. Ora, Deus pode fazer o impossível por si, como, dar vista a um cego ou ressurgir um morto. Logo, com maior razão, pode fazer o impossível por acidente. Ora, o passado não ter sido é impossível por acidente; por ex., só por ser já passado, é acidentalmente impossível Sócrates não correr. Logo, Deus pode tornar o passado inexistente.

2. Demais. — Como o seu poder não diminui, tudo o que Deus pôde fazer ainda o pode. Ora, antes de Sócrates ter corrido, Deus podia fazer com que não corresse. Logo, depois que correu, pode fazer com que não tenha corrido.

3. Demais. — A caridade é maior virtude que a virgindade. Ora, Deus pode reparar a caridade perdida. Logo, também a virgindade. E, portanto pode fazer com que não seja corrupta aquela que o foi.

Mas, em contrário, Jerônimo: Deus, que pode tudo, não pode tornar virgem uma corrupta. Logo, pela mesma razão, não pode fazer com que o passado não seja.

SOLUÇÃO. — O poder de Deus, como dissemos (a. 3), não abrange o que implica contradição. Ora, o passado não ter sido implica contradição. Pois, assim como a implica dizer que Sócrates está e não está sentado, assim também que esteve e não esteve sentado. Porque, se dizer que esteve sentado é enunciar um passado, dizer que não o esteve é enunciar o que não se deu. Por onde, não está no poder divino tornar inexistente o passado. E é o que diz Agostinho: Quem diz: se Deus é onipotente torne o feito não feito, não vê que diz: se é onipotente torne falso o que em si é verdadeiro. E o Filósofo: Deus só está privado de tornar o feito não feito.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — É impossível, por acidente, o passado não ter sido, considerando-se o passado, i. é, a corrida de Sócrates. Contudo, considerando o passado, como tal, é impossível a inexistência, não só em si mesma, mas absolutamente, por implicar contradição. E assim, é mais impossível do que ressurgir um morto, que não a implica, e se chama impossível relativamente ao poder natural. Ora, impossíveis como este estão no poder de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus, pela perfeição do seu poder, pode tudo, mas lhe escapa à potência o que não tem natureza de possível. Assim também, se atendermos à imutabilidade do seu poder, Deus pode tudo o que pôde; porém, certas coisas que, antes quando eram factíveis, tinham a natureza de possível, já não a têm quando feitas. E, então dizemos que não as pode, por não poderem elas ser feitas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora Deus possa remover toda corrupção da alma e do corpo da mulher corrupta, todavia, não pode fazer com que não tenha sido corrupta; como também não pode fazer com que um pecador não o tenha sido e que não tivesse perdido a caridade.

ART. V. — SE DEUS SÓ PODE FAZER O QUE FAZ


(I Sent., dist. XLIII, q. 2; II Cont. Gent., cap. XXIII. XXVI, XXVII; III, cap. XCVIII, De Pot., q. 1, a. 5)

O quinto discute-se assim. — Parece que Deus só pode fazer o que faz.

1. — Pois, não pode fazer o que não previu nem preordenou que devia fazer. Ora, só previu e preordenou que havia de fazer o que faz. Logo, só pode fazer o que faz.

2. Demais. — Deus só pode o que deve e o que é justo que se faça. Ora, nem deve nem é justo fazer o que não faz. Logo, só pode fazer o que faz.

3. Demais. — Deus só pode fazer o bom e conveniente às coisas feitas. Ora, não lhes é bom nem conveniente às coisas feitas por Deus, o que existirem diferentemente do que existem. Logo, Deus só pode fazer o que faz.

Mas, em contrário, o Evangelho (Mt 26, 53): Acaso cuidas tu que eu não posso rogar a meu pai, e que ele me não porá aqui logo pronto mais de doze legiões de anjos? Mas nem ele rogava, nem o pai mandava, para repelir os Judeus. Logo, Deus pode fazer o que não faz.

