sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Questão XIV - Da ciência de Deus

QUESTÃO XIV — DA CIÊNCIA DE DEUS


Depois de termos considerado o que pertence à substância divina, resta considerarmos o que lhe pertence à operação. E como há duas espécies de operações, uma imanente no agente, e outra, que produz um efeito exterior, trataremos, primeiro, da ciência e da vontade, pois, o ato de inteligir é imanente no sujeito que intelige e o de querer, no sujeito que quer. E, em segundo lugar, trataremos do poder divino considerado como princípio de operação divina que produz um efeito exterior. — Como, porém, inteligir é viver, depois de considerarmos a divina essência, trataremos da vida divina. — E, como a ciência diz respeito à verdade, trataremos da verdade e da falsidade. — Enfim, como todo objeto conhecido está no sujeito que conhece; e como as razões das coisas, enquanto existentes em Deus, que as conhece, chamam-se idéias, quando tratarmos da ciência também, conjuntamente, trataremos das idéias.
Ora, sobre a ciência discutem-se dezesseis artigos:
  1. Se em Deus há ciência;
  2. Se Deus se intelige a si mesmo;
  3. Se se compreende a si mesmo;
  4. Se o seu inteligir é a sua substância;
  5. Se intelige seres diferentes de si;
  6. Se tem deles conhecimento próprio;
  7. Se a ciência de Deus é discursiva;
  8. Se a ciência de Deus é causa das coisas;
  9. Se a ciência de Deus pode ter por objeto o que não existe;
  10. Se pode ter por objeto o mal;
  11. Se pode ter por objeto o singular;
  12. Se abrange uma infinidade de objetos;
  13. Se alcança os futuros contingentes;
  14. Se alcança tudo o que podemos enunciar;
  15. Se a ciência de Deus é variável;
  16. Se Deus tem das coisas ciência especulativa ou prática.

ART. I — SE EM DEUS HÁ CIÊNCIA


(I Sent., dist. XXXV, a. 1; I Cont. Gent., cap. XLIV; De Verit., q. 2, a. 1; Compend. Theol., cap. XXVIII; XII Metaph., lect. VIII)

O primeiro discute-se assim. — Parece que em Deus não há ciência.

1. — Pois, a ciência é um hábito que, sendo meio termo entre a potência e o ato, não podemos atribuir a Deus. Logo, em Deus não há ciência.

2. Demais. — A ciência, respeitante às conclusões, é um certo conhecimento causado por outro, a saber, pelo conhecimento dos princípios. Ora, em Deus, não há nada de causado. Logo, não há ciência.

3. Demais. — Toda ciência é universal ou particular. Ora, em Deus não há nem universal nem particular, como já se viu (q. 13, a. 9 ad 2). Logo, nele não há ciência.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 11, 33): Ó profundidade das riquezas da sabedoria e da ciência de Deus!

SOLUÇÃO. — Em Deus há ciência perfeitíssima. Para evidenciá-lo, devemos considerar que os seres dotados de conhecimento distinguem-se dos que não o são, neste sentido que estes têm apenas a sua forma própria, ao passo que àqueles é natural poderem conter em si também a forma de outro ser, pois, a espécie do objeto conhecido está no conhecente. Por onde, é manifesto que a natureza do ser que não conhece é mais restrita e limitada; ao passo que a dos que são dotados de conhecimento tem maior amplitude e extensão; e por isso, diz o Filósofo que a alma é de certo modo tudo. Ora, a limitação da forma se dá pela matéria. Por isso, dissemos antes (q. 7, a. 1, 2) que, quanto mais imateriais são as formas, mais se aproximam de uma certa infinidade.

Ora, é claro que a imaterialidade de um ser é a razão que o torna capaz de conhecimento; e conforme o modo da imaterialidade, assim o do conhecimento. Por isso, diz Aristóteles, que as plantas, por causa da sua materialidade, não conhecem; ao passo que o sentido é susceptível de conhecimento porque é capaz de receber as espécies sem matéria. E ainda mais capaz de conhecimento é o intelecto, porque é ainda mais separado e emerge da matéria, como diz Aristóteles. Por onde, sendo Deus o ser sumamente imaterial, como do sobredito resulta (q. 7, a. 1) conclui-se que é, por excelência, dotado de conhecimento.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA QUESTÃO. — Como as perfeições procedentes de Deus para as criaturas estão em Deus de modo eminente, como já dissemos (q. 4, a. 2), sempre que um nome, derivado de qualquer perfeição da criatura, é atribuído a Deus, é necessário que seja eliminado da sua significação tudo o que pertence ao modo imperfeito próprio à criatura. Por onde, a ciência não é, em Deus, qualidade nem hábito, mas, substância e ato puro.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O que nas criaturas existe dividida e multiplicadamente existe em Deus reduzido à simplicidade e à unidade, como dissemos (q. 13 a. 4). Ora, no homem, à diversidade de objetos conhecidos corresponde a diversidade de conhecimentos. Assim, quando conhece os princípios, dizêmo-lo dotado de inteligência; de ciência, porém, quando conhece as conclusões; quando conhece a causa altíssima, dizêmo-lo dotado de sabedoria; e, por fim, de conselho ou prudência, quando conhece o que deve fazer. Deus, porém, conhece tudo o que acabamos de enumerar, por um conhecimento uno e simples, como a seguir se dirá (a. 7). Por onde o conhecimento simples de Deus pode receber, todas essas denominações supra referidas, mas, de modo que de cada uma delas, quando usada para a predicação divina, seja eliminado tudo o que há de imperfeição e seja conservado o que há de perfeito. E, neste sentido, diz a Escritura (Jó, 12, 13): A sabedoria e a fortaleza está em Deus; ele possui o conselho e a inteligência.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A ciência depende do modo de ser do sujeito que conhece; pois, o objeto conhecido está no sujeito conhecente ao modo deste. Por onde, sendo o modo de ser da divina essência mais elevado que o da criatura, a ciência divina não será como a da criatura, universal ou particular, habitual ou potencial, ou com qualquer disposição semelhante.

ART. II — SE DEUS SE CONHECE A SI MESMO


(I Cont. Gent., cap. XLVII; De Verit., q. 2, a. 2; Comp. Theol., cap. XXX; XII Metaph., lect. XI; De Causis, lect. XIII)

O segundo discute-se assim. parece que Deus não se conhece a si mesmo.

1. — Pois, como diz o livro De Causis: todo ser dotado de conhecimento, que conhece a sua própria essência, volta-se para ela de um modo perfeito. Ora, Deus não sai da sua própria essência, nem se move de modo nenhum e portanto, não lhe cabe voltar-se para a sua essência. Logo, não a conhece.

2. Demais. — Conhecer é de certo modo sofrer e ser movido, diz Aristóteles; a ciência é, por sua vez, um assimilar-se do espírito com a coisa conhecida; e por fim, o conhecido é a perfeição de quem conhece. Ora, nada se move, sofre ou se aperfeiçoa por si mesmo, nem é semelhante a si mesmo, como diz Hilário. Logo, Deus não se conhece a si mesmo.

3. Demais. — Principalmente pelo intelecto é que nós somos semelhantes a Deus, porque, por ele é que fomos feitos à imagem de Deus, como diz Agostinho. Ora, o nosso intelecto não se compreende a si mesmo senão conhecendo outras coisas, no dizer de Aristóteles. Logo, Deus não se conhece a si mesmo senão, talvez, conhecendo outros seres.

Mas, em contrário, diz a Escritura (1 Cor 2, 11): As coisas que são de Deus, ninguém as conhece, senão o espírito de Deus.

SOLUÇÃO. — Deus se conhece a si mesmo e por meio de si mesmo. Para evidenciá-lo devemos saber que, nas operações que produzem um efeito exterior, o objeto desta, que lhe é assinalado como termo, é algo de exterior ao agente; mas, nas operações imanentes ao sujeito mesmo que opera, o objeto que lhe é assinalado como termo está no próprio sujeito e, por isto, é que a operação se atualiza. Por isso diz o Filósofo, que o sensível em ato é idêntico ao sentido em ato, e o inteligível em ato, ao intelecto em ato. Pois, sentimos ou inteligimos alguma coisa em ato, porque o nosso intelecto ou o nosso sentido é informado pela espécie do sensível ou do inteligível. E, então, tanto o sentido como o intelecto diferem do sensível ou do inteligível, porque um e outro são potenciais.

Ora, não havendo em Deus nenhuma potencialidade, mas sendo ato puro, necessariamente nele há de o intelecto ser idêntico, sob todos os pontos de vista, ao inteligível. Por onde, nem carece de espécie inteligível, como o nosso intelecto quando intelige em potência; nem a espécie inteligível difere da substância do intelecto divino, como se dá com a nossa inteligência quando intelige em ato; mas, a espécie inteligível mesma é o próprio intelecto divino e, portanto, conhece-se a si mesmo por meio de si mesmo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Voltar-se para a sua própria essência não é senão o subsistir da coisa, em si mesma. Pois, a forma, aperfeiçoando a matéria a que dá o ser, como que se difunde, de certo modo, nela; mas, se tem o ser em si mesma, para si mesma se volta. Por onde, as potências cognoscitivas não subsistentes, mas que são atos de certos órgãos, não se conhecem a si mesmas, como cada um dos sentidos bem o demonstra. Pelo contrário, as potências cognoscitivas, por si mesmas subsistentes, a si mesmas se conhecem. E, por isso, diz o livro De causis, que todo ser dotado de conhecimento, que conhece a sua própria essência, volta-se para ela. Ora, ser subsistente por si mesmo convém, por excelência, a Deus. Por onde, conforme a este modo de falar, ele, mais que nenhum outro ser, volta-se para a sua própria essência e a si mesmo se conhece.

RESPOSTA À SEGUNDA. — As expressões — passividade e mutação — tomam-se equivocamente, no sentido em que consideramos o conhecimento como uma espécie de passividade e mutação, segundo diz Aristóteles. Pois, inteligir não é o movimento, ato do imperfeito, que procede de um sujeito e é recebido por outro; mas, o movimento, ato do perfeito, existente no próprio agente. Semelhantemente, quando dizemos que o intelecto é aperfeiçoado pelo inteligível ou com ele se assimila, entendemos que isso se dá com o intelecto que é, às vezes, potencial. Pois, por ser tal, é que difere do inteligível, com o qual se assimila, por meio da espécie inteligível — semelhança do objeto inteligido — que aperfeiçoa o intelecto, como o ato, a potência. Ora, o intelecto divino, que não é, de nenhum modo, potencial, não se aperfeiçoa pelo inteligível, nem com ele se assimila, mas é a sua própria perfeição e o seu próprio inteligível.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A matéria prima, que existe em potência, não tem o seu ser natural, senão quando atualizada pela forma. Ora, o nosso intelecto possível comporta-se, na ordem do inteligível, como a matéria prima, na ordem dos seres naturais; pois, é potencial em relação aos inteligíveis, como a matéria prima em relação aos seres naturais. Por onde, o nosso intelecto possível não pode exercer a operação inteligível, senão aperfeiçoado pela espécie inteligível de algum objeto. E, como se intelige a si mesmo, por meio da espécie inteligível, assim também, do mesmo modo intelige as demais coisas. Pois, é manifesto que, conhecendo o inteligível, intelige o seu próprio ato de conhecer e, por meio do ato, conhece a potência intelectiva. Ora, Deus é ato puro, tanto na ordem da existência como na dos inteligíveis; e, portanto conhece-se a si mesmo por meio de si mesmo.

ART. III — SE DEUS SE COMPREENDE A SI MESMO


(I Sent., dist. XLIII, q. 1, a. 1, ad 4; III, dist. XIV, a. 2, qa. 1; I Cont. Gent., cap. III; III, cap. LV; De Verit., q. 2, a. 2, ad 5; Compend. Theologiae, cap. CVI)

O terceiro discute-se assim. Parece que Deus não se compreende a si mesmo.

1. — Pois, como diz Agostinho, um ser que se compreende, é para si mesmo, finito. Ora, Deus é, de todos os modos, infinito. Logo, não se compreende a si mesmo.

2. — Nem colhe dizer que Deus é infinito para nós, mas, para si mesmo, finito. — Pois, o que é verdadeiro para Deus é mais verdadeiro do que o que para nós o é. Se, portanto, Deus é para si mesmo finito, mas para nós, infinito, mais verdadeiro é ser ele finito do que infinito, o que vai contra o já estabelecido (q. 7, a. 1). Logo, Deus não se compreende a si mesmo.

Mas, em contrário, diz Agostinho, no mesmo passo: Todo ser que a si mesmo se intelige, a si mesmo se compreende. Ora, Deus intelige-se a si mesmo. Logo, a si mesmo se compreende.

SOLUÇÃO. — Deus compreende-se perfeitamente a si mesmo, o que se demonstra do modo seguinte. Compreendemos uma coisa quando chegamos a ter dela um conhecimento total; e isto se dá quando conhecemos essa coisa tão perfeitamente quanto ela é cognoscível. Assim, uma proposição demonstrável é compreendida quando conhecida por demonstração, não, porém, quando conhecida por alguma razão provável. Ora, é manifesto que Deus se conhece a si mesmo tão perfeitamente quanto é cognoscível. Pois, um ser é cognoscível na medida em que é atual, porque conhecemos uma coisa, não enquanto potencial, mas, enquanto atual, como diz Aristóteles. Por onde, a faculdade cognoscitiva de Deus iguala à atualidade da sua existência, porque, enquanto atual, livre de toda a matéria e de toda potência é que Deus é suscetível de conhecimento, como já demonstramos (a. 1, 2). Logo, é. manifesto que se conhece a si mesmo na medida em que é cognoscível. E, por isso compreende-se perfeitamente a si mesmo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Compreender, em sentido próprio, significa ter e incluir em si alguma coisa; por onde, necessariamente, tudo o que é compreendido, como tudo o que é incluído, é finito. Ora, quando se diz que Deus se compreende a si mesmo, não se quer dizer que o seu intelecto seja algo diferente do seu ser, de modo que o apreenda e o inclua; mas, essa expressão deve ser entendida negativamente. Pois, assim como dizemos que Deus está em si mesmo, porque não é contido por nenhum ser exterior, assim dizemos que se compreende a si mesmo porque nada há do seu ser que lhe escape. E isto é o que leva Agostinho a afirmar, que uma coisa é totalmente apreendida pela vista, quando é percebida de tal modo que nenhuma parte dela escape a quem a vê.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Quando se diz que Deus é, para si mesmo, finito, isso se entende por semelhança de proporção. Pois, Deus não excede a capacidade do seu intelecto, assim como um ser finito não excede a capacidade de um intelecto finito. Mas, não dizemos que ele seja finito, para si mesmo, porque se compreenda como finito.

ART. IV — SE O INTELIGIR DE DEUS É A SUA PRÓPRIA SUBSTÂNCIA


(I Cont. Gent., cap. XLV; Comp. Theol., cap. XXXI; XXII Metaph., lect. XI)

O quarto discute-se assim. — Parece que o inteligir de Deus não é a sua própria substância.

1. — Pois, inteligir é uma operação. Ora, esta significa algo procedente do agente que opera. Logo, o inteligir de Deus não é a sua própria substância.

2. Demais. — Quando conhecemos pela reflexão o nosso ato de inteligir, não conhecemos nada de grande ou principal, mas algo de secundário e acessório. Ora, se Deus é o seu próprio inteligir, o seu ato de intelecção será como aquele pelo qual conhecemos, pela reflexão, o nosso ato de inteligir; e, assim, o inteligir de Deus não será de grande importância.

3. Demais. — Todo ato de inteligir consiste em inteligir alguma coisa. Ora, quando Deus se intelige a si mesmo, se não é diferente do seu ato de inteligir, intelige-se como inteligindo e como inteligindo que se intelige, e assim ao infinito. Logo, o inteligir de Deus não é a sua própria substância.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Para Deus, ser é ser sábio. Ora, ser sábio, é inteligir. Logo, para Deus, ser é inteligir. Ora, o ser de Deus é a sua própria substância, como já se disse (q. 3, a. 4). Logo, o inteligir de Deus é a sua própria substância.

SOLUÇÃO. — É necessário admitir que o inteligir de Deus é a sua própria substância. Pois, se fosse diferente dela, seria necessário, como diz o Filósofo, que a substância divina tivesse o seu ato e a sua perfeição em algo dela diferente; e, para isso estaria a divina substância, como a potência, para o ato; o que é absolutamente, impossível, pois, inteligir é a perfeição e o ato do ser que intelige. Por onde, para explicar a questão de que tratamos, devemos considerar o seguinte. Como já dissemos (a. 2), inteligir não é ato orientado para nada de exterior, mas, imanente no sujeito, como ato e perfeição do mesmo, porque o ser é a perfeição do que existe; pois, como o ser é consecutivo à forma, assim o inteligir é consecutivo à espécie inteligível. Ora, em Deus não há forma diferente do seu ser, como já dissemos (q. 3, a. 4). Por onde, como a sua essência mesma é também a espécie inteligível, conforme já dissemos (a. 2), segue-se necessariamente, que o seu ato mesmo de inteligir é a sua essência e o seu ser.

E assim é claro, por tudo o que precede, que, em Deus, o intelecto que intelige, o objeto da intelecção, a espécie inteligível e o ato mesmo de inteligir são, absolutamente, uma só e mesma realidade. Por onde, é manifesto que, dizer que Deus é inteligente não introduz na sua substância nenhuma multiplicidade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Inteligir não é uma operação transitiva para fora do agente, mas, nele imanente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Inteligir que inteligimos, quando se trata de um ato de intelecção não-subsistente, não é ato de grande importância; tal é o caso, quando inteligimos o nosso ato de intelecção, em que não há semelhança com o inteligir divino, que é subsistente.

DONDE SE DEDUZ CLARA A RESPOSTA À TERCEIRA OBJEÇÃO. — Pois, o inteligir de Deus, subsistente em si mesmo, é relativo a Deus mesmo, e não, a qualquer outro ser, de modo que houvesse processo ao infinito.

ART. V — SE DEUS CONHECE SERES DIFERENTES DE SI


(I Sent., dist. XXXV, a. 2; I Cont. Gent., cap. XLVIII, XLIX; De Verit., q. 2, a. 3; Comp. Theol., cap. XXX; XII Metaph., lect. XI; De Causis, sect. XIII)

O quinto discute-se assim. — Parece que Deus não conhece seres diferentes de si.

1. — Pois, tudo o que é diferente de Deus está fora dele. Ora, Agostinho diz que Deus não vê nada fora de si próprio. Logo, não conhece os seres diferentes de si.

2. Demais. — A inteligência é a perfeição do ser inteligente. Se, pois, Deus intelige seres de si diferentes, a sua perfeição ser-lhe-á algo de exterior e mais nobre que ele, o que é impossível.

3. Demais. — O ato mesmo de inteligir especifica-se pelo objeto inteligível, assim como todo ato se especifica pelo seu objeto. Por onde, a intelecção é tanto mais nobre, quanto mais nobre for o objeto inteligido. Ora, Deus é a sua própria intelecção, como do sobredito resulta (a. 4). Se, portanto, conhece causas diferentes do seu ser, é especificado por algo que lhe é exterior, o que é impossível. Logo, não intelige tais seres.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Heb 4, 13): Todas as coisas estão nuas e descobertas aos seus olhos.

SOLUÇÃO. — Deus conhece necessariamente seres de si diferentes. Pois, é manifesto que se intelige perfeitamente a si mesmo, do contrário, o seu ser, que é o seu inteligir, não seria perfeito. Ora, devemos conhecer perfeitamente a virtude da coisa que conhecemos perfeitamente. Mas, a virtude do que conhecemos não pode ser perfeitamente conhecida se não conhecermos até onde ela se estende. Ora, como a virtude divina, sendo a causa primeira eficiente dos seres, a eles se estende, como do sobredito resulta, Deus há necessariamente de conhecer seres dele diferentes. — E isto se torna ainda mais evidente, se acrescentarmos que o ser mesmo da causa agente primeira, i. é, Deus, é o seu inteligir. Por onde, todos os efeitos preexistentes em Deus, como na causa primeira, preexistem-lhe, necessariamente, na inteligência; e, portanto, todas as coisas nele existem sob uma forma inteligível, dado que tudo quanto existe em outro ser existe ao modo deste último.

Para sabermos, porém, de que modo Deus conhece os seres que lhe são diferentes, devemos considerar que uma coisa pode ser conhecida de duplo modo: em si mesma, e noutra coisa. Em si mesma, quando conhecida por uma espécie própria, a ela adequada; assim, quando os olhos vêem um homem sob forma humana. Noutra coisa, quando é vista pela espécie daquilo que a contém; assim, quando a parte é vista no todo, pela espécie deste; ou, quando um homem é visto num espelho pela imagem desse espelho; ou, por qualquer outro modo por que possamos ver uma coisa em outra. Por onde, devemos dizer que Deus se vê a si mesmo em si mesmo, porque vê pela sua essência. Os outros seres, porém, ele os vê, não neles, mas, em si mesmo, pois, a sua essência contém as semelhanças deles.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As palavras de Agostinho, dizendo que Deus nada vê fora de si mesmo, não devem ser entendidas como se significassem que Ele nada vê do que lhe é exterior, mas, que não vê as coisas exteriores, senão em si mesmo, como já dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A coisa inteligida é a perfeição do ser que intelige; não, certo, pela sua substância mesma mas, pela sua espécie, pela qual existe no intelecto como forma e perfeição deste; assim, não é uma pedra, mas a sua espécie, que está na alma, como diz Aristóteles. Ora, as coisas exteriores a Deus ele as intelige, porque a sua essência contém as espécies delas, como dissemos. Donde não se segue, que uma coisa seja a perfeição do intelecto divino e outra, a essência mesma de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O ato mesmo de inteligir não é especificado pelo que é inteligido em outro ser, mas, pelo objeto visto, principalmente, e no qual os outros se inteligem. Pois, a intelecção é especificada pelo seu objeto, na medida em que a forma inteligível é o princípio da operação intelectual. Porque toda operação se especifica pela forma que é o seu princípio; assim, a calefação, pelo calor. Por onde, a operação intelectual se especifica pela forma inteligível, que atualiza o intelecto. E esta é a espécie principal do intelecto, a qual, em Deus, não é senão a sua essência mesma, em que estão compreendidas todas as espécies das coisas. Por isso, não é necessário que o inteligir divino, ou antes, Deus mesmo, seja especificado por algo diferente da essência divina.

ART. VI — SE DEUS TEM DOS OUTROS SERES CONHECIMENTO PRÓPRIO


(I Sent., dist. XXXV, a. 3; I Cont. Gent., cap. I; De Pot., q. 6, a. 1; De Verit., q. 2, a. 4; De Causis, lect. X)

O sexto discute-se assim. — Parece que Deus não tem dos outros seres conhecimento próprio.

1. — Pois, como já se disse (a. 5), Deus conhece todas as coisas do modo pelo qual elas estão nele. Ora todas elas estão em Deus como na causa primeira comum e universal. Logo, todas são por ele conhecidas como pela causa primeira e universal. Ora, isto é conhecer em geral e não, por conhecimento próprio. Logo, Deus tem dos outros seres um conhecimento geral e não próprio.

2. Demais. — Quanto dista a essência da criatura, da essência divina, tanto esta dista daquela. Ora, pela essência da criatura não pode ser conhecida a essência divina, como já dissemos (q. 12, a. 2). Logo, também, pela essência divina, não pode ser conhecida a essência da criatura. E assim como Deus não conhece nada, senão pela sua essência, resulta que não conhece a essência, de modo a lhe apreender a quididade, o que é ter conhecimento próprio de uma coisa.

3. Demais. — Não é possível ter conhecimento próprio de uma coisa senão pela sua essência própria. Ora, como Deus conhece tudo pela sua essência, parece que não conhece a essência própria de cada coisa; porque uma mesma realidade não pode ser a essência própria de coisas múltiplas e diversas. Logo, Deus não tem um conhecimento próprio das coisas.

Mas, em contrário. — Ter conhecimento próprio das coisas é conhece-las, não só em geral, mas enquanto distintas umas das outras. Ora, é assim que Deus conhece as coisas, conforme a Escritura (Heb 4, 12): Ela penetra, a palavra de Deus, até o íntimo da alma e do espírito, também às juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura que esteja encoberta à sua presença.

SOLUÇÃO. — Certos erraram, dizendo que Deus não tem, das coisas, senão conhecimento geral, isto é, enquanto entes. Pois, assim como o fogo, se se conhecesse a si mesmo como princípio do calor, conheceria a natureza do calor, e todas as coisas como cálidas, assim Deus, conhecendo-se a si mesmo como princípio do ser, conhece a natureza do ser e todas as outras coisas, enquanto seres.

Mas, isto não é admissível; pois, inteligir uma coisa em geral e não, em particular, é inteligí-la imperfeitamente. Por onde, o nosso intelecto, quando passa da potência para o ato, antes de ter das coisas conhecimento próprio, tem conhecimento universal e confuso, como procedendo do imperfeito para o perfeito, segundo diz Aristóteles. Por onde, se Deus tivesse dos seres apenas conhecimento geral e não, especial, seguir-se-ia que o seu inteligir não seria absolutamente perfeito, e, por conseqüência, nem o seu ser; ora, isto vai contra o já demonstrado (q. 4, a. 1).

Logo, devemos dizer, que Deus tem das coisas conhecimento próprio, não só por terem elas a comunidade do ser, mas, enquanto distintas umas das outras. E, para evidenciá-lo, devemos considerar, que certos, querendo demonstrar que Deus conhece muitas coisas, usam de exemplos como os seguintes: se um centro se conhecesse a si mesmo conheceria todas as linhas que dele partem; ou se a luz a si mesma se conhecesse, conheceria todas as cores.

Mas, estes exemplos, embora tenham certa semelhança, a saber, quanto à causalidade universal, não colhem, se considerarmos que a multidão e a diversidade não são causadas pelo princípio universal uno, quanto ao que é princípio de distinção, mas só quanto àquilo pelo que elas têm de comum entre si. Assim, a diversidade das cores não é causada só pela luz, mas pelas disposições diversas do meio diáfano que a recebe; e, semelhantemente, a diversidade das linhas é causada pela diversidade das situações. E daqui vem que a diversidade e a multidão, de que se trata, não podem ser conhecidas no princípio delas, por conhecimento próprio, mas, só em geral.

Mas, com Deus tal não se dá; pois, como já demonstramos (q. 4, a. 2), tudo o que de perfeição existe em qualquer criatura, preexiste e está contido totalmente nele, de modo excelente. Ora, não é só o que as criaturas têm de comum — o ser — que pertence à perfeição delas, mas também o pelo que se distinguem umas às outras, como, viver, inteligir, e outros caracteres pelos quais os seres vivos se distinguem dos não-vivos, e os inteligentes dos não-inteligentes. Demais, toda forma pela qual uma coisa é constituída na sua espécie própria é uma certa perfeição. Por onde, todas as coisas preexistem em Deus, não só pelo que é comum a todas, mas também no pelo que se distinguem.

Assim, pois, contendo Deus em si todas as perfeições, a sua essência está para a essência de todas as coisas, não como o comum está para o próprio, ou a unidade para os números, ou o centro para as linhas, mas, como o ato perfeito, para os atos imperfeitos; como se, p. ex., disséssemos que o homem está para o animal, ou o senário, que é número perfeito, para os números imperfeitos, que ele contém. Ora, é manifesto que, pelo ato perfeito, podem ser conhecidos os atos imperfeitos, não só em geral, mas também por conhecimento próprio; assim, quem conhece o homem tem do animal conhecimento próprio; e quem conhece o número senário, tem do ternário conhecimento próprio.

Por onde, encerrando a essência de Deus, em si, todas as perfeições que tem a essência de qualquer ser, e ainda mais, Deus em si mesmo pode ter de todas as coisas conhecimento próprio. Ora, a natureza própria de cada coisa consiste em, de algum modo, participar da perfeição divina. Logo, Deus não se conheceria perfeitamente a si mesmo, se não conhecesse todos os modos pelos quais a sua perfeição é suscetível de ser participada pelos outros seres. E, também não conheceria perfeitamente a natureza mesma do ser, se não conhecesse todos os modos de ser. E, portanto, é manifesto que Deus tem, de todas as coisas, conhecimento próprio, enquanto que cada uma se distingue das outras.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O conhecimento de uma coisa como ela está no sujeito conhecente, podemos compreendê-lo de duas maneiras. — De uma, o advérbio como implica o modo de conhecer relativamente à coisa conhecida, e, então, o sentido é falso. Pois, nem sempre o sujeito conhece o objeto conforme o ser que este tem naquele; assim os olhos não conhecem uma pedra, conforme o ser que esta tem neles; mas, pela espécie da pedra, que eles têm em si, é que os olhos conhecem a pedra, conforme o ser dela, em si mesma, fora dos olhos. O sujeito, pois, que conhece um objeto, conforme o ser que este tem, nele, não deixa, por isso, de conhecê-lo conforme o ser do objeto em si mesmo, fora do sujeito. Assim o intelecto conhece a pedra, conforme o ser inteligível, que esta tem nele, enquanto o sujeito sabe que conhece; mas, nem por isso, deixa de conhecer o ser que a pedra tem na sua natureza própria.

Se, porém, entendemos que o advérbio como implica o modo pelo qual o sujeito conhece, então, é verdade que só o sujeito conhece o objeto do modo pelo qual este nele está; pois, quanto mais perfeitamente o objeto está no sujeito, tanto mais perfeito é o modo de conhecer. Por onde, devemos dizer, que Deus, não somente conhece que as coisas nele estão, mas também, porque em si as contém, conhece-lhes a natureza própria delas, e tanto mais perfeitamente, quanto mais perfeitamente cada uma nele estiver.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A essência da criatura está para a essência de Deus, como o ato imperfeito, para o perfeito. Por onde, a essência da criatura não conduz suficientemente ao conhecimento da essência divina, mas, inversamente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Uma mesma realidade não pode ser considerada como a expressão adequada da essência de coisas diversas. Ora, a essência divina excede todas as criaturas. Por onde, pode ser considerada como a expressão própria de cada coisa, enquanto susceptível de ser diversamente participada ou imitada pelas diversas criaturas.

ART. VII — SE A CIÊNCIA DE DEUS É DISCURSIVA


(Infra, q. 85, a. 5; I Cont. Gent., cap. LV, LVII; De Verit., q. 2, a. 1, ad 4, 5; a. 3, ad 3; a. 13; Compend. Theol., cap. XXIX; in Iob., cap. XII, lect. II)

O sétimo discute-se assim. — Parece que a ciência de Deus é discursiva.

1 — Pois, a ciência de Deus não é habitual, mas, um conhecimento atual. Ora, segundo o Filósofo, podemos saber habitualmente muitas coisas ao mesmo tempo; mas conhecer em ato, uma de cada vez. Logo, como Deus conhece muitas coisas, pois que se conhece a si mesmo e a seres diferentes de si, segundo se demonstrou (a. 2, 5), resulta que não conhece a todas simultaneamente, mas discorre de uma para outra.

2. Demais. — Conhecer os efeitos pela causa é ciência discursiva. Ora, Deus conhece os outros seres por si mesmo, como o efeito, pela causa. Logo, o seu conhecimento é discursivo.

3. Demais. — Deus conhece cada criatura mais perfeitamente do que nós. Ora, nós, pelas causas criadas lhes conhecemos os efeitos, e assim, discorremos das causas para os causados. Logo, o mesmo se dá com Deus.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Deus não vê tudo particular ou separadamente como por um conceito, alternando, daqui para ali e dali para aqui; mas, vê todas as coisas simultâneamente.

SOLUÇÃO. — Na ciência divina não há nenhum discurso, o que assim se demonstra. Na ciência humana há duplo discorrer: um sucessivo, como quando, depois de conhecermos alguma coisa em ato; passamos a conhecer outra coisa. Outro, causal, quando, pelos princípios, chegamos ao conhecimento das conclusões. — Ora, o primeiro modo de discorrer não pode convir a Deus. Pois, se considerarmos, de per si, muitas das coisas que conhecemos sucessivamente, conheceremos a todas simultaneamente se as conhecermos numa terceira; p. ex. se conhecemos as partes no todo, ou se vemos no espelho diversas coisas. Ora, Deus vê todas as coisas num só Ser, que é ele próprio, como já se demonstrou (a. 5).

Logo, as vê todas simultânea e não, sucessivamente. Também o segundo modo de discorrer não pode convir a Deus. Primeiro, porque este segundo modo pressupõe o primeiro; pois, os que procedem dos princípios para as conclusões não consideram a ambos simultaneamente. Em segundo lugar, porque tal modo é o de quem procede do conhecido para o desconhecido. Donde é manifesto, que quando o primeiro é conhecido, ainda o segundo é ignorado, e, assim, o segundo não é conhecido no primeiro, mas pelo primeiro. E o termo do discurso é quando o segundo é visto no primeiro, resolvidos os efeitos nas causas, cessando, então, o discurso. Logo, Deus, vendo os seus efeitos em si mesmo, como na causa, o seu conhecimento não é discursivo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora conhecer seja, em si mesmo, um ato único, contudo, podemos conhecer muitas cousas numa só, como dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus não conhece efeitos desconhecidos pela causa como que primeiramente conhecida; mas os conhece na causa. Logo, o seu conhecimento não é discursivo, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Certamente Deus, muito melhor que nós, vê os efeitos das coisas criadas, nas próprias causas; não, porém, que o conhecimento dos efeitos nele seja causado pelo conhecimento das coisas criadas, como em nós. Logo, a sua ciência não é discursiva.

ART. VIII — SE A CIÊNCIA DE DEUS É CAUSA DAS COISAS


(I Sent., dist. XXXVIII, art. 1; De Verit., q. 2, art. 14)

O oitavo discute-se assim. — Parece que a ciência de Deus não é a causa das coisas.

1. — Pois, Orígenes diz: Não é porque Deus sabe, que alguma coisa será, que ela há-de ser; mas, porque há-de ser, é que é conhecida por Deus antes que seja.

2. Demais. — Posta a causa, é posto o efeito. Ora, a ciência de Deus é eterna. Se, pois, a ciência de Deus é a causa das coisas criadas, parece que as criaturas existem abeterno.

3. Demais. — O cognoscível é anterior à ciência; e é a medida dela, como diz Aristóteles. Ora, o que é posterior e medido não pode ser causa. Logo, á ciência de Deus não é a causa das coisas.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Todas as criaturas espirituais e corpóreas, não porque existem, Deus as conhece, mas, antes existem porque ele as conhece.

SOLUÇÃO. — A ciência de Deus é a causa das coisas. Pois, a sua ciência está para todas as coisas criadas, assim como a ciência do artífice, para as coisas artificiadas. Ora, a ciência do artífice é a causa dos artificiados, porque o artífice obra pelo seu intelecto. Donde, é necessário que a forma do intelecto seja o princípio da operação, como o calor, da calefação. Mas, devemos considerar que a forma natural, enquanto imanente na coisa à qual dá o ser, não designa um princípio de ação, mas, o princípio pelo qual tem inclinação para o efeito. Semelhantemente, a forma inteligível não designa um princípio de ação enquanto existe somente no ser inteligente, se não se lhe acrescenta uma inclinação para o efeito, o que se realiza pela vontade.

Como, porém, a forma inteligível se reporta a realidades contrárias, objetos de uma mesma ciência, ela não produziria um efeito determinado, se não fosse a tal efeito determinada pelo apetite, como diz Aristóteles. Ora, é manifesto que Deus, pela sua inteligência, causa as coisas, pois, o seu ser é a sua ciência; donde, é necessário seja esta a causa das coisas, enquanto junta com a vontade. Por isso, a ciência de Deus, enquanto causa das coisas, costuma chamar-se ciência de aprovação.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO — Orígenes exprimiu-se atendendo à noção da ciência, com a qual não convém a noção da causalidade, senão com a vontade adjunta, como se disse. Mas, quando diz que Deus tem presciência de alguns seres, porque hão-de existir, isso se deve entender relativamente à causa de conseqüência e não, de ser. Donde se segue, que se alguns seres hão-de existir, Deus tem deles presciência; contudo, não são os seres futuros a causa de Deus conhecê-los.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A ciência de Deus é a causa das coisas, enquanto elas são objeto da sua ciência. Ora, não está na ciência de Deus que as coisas existissem abeterno. Donde, embora a ciência de Deus seja eterna, não se segue que abeterno sejam as criaturas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os seres naturais são meio termo entre a ciência de Deus e a nossa. Pois, nós derivamos o nosso conhecimento das coisas naturais, das quais Deus é a causa, pela sua ciência. Por onde, assim como os cognoscíveis naturais são anteriores à nossa ciência e são dela a medida, assim, a ciência de Deus é-lhes anterior e é deles a medida. Do mesmo modo, uma casa é meio termo entre a ciência do artífice, que a fez, e a de quem a conhece já feita.

ART. IX — SE DEUS TEM CIÊNCIA DO NÃO-SER


(I Sent., dist. XXXVIII, a. 4; III, dist. XIV, art. 2, q. 2; I Cont. Gent., cap. LXVI; De Verit., q. 2, art. 8)

O nono discute-se assim. — Parece que Deus não tem ciência do não-ser.

1. — Pois, Deus não tem ciência senão da verdade. Ora, o ser e a verdade convertem-se. Logo, Deus não tem ciência do não-ser.

2. Demais. — A ciência exige semelhança entre o ciente e o sabido. Ora, o que não existe não pode ter nenhuma semelhança com Deus, que é o ser mesmo. Logo, o que não existe, não pode ser conhecido por Deus.

3. Demais. — A ciência de Deus é a causa do que ele conhece. Ora, não há causa do não-ser porque o não-ser não tem causa. Logo, Deus não tem ciência do que não existe.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 4, 17): O qual chama as coisas que não são como as que são.

SOLUÇÃO. — Deus conhece todas as coisas de qualquer modo que existam. Pois, nada impede aquelas coisas, que absolutamente não existem, virem de algum modo, a existir. Ora, existem, absolutamente falando, as coisas existentes em ato; e as que não existem em ato existem em potência, em relação ou a Deus mesmo, ou, à criatura. Em potência ativa ou passiva; ou, em potência de opinar, de imaginar, ou de qualquer outro, modo de significar. Ora, tudo o que pode a criatura fazer, pensar ou dizer, e também tudo o que, Deus mesmo pode fazer, ele o conhece, ainda que não exista em ato. Logo, pode dizer-se, que tem ciência, mesmo do não-ser; Mas, há uma certa diversidade a que devemos atender, nas coisas não existentes em ato. Pois, certas, embora não existam atualmente, contudo, existiram ou hão de existir; e de todas essas se diz que Deus as conhece pela ciência de visão.

Porque, medindo-se o conhecimento de Deus, que é o seu ser, pela eternidade que, existindo sem sucessão, compreende a totalidade dos tempos, a intuição presente de Deus abarca essa totalidade temporal e todas as coisas existentes em qualquer tempo, como seres que lhe estão presentes. Há outras coisas, porém, que estão no poder de Deus, ou da criatura, e que, contudo, nem existem, nem existirão, nem existiram e, em relação a essas, não se diz que Deus tem a ciência de visão, mas, a de simples inteligência. E assim dizemos, porque as coisas, que vemos, têm um ser distinto, fora de nós.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O que não existe em ato, mas, em potência, tem, nessa mesma medida, a verdade; pois é verdadeiro que existe em potência, e desse modo é conhecido de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus, sendo seu próprio ser, cada ser é, na medida em que participa da semelhança de Deus, como cada ser é cálido, na medida em que participa do calor. E assim, as coisas existentes em potência, embora não existam em ato, são conhecidas por Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A ciência de Deus é causa das coisas, juntamente com a vontade. Por onde, não é necessário, que tudo o que Deus sabe, seja, ou fosse, ou haja de ser, mas, somente, aquilo que ele quer que seja ou permitir que seja. E, logo, não está na ciência de Deus que isso seja, mas que possa ser.

ART. X — SE DEUS CONHECE O MAL


(I Sent., dist. XXXVI, q. 1, a. 2; I Cont. Gent., cap. LXXI; De Verit., q. 2, a. 15, Quodl., XI, q. 2)

O décimo discute-se assim. — Parece que Deus não conhece o mal.

1. — Pois, diz o Filósofo, que o intelecto, que não está em potência, não conhece a privação. Ora, o mal é a privação do bem, como diz Agostinho. Logo, como a inteligência de Deus nunca está em potência, mas, sempre em ato, como do sobredito se colhe (a. 2), conclui-se que Deus não conhece o mal.

2. Demais. — Toda ciência, ou é causa do que é sabido, ou é por este causada. Ora, a ciência de Deus não é causa do mal, nem pelo mal é causada. Logo, Deus não tem ciência do mal.

3. Demais. — Tudo o que é conhecido o é, ou por semelhança, ou por oposição. Ora, tudo o que Deus conhece o conhece pela sua ciência, como resulta do já dito (a. 2, 5). Mas, a essência divina nem é semelhança do mal, nem o mal se lhe opõe; pois, nada é contrário à essência divina, como diz Agostinho. Logo, Deus não conhece o mal.

4. Demais. — O conhecido por meio de outra coisa, e não, por si mesmo, é conhecido imperfeitamente. Ora, o mal não é conhecido de Deus em si mesmo, porque, então haveria de estar em Deus; pois, necessariamente o conhecido está no conhecente. Logo, o mal, sendo conhecido por outra coisa, i. é, pelo bem, é conhecido imperfeitamente, o que é impossível, porque nenhum conhecimento de Deus é imperfeito. Logo, Deus não tem ciência do mal.

Mas, em contrário, a Escritura (Pr 15, 11): O inferno e a perdição estão diante do Senhor.

SOLUÇÃO. — Quem quer que conheça alguma coisa perfeitamente deve conhecer tudo o que lhe diga respeito. Ora, há certas coisas boas, que podem ser corrompidas pelo mal. Logo, Deus não as conheceria perfeitamente se também não conhecesse o mal. Pois, um ser é cognoscível na medida em que é; e, sendo a essência do mal a privação do bem, pelo mesmo conhecer Deus o bem, conhece também o mal, como pela luz se conhecem as trevas. Por isso, diz Dionísio: Deus por si mesmo tem a visão das trevas, não as vendo senão pela luz.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Devemos entender a expressão do Filósofo do seguinte modo. O intelecto, que não está em potência, não conhece a privação, pela privação em si existente; e isso concorda com o que dissera antes, que o ponto, e todo indivisível é conhecido pela privação da divisão. E tal se dá porque as formas simples e indivisíveis não existem em ato na nossa inteligência, mas, somente em potência; pois, se existissem em ato em nossa inteligência, não seriam conhecidas pela privação. E é assim que os seres simples são conhecidos pelas substâncias separadas. Deus, portanto não conhece o mal por uma privação nele existente, mas pelo bem oposto.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A ciência de Deus não é a causa do mal, mas é a do bem, pelo qual é conhecido o mal.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora o mal não se oponha à essência divina, que não é corruptível por ele, opõe-se, contudo, aos efeitos de Deus, que Deus conhece pela sua essência e, conhecendo-os, conhece os males opostos.

RESPOSTA À QUARTA. — Conhecer uma coisa somente por meio de outra é um conhecimento imperfeito, se essa coisa for cognoscível em si mesma. Ora, o mal não é cognoscível em si mesmo, porque é, por essência, privação do bem; e, assim, não pode ser definido nem conhecido a não ser pelo bem.

ART. XI — SE DEUS CONHECE O SINGULAR


(I Sent., dist. XXXVI, q. 1, a. 1; II, dist. III, q. 2, a. 3; I Cont. Gent., cap. L, LXIII, LXV; Qu. Disp. De Anima, a. 20; De Verit., q. 2, a. 5; Compend. Theol., cap. XXXXIII; I Periherm., lect. XIV)

O undécimo discute-se assim. — Parece que Deus não conhece o singular.

1. — Pois, o intelecto divino é mais imaterial do que o intelecto humano. Ora, o intelecto humano, por causa da sua imaterialidade, não conhece os seres singulares. Porque, como diz Aristóteles, a razão atinge o universal, e os sentidos, o particular. Logo, Deus não conhece o singular.

2. Demais. — Só conhecem o singular as nossas potências que recebem as espécies não separadas das condições materiais. Ora, em Deus, as coisas são, em sumo grau, separadas de toda a materialidade. Logo, ele não conhece o singular.

3. Demais. — Todo o conhecimento se realiza por alguma semelhança. Ora, a semelhança do singular, como tal, parece não estar em Deus; porque o princípio da singularidade é a matéria, que, como ser puramente potencial, é por completo dissemelhante de Deus, ato puro. Logo, Deus não pode conhecer o singular.

Mas, em contrário, a Escritura (Pr 16, 2): Todos os caminhos dos homens estão patentes aos seus olhos.

SOLUÇÃO. — Deus conhece o singular. Pois, todas as perfeições, que se encontram nas criaturas, preexistem em Deus de maneira eminente, como do sobredito resulta (q. 4, a. 2). Ora, de conhecer o singular é capaz a nossa perfeição. Logo, necessariamente, Deus há de conhecê-lo também. Pois, o Filósofo considera inconveniente que alguma coisa seja conhecida de nós e o não seja de Deus; e daí, argumentando contra Empédocles, conclui que Deus seria insipientíssimo se ignorasse a discórdia. Ora, as perfeições existentes, divididas nos seres inferiores, existem em Deus, unida e simplesmente. Por onde, embora nós conheçamos, por uma faculdade, os seres universais e imateriais e, por outra, os singulares e materiais, Deus, pela sua simples inteligência, conhece a ambos.

Alguns, entretanto, querendo explicar como isso pode ser, disseram, que Deus conhece o singular, por causas universais. Pois, nada há em qualquer ser singular, que não seja originado de alguma causa universal. E põem para exemplo: um astrólogo que conhecesse todos os movimentos universais do céu, poderia pré-anunciar todos os eclipses futuros. — Mas, isto não basta; porque os seres singulares participam, pelas causas universais, de certas formas e virtudes que, embora unidas entre si, não se individuam senão pela matéria individual. Por isso, quem conhecesse Sócrates, como branco, ou filho de Sofrónisco, ou qualquer outra modalidade, como essas, não o conheceria como um determinado homem. Donde, do referido modo, Deus não conheceria os seres singulares, na singularidade deles.

Outros, porém, disseram, que Deus conhece os seres singulares aplicando causas universais a efeitos singulares. — Mas, não é tal, porque ninguém pode aplicar uma coisa à outra, sem ter conhecimento prévio da primeira. — Logo, a referida aplicação não pode ser a razão de conhecer os seres particulares, mas, pressupõe o conhecimento destes.

E, portanto devemos dizer, diferentemente, que, sendo Deus a causa das coisas, pela sua ciência, como estabelecemos, a tanto se estende esta, a quanto se estende a sua causalidade. Portanto, a virtude ativa de Deus, estendendo-se não somente às formas, das quais deriva a noção universal, mas também, até à matéria, como se mostrará em seguida (q. 44, a. 2), é necessário, que a ciência de Deus se estenda até aos seres singulares, individuados pela matéria. Pois, Deus, conhecendo, pela sua essência, os seres diferentes de si, enquanto ela é semelhança das coisas, ou princípio ativo delas, necessariamente a sua essência será o princípio suficiente de conhecer tudo o que faz, não somente em universal, mas também, singularmente. E o mesmo se daria com a ciência do artífice, se fosse produtiva da coisa total e não, da forma somente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A nossa inteligência abstrai a espécie inteligível dos princípios individuantes. Por isso, a espécie inteligível do nosso intelecto não pode ser semelhança dos princípios individuais, e por isso não conhece os seres singulares. Mas, a espécie inteligível do intelecto divino, que é a essência de Deus, não é imaterial, por abstração, mas, por si mesma; e existe como princípio de todos os princípios, que entram na composição dos seres, quer sejam princípios da espécie, quer do indivíduo. E assim, por ela, Deus conhece, não somente o universal, mas também o singular.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora a espécie do intelecto divino, na sua essência mesma, não esteja sujeita a condições materiais, como as espécies recebidas pela imaginação e pelos sentidos, contudo, pela sua Virtude, estende-se aos seres materiais e imateriais, como foi dito.

RESPOSTA À TERCEIRA — A matéria, embora se afaste da semelhança com Deus, pela sua potencialidade, contudo, enquanto tem o ser potencial, conserva uma certa semelhança com o ser divino.

ART. XII — SE DEUS PODE CONHECER INFINITOS SERES


(Sent., dist. XXXIX, q. 1, a. 3; I Cont. Gent., cap. LXIX; De Verit., q. 2, a. 9; q. 20, a. 4, ad 1; Quodl., III, q. 2, a. 1; Compend. Theol., cap. XXXIII)

O duodécimo discute-se assim. — Parece que Deus não pode conhecer infinitos seres.

1. — Pois, o infinito, como tal é desconhecido porque o infinito é aquilo além do que podemos sempre continuar a tomar algo de novo quantitativamente, como diz Aristóteles. E Agostinho também diz, que tudo o que é compreendido pela ciência é limitado pela compreensão do ciente. Ora, o infinito não pode ser limitado. Logo, não pode ser compreendido pela ciência de Deus.

2. Demais. — Se se disser que o infinito, em si mesmo, é finito para a ciência de Deus, objeta-se em contrário: é da essência do infinito ser intransponível, como diz Aristóteles. Ora, o infinito não pode ser percorrido, nem pelo finito, nem pelo infinito, como ainda o prova Aristóteles. Logo, o infinito não pode ser finito para o finito, nem para o infinito; e portanto o infinito não é finito para a ciência de Deus, que é infinita.

3. Demais. — A ciência de Deus é a medida das coisas conhecidas. Ora, é contra a essência do infinito ser medido. Logo, o infinito não pode ser conhecido de Deus.

Mas, em contrário, diz Agostinho: embora não haja nenhum número de números infinitos, contudo, não é incompreensível àquele cuja ciência não tem número.

SOLUÇÃO. — Deus conhece não só o ato, mas também o que está no seu poder ou no da criatura, como já demonstramos (a. 9). Ora, como isso é infinito, devemos concluir que Deus conhece o infinito.

E embora a ciência da visão, cujo objeto são somente as coisas que existem, existirão, ou existiram, não conheça, como alguns dizem, o infinito, — pois, não supomos o mundo abeterno, nem que a geração e o movimento hão de permanecer eternamente, para que os indivíduos se multipliquem ao infinito — contudo, uma consideração mais diligente nos levará necessariamente a dizer que Deus conhece o infinito, mesmo pela ciência de visão. Pois, Deus conhece também as cogitações e as afeições dos corações, que se multiplicarão ao infinito, se permanecerem sem fim as criaturas racionais.

E isto é assim, porque o conhecimento de qualquer sujeito se estende conforme o modo da forma, que é o princípio do conhecimento. Pois, a espécie sensível, que está no sentido, tem semelhança de um só indivíduo, e, portanto, por ela, pode ser conhecido só um indivíduo. Porém a espécie inteligível do nosso intelecto é semelhante da coisa, na sua natureza específica, participável por infinitos seres particulares. Por onde, o nosso intelecto, pela espécie inteligível do homem, conhece, de certo modo, infinitos homens; não, enquanto se distinguem uns dos outros, mas enquanto comunicam pela natureza específica.

E isto, porque a espécie inteligível do nosso intelecto não tem semelhança dos homens, quanto aos princípios individuais, mas somente quanto aos princípios específicos. Ora, a essência divina pela qual o intelecto divino intelige, tem semelhança suficiente de todas as coisas, que existem, ou podem existir, não somente quanto aos princípios comuns, mas também quanto aos próprios, de cada ser, como já se demonstrou. Donde se segue, que a ciência de Deus se estende a seres infinitos, mesmo enquanto distintos uns dos outros.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O infinito é relativo à quantidade, segundo o Filósofo. Ora, é da essência da quantidade conter partes ordenadas. Portanto, conhecer o infinito, como tal, é conhecer uma parte após outra. Ora, assim, de nenhum modo pode ser conhecido o infinito, porque, por maior quantidade das partes, que se suponha, sempre é possível acrescentar mais uma. Ora, Deus não conhece o infinito, como enumerando-lhe parte por parte, pois, conhece todas as coisas, simultaneamente, sem sucessão, como já dissemos (a. 7). Por isso, nada o impede de conhecer o infinito.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A transição importa numa certa sucessão de partes; donde vem, que o infinito não pode ser percorrido, nem pelo finito nem pelo infinito. Mas, para haver compreensão, basta a adequação, pois dizemos que uma coisa é compreendida, quando nada dela foge à nossa compreensão. Donde, não é contra a noção do infinito o ser compreendido pelo infinito. E, assim, o infinito, em si mesmo, pode ser considerado finito, para a ciência de Deus, como compreendido, não, porém, como transponível.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A ciência de Deus é a medida das coisas; não, quantitativa, pois, o infinito carece de tal medida, mas porque mede a essência e a verdade delas. Pois, cada ser tem a verdade, na sua natureza, na medida em que imita a ciência de Deus, como o artificiado, enquanto concorda com a arte. Dado, porém, que existissem alguns seres numericamente infinitos, em ato — p. ex., homens infinitos; ou segundo a quantidade contínua, como se o ar fosse infinito, conforme alguns antigos disseram, contudo, é manifesto que teriam o ser determinado e finito, porque a essência deles seria limitada a algumas naturezas determinadas. Donde, seriam mensuráveis pela ciência de Deus.

ART. XIII — SE DEUS TEM CIÊNCIA DOS FUTUROS CONTINGENTES


(Infra, q. 86, a. 4; I Sent., dist. XXXVIII, a. 5; I Cont. Gent., cap. LXVII; De Verit., q. 2, a. 12; De Malo, q. 16 a. 7; Quodl., XI, q. 3; Opusc., II, Contra Graecos, Armênios, etc., cap. X; Compend. Theol., cap. CXXXIII; I Periherm., lect. XIV)

O décimo terceiro discute-se assim. Parece que Deus não tem ciência dos futuros contingentes.

1. — Pois, de causa necessária procede efeito necessário. Ora, a ciência de Deus é causa das coisas conhecidas, como se disse (a. 8). Mas, sendo necessária, também será o que sabe, necessário. Logo, Deus não tem ciência do contingente.

2. Demais. — De toda condicional, cujo antecedente é absolutamente necessário, o conseqüente também o é; pois, o antecedente está para o conseqüente, como os princípios, para a conclusão. Ora, de princípios necessários não resulta senão conclusão necessária, como o prova Aristóteles. Mas, a seguinte proposição é uma condicional verdadeira: se Deus sabe que um contingente existirá, ele há de existir. Porque a ciência de Deus não tem por objeto senão a verdade. Ora, o antecedente desta condicional é absolutamente necessário, tanto por ser eterno, como por ser expresso no pretérito. Logo, também o conseqüente é absolutamente necessário. Portanto, tudo o que é sabido por Deus é necessário; e, assim, ele não tem ciência dos contingentes.

3. Demais. — Necessariamente, tudo o que é sabido por Deus, existe, porque também tudo o que nós sabemos ser necessário existe; pois, a ciência de Deus é mais certa que a nossa. Ora, não existe necessariamente nenhum futuro contingente. Logo, nenhum futuro contingente é conhecido de Deus.

Mas, em contrário, diz o salmista (Sl 32, 15): Deus, que formou o coração de cada um deles, entende todas suas obras, i. é, dos homens. Ora, as obras dos homens, estando sujeitas ao livre arbítrio, são contingentes. Logo, Deus conhece os futuros contingentes.

SOLUÇÃO. — Como já demonstramos (a. 9), Deus sabe, não somente tudo o que existe, em ato, mas também tudo o que está no seu poder ou no da criatura. Ora, como destas coisas umas são, para nós, futuros contingentes, segue-se que Deus conhece esses futuros. Para evidenciá-lo, devemos ponderar, que qualquer contingente pode ser considerado à dupla luz. Primeiro, em si mesmo, enquanto já atual. E, então, não é tido como futuro, mas, como presente; nem como contingente, em relação a qualquer de duas atualizações, mas, como determinado por uma. Por isso, pode ser infalivelmente objeto de um conhecimento certo, por ex., do sentido da vista, como quando vejo Sócrates sentar-se. De outro modo, pode ser considerado o contingente como existe na sua causa, e, então, é tido como futuro e como contingente ainda não determinado por uma atualização; porque, a causa contingente, podendo tender para termos opostos, o contingente não é objeto de nenhum conhecimento.

Por onde, quem conhece o efeito contingente, somente na sua causa, tem dele conhecimento apenas conjetural. Ora, Deus conhece todos os contingentes, não só enquanto existentes nas suas causas, mas também enquanto cada um deles existe em si mesmo. Embora, porém, os contingentes se atualizem sucessivamente, Deus não os conhece, como nós, sucessivamente, tais como são, mas simultaneamente. Porque o seu conhecimento, como o seu ser, mede-se pela eternidade; e a eternidade, existindo toda simultaneamente, abrange o tempo todo, como já dissemos (q. 10, a. 2, ad 4). Donde, tudo o que existe no tempo é abeterno presente a Deus; não somente porque ele encerra as razões das coisas, para si presentes, como alguns dizem, mas, porque a sua intuição projeta-se abeterno sobre tudo, enquanto existente na sua presencialidade. Por onde, é manifesto que os contingentes infalivelmente são conhecidos por Deus, enquanto objetos do divino olhar, que os tem como na sua presença. E, contudo, são futuros contingentes, referidos às suas causas próximas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora a causa suprema seja necessária, contudo, o seu efeito pode ser contingente, em virtude da causa próxima contingente. Assim, a germinação da planta é contingente, pela causa próxima, embora o movimento do sol, que é a causa primeira, seja necessária. Semelhantemente, o que Deus sabe é contingente, pelas causas próximas, embora a ciência de Deus, que é a causa primeira seja necessária.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Uns dizem que o antecedente — Deus soube que um determinado contingente há de existir — não é necessário, mas, contingente; pois, embora pretérito, diz respeito ao futuro. — Mas, isso não lhe tira a necessidade, porque aquilo que dizia respeito ao futuro, necessariamente o disse, embora, às vezes, o futuro não se realize.

Outros, porém, dizem, que esse antecedente é contingente, por ser composto de necessário, e de contingente, como é contingente a afirmação — Sócrates é um homem branco. — Mas, também isto não é verdade, porque quando dizemos — Deus soube que um determinado contingente há de existir — contingente é posto, aí, como objeto do verbo, e não, como parte principal da proposição. Portanto, a sua contingência ou a sua necessidade em nada influem para a proposição ser necessária ou contingente, verdadeira ou falsa. Pois, tanto pode ser verdade ter eu dito que o homem é asno, como, que Sócrates corre, ou Deus existe; a mesma sendo a essência do necessário e a do contingente.

Portanto, devemos concluir, que o antecedente é absolutamente necessário. Mas daí não resulta, como querem alguns, que o consequente também, o seja, por ser o antecedente a causa remota dele, o qual, pela sua causa próxima é contingente. — Pois, tal não é verdade, porque então seria falsa a condicional, cujo antecedente fosse causa remota necessária, e cujo consequente, um efeito contingente; