segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Relutância em estudar

Relutância em estudar


19. Neste período da infância, cujo perigo temiam menos para mim do que o da adolescência, não gostava do estudo, e tinha horror de ser a ele obrigado. Por meio desta coação faziam-me um bem — embora eu procedesse mal —, pois não aprenderia se não fosse constrangido. Todavia, contra a vontade, ninguém procede bem, ainda que a ação em si mesma seja boa. Os que me obrigavam não agiam retamente.

O bem que daí resultava vinha só de Vós, meu Deus. Nesses estudos a que me aplicavam, não tinham outra finalidade senão saciar os insaciáveis desejos de opulenta miséria e de ignominiosa glória. Mas Vós, "para quem estão contados os nossos cabelos", utilizáveis em meu proveito o erro dos que me coagiam. Com relação a mim, que não queria aprender, utilizáveis a minha falta para me dardes o castigo com que eu, tão pequenino e já tão grande pecador, merecia ser punido.

Era assim que Vós transformáveis em meu bem o mal que eles faziam, e me dáveis justa retribuição pelos meus pecados. Com efeito, é vosso desígnio, e, assim, acontece que toda alma desregrada seja para si mesma o seu castigo.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

No limiar do batistério

No limiar do batistério


17. Ouvira eu falar, ainda criança, da vida eterna que nos é prometida, graças à humildade do vosso Filho, Deus e Senhor nosso, descido até à nossa soberba. Fui marcado pelo sinal-da-cruz e condimentado com sal divino, logo que saí do seio da minha mãe, que punha em Vós todas as esperanças.

Vistes, Senhor, que, sendo ainda criança, sobrevindo-me certo dia uma febre alta, motivada numa opressão do estômago, bati às portas da morte. Sabeis, meu Deus, pois já então por mim vigiáveis, com que ardor e fé pedi à piedade de minha mãe e de nossa mãe comum — a vossa Igreja — o batismo de Cristo, Deus e Senhor meu. A minha mãe carnal, porque na sua fé e coração puro me gerava com maior solicitude para a vida eterna, perturbada, procurava com pressa iniciar-me e purificar-me nos sacramentos da salvação, confessando-Vos eu, Senhor Jesus, para obter a remissão dos meus pecados.

Dentro em breve, porém, achei-me melhor, e essa purificação foi diferida, como se fosse necessário continuar a corromper-me, para prolongar a vida. Na verdade, depois do banho do batismo, as recaídas na imundície do pecado seriam mais graves e perigosas.

Tinha eu já verdadeira fé, como minha mãe e todos os de casa, exceto meu pai, que não prevaleceu em mim contra os direitos da piedade materna de eu crer em Cristo, no qual ele ainda não acreditava. Minha mãe desejava ardentemente que eu Vos considerasse a Vós, meu Deus, como pai, mais do que àquele que ainda não tinha fé.

Nisso a ajudáveis a triunfar do marido, a quem servia melhor pelo fato de nisso obedecer às vossas ordens.

18. Rogo-Vos, meu Deus, que me mostreis — se Vos apraz — qual o desígnio por que me foi então diferido o batismo: se seria para meu bem soltarem-se ou não as rédeas do pecado. Por que razão ainda agora de toda parte chega aos meus ouvidos a respeito de uns ou de outros: "deixai-o fazer o que quiser, pois ainda não está batizado"? Mas da saúde do corpo ninguém diz: "deixai-o, que se fira mais, porque ainda não está curado"!

Quanto me não era preferível ser logo curado, obtendo, pela minha diligência e dos meus, conservar intata, sob a vossa proteção, a saúde da alma que me tínheis concedido !

Sem dúvida, seria melhor. Minha mãe, porém, já previra quantas e quão grandes ondas de tentações pareciam ameaçar-me depois da infância, e preferiu expor-me a elas, como terra grosseira em que eu depois receberia forma, a expor-me a esse perigo já como imagem.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Prefere o jogo e o teatro ao estudo

Prefere o jogo e o teatro ao estudo


16. Contudo eu pecava contra Vós, Senhor Deus, ordenador e criador de todas as coisas da natureza, com exceção do pecado, de que és apenas regularizador. Eu pecava, Senhor, desobedecendo às ordens de meus pais e mestres, pois podia no futuro fazer bom uso desses conhecimentos que me obrigavam a adquirir, qualquer que fosse a intenção com que mos impunham. Além disso, eu não desobedecia para fazer melhor escolha, mas só pelo amor do jogo.

Amava nos combates o orgulho da vitória. Gostava dessas histórias frívolas que tanto me deleitavam os ouvidos e me excitavam com interesse sempre mais apaixonado.

Essa curiosidade brilhava dia a dia mais intensa nos meus olhos, atraindo-me para espetáculos e jogos de gente crescida.

Por outro lado, aqueles que presidem aos jogos sobressaem tanto por esta dignidade que quase todos desejam que seus filhos lhes sucedam nesta honra. Apesar disso, regozijam-se em castigá-los se tais divertimentos os afastam do estudo, que, segundo os seus desejos, lhes permitirá mais tarde organizar semelhantes espetáculos. . .

Examinai, Senhor, estas fraquezas com um olhar de compaixão. Socorrei-nos, que já Vos invocamos, e socorrei também os que ainda Vos não invocam, a fim de que eles também Vos invoquem e sejam libertados.

domingo, 11 de setembro de 2011

Na paixão do jogo

Na paixão do jogo


14. O Deus, meu Deus, que misérias e enganos não experimentei, quando simples criança me propunham vida reta e obediência aos mestres, a fim de mais tarde brilhar no mundo e me ilustrar nas artes da língua, servil instrumento da ambição e da cobiça dos homens.
Fui mandado à escola para aprender as primeiras letras, cuja utilidade eu, infeliz, ignorava. Todavia batiam-me se no estudo me deixava levar pela preguiça. As pessoas grandes louvavam esta severidade. Muitos dos nossos predecessores na vida tinham traçado estas vias dolorosas, por onde éramos obrigados a caminhar, multiplicando os trabalhos e as dores aos filhos de Adão. Encontrei, porém, Senhor, homens que Vos imploravam, e deles aprendi, na medida em que me foi possível, que éreis alguma coisa de grande e que podíeis, apesar de invisível aos sentidos, ouvir-nos e socorrer-nos.

Ainda menino, comecei a rezar-Vos como a "meu auxílio e refúgio", desembaraçando-me das peias da língua para Vos invocar. Embora criança, mas com ardente fervor, pedia-Vos que na escola não fosse açoitado. Quando me não atendíeis"o que era para meu proveito", as pessoas mais velhas e até os meus próprios pais, que, afinal, me não desejavam mal, riam-se dos açoites — o meu maior e mais penoso suplício.

15. Haverá, Senhor, alma tão generosa e tão unida a Vós pelos laços dum ardente afeto, que despreze, não por insensibilidade louca, mas por amor intenso e forte para convosco, os cavaletes, os garfos de ferro e os demais tormentos deste gênero dos quais os homens em toda parte suplicam que os liberteis? Haverá alguma alma dessas que despreze essas torturas a ponto de rir dos que tão acerbamente temem esses suplícios, como meus pais caçoavam das penalidades que a nós, meninos, infligiam os mestres? Eu não temia menos os castigos do que as torturas, nem Vos suplicava menos que nos livrásseis deles.

Contudo, pecava por negligência, escrevendo, lendo e aprendendo as lições com menos cuidado do que de nós exigiam. Senhor, não era a memória ou a inteligência que me faltavam, pois me dotastes com o suficiente para aquela idade. Mas gostava de jogar, e aqueles que me castigavam procediam de modo idêntico! As ninharias, porém, dos homens chamam-se negócios; e as dos meninos, sendo do mesmo jaez, são punidas pelos grandes, sem que ninguém se compadeça da criança, nem do homem, nem de ambos. Um juiz reto aprovaria os castigos que me davam, por eu, em pequeno, jogar a bola e o jogo ser um obstáculo ao meu aproveitamento nos estudos, com os quais eu havia de jogar menos inocentemente quando chegasse a homem? Agia, porventura, de modo diferente aquele que me batia, se nalguma questiúncula era vencido pelo seu competidor? Então esse não era mais atormentado pela ira e inveja do que eu quando superado no desafio da bola pelo meu rival?...