SOLUÇÃO. — Sobre este assunto houve duas sortes de erros. Uns disseram que Deus age como por necessidade de natureza. Pois, assim como da ação dos seres naturais só podem provir os efeitos dela provenientes, p. ex. do sêmen humano, o homem, e da semente da oliveira, a oliveira, assim também, da ação divina não poderiam resultar outros seres ou outra ordem de seres diferentes dos atualmente existentes. — Mas, como já demonstramos (q. 19, a. 3, 4), Deus não age por necessidade de natureza, senão que a sua vontade é a causa de todas as coisas; e nem a sua vontade, natural e necessariamente, está determinada a produzi-las. Por onde, de nenhum modo a ordem atual das coisas provém de Deus necessariamente e de maneira tal, que não possa provir outra.

Outros, porém, disseram que o poder divino se determinou à ordem atual dos seres, por causa da ordem da sapiência e da justiça divinas, sem as quais Deus nada faz. — Mas, a potência, que é a essência de Deus, não difere da sua sabedoria. Por onde, podemos dizer, com razão, que nada está no poder de Deus, que não esteja na ordem da divina sabedoria; pois, esta compreende todo o poder da potência. Contudo, a ordem que a divina sabedoria infundiu nas coisas, e na qual está o fundamento da justiça, como dissemos (q. 21, a. 4), não condiz de modo tal com a sabedoria divina, que esta fique limitada a tal ordem. Pois é manifesto que todo o fundamento da ordem que o sábio infunde nas coisas que faz, deriva do fim. Quando, pois, o fim se proporciona às coisas feitas em vista dele, a sabedoria de quem as fez se limita a uma ordem determinada. Mas a divina bondade é um fim que excede, sem proporções, a todas as criaturas.

Portanto não está a divina sabedoria determinada a nenhuma ordem de seres com exclusão de qualquer outra. Por onde, devemos concluir que Deus pode, absolutamente falando, fazer coisas diferentes do que faz.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Em nós, a potência e a essência diferem da vontade e do intelecto; o intelecto, da sapiência; à vontade, da justiça. Por isso, o que está na potência pode não estar na vontade justa ou no intelecto sábio. Mas, em Deus, identificam-se a potência, a essência, a vontade, o intelecto, a sapiência e a justiça. Portanto, nada pode lhe estar na potência que também não o possa na vontade justa e no intelecto sábio. Contudo, a sua vontade, como vimos (q. 19, a. 3), não está necessàriamente determinada a esta ou àquela coisa, a não ser talvez por suposição. Nem a sabedoria de Deus e a sua justiça estão determinadas a essa ordem, como dissemos. Pois, nada impede esteja alguma coisa no poder divino, que Deus não quer e não está incluído na ordem de coisas que estabeleceu.

E compreendendo nós o poder como exequente, a vontade, como imperante, e o intelecto e a sapiência, como dirigentes, dizemos que Deus pode, por potência absoluta, tudo o que é atribuído ao seu poder, em si mesmo considerado. E isto abrange tudo o que tem natureza de ser, como vimos (a. 5). Dizemos, porém, que Deus pode, por potência ordenada o que a esta é atribuído, enquanto executora da ordem da vontade justa. Por onde, devemos concluir, que, pela potência absoluta, Deus pode fazer coisas diversas das que previu e preordenou que haveria de fazer. Não é possível, porém, faça coisas diversas das que previu e predeterminou que haveria de fazer. Pois, o seu próprio fazer está sujeito à presciência e à preordenação; não porém o seu poder, que lhe é natural. Por onde, Deus faz o que quer; porém, o que pode não é porque o queira, mas, porque está na sua natureza.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus nada deve a ninguém, senão a si próprio. Por isso, dizer que Deus só pode fazer o que deve é dizer que só pode o que lhe é conveniente e justo. Mas, duplo é o sentido da expressão conveniente e justo. Considerando a expressão — conveniente e justo como ligada, primeiro, com o verbo é, de modo que se restrinja ela às causas presentes e, assim, se refira à potência, essa expressão é falsa e o seu sentido é: Deus só pode fazer o que presentemente é conveniente e justo. Mas, se a ligarmos, primeiramente, ao verbo pode — que tem força ampliativa, e, depois, ao verbo — é — significará algo de presente e confuso; e, então, será verdadeira neste sentido: Deus só pode fazer aquilo que, se o fizesse, seria conveniente e justo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não obstante a ordem atual das causas determinadas às existências, contudo a tal ordem não ficam limitadas a sapiência nem o poder divino. Donde, embora às coisas existentes nenhuma outra ordem seja boa e conveniente, entretanto Deus poderia fazer outras e lhes impor outra ordem.

ART. VI. — SE DEUS PODE FAZER COISAS MELHORES QUE AS QUE FAZ


(I Sent., dist. XLIV, a. 1, 2, 3)

O sexto discute-se assim. — Parece que Deus não poderia fazer coisas melhores que as que faz.

1. — Pois, tudo o que Deus faz, potentíssima e sapientíssimamente o faz. Ora, tanto melhor fazemos o que tanto mais poderosa e sabiamente fazemos. Logo, Deus não pode fazer melhor do que faz.

2. Demais. — Agostinho assim argumenta: Se Deus podia e não quis gerar o Filho igual a si, foi invejoso. Pela mesma razão, foi invejoso, se podia e não quis fazer as coisas melhores, que as fez. Ora, a inveja de nenhum modo existe em Deus. Logo, tudo o que fez é ótimo e, portanto, nada pode fazer melhor do que faz.

3. Demais. — Não é possível fazer nada melhor do que aquilo que em máximo grau é bom, pois, nada é maior que o máximo. Ora, como diz Agostinho, cada coisa que Deus fez é boa; mas muito boa é a simultânea universalidade das coisas; porque todas compõem a admirável beleza do universo. Logo, Deus não pode fazer melhor o bem do universo.

4. Demais. — Cheio de graça, de verdade e repleto sem medida, do Espírito, o Homem Cristo não pode ser melhor. Mas, também se diz que a beatitude criada é o sumo bem e, portanto não pode ser melhor. E ainda, a Virgem Maria, exaltada sobre todos os coros dos anjos, não pode ser melhor. Logo, nem tudo Deus pode fazer melhor do que fez. Mas, em contrário, o Apóstolo diz que Deus é poderoso para fazer todas as coisas mais abundantemente do que pedimos ou entendemos (Ef 3, 20).

SOLUÇÃO. — Dupla é a bondade de uma coisa. Uma, pertence-lhe à essência; assim, ser racional é da essência do homem. E, quanto a esta bondade, Deus não pode fazer um ser melhor do que é, embora possa fazer outro melhor. Assim, não pode fazer o número quaternário maior; pois, se fosse maior, já não seria quaternário, mas outro número. Ora, a adição da diferença substancial, nas definições, é como a da unidade, nos números, como diz Aristóteles. Outra é a bondade exterior à essência do ser; assim o bem do homem é ser virtuoso ou sábio. E, quanto a esta, Deus pode fazer coisas melhores do que as que fez. Mas, absolutamente falando, Deus pode fazer qualquer coisa melhor que a fez.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Se, quando dizemos que Deus pode fazer melhor alguma coisa do que fez, melhor for um nome, a proposição é verdadeira, pois, pode fazer uma coisa melhor do que qualquer outra. E a mesma coisa pode, de certo modo, fazê-la melhor; embora, de outro modo, não o possa. Mas, como dissemos, se melhor for advérbio e implicar o modo por parte de quem faz, então Deus nada pode fazer melhor, porque nada pode fazer com maior sabedoria e bondade. Se, porém, o advérbio implica o modo no que é feito, então Deus pode fazer melhor, porque pode dar às coisas que fez um melhor modo acidental de existir, embora não essencial.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Da natureza do filho é, quando for perfeito, igualar-se ao pai; mas não é da natureza de nenhuma criatura ser melhor do que Deus a fez. Logo, a comparação não colhe.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Supostas coisas existentes, o universo não pode ser melhor, por causa da convenientíssima ordem, que Deus lhes atribuiu, no que consiste o bem do mesmo. Pois, se uma delas fosse melhor, corromper-se-ia a proporção da ordem; como haveria de corromper-se a melodia da citara, se fosse uma corda mais tensa que outra. Mas Deus poderia fazer outras coisas, ou acrescentá-las às já feitas, e então o universo seria melhor.

RESPOSTA À QUARTA. — A humanidade de Cristo, por estar unida a Deus; a beatitude criada, por ser a fruição de Deus, e a beata Virgem, por ser a Mãe de Deus, têm uma certa dignidade infinita, proveniente do bem infinito, que é Deus. E, por este lado, nada pode ser melhor que elas, bem como, nada pode ser melhor que Deus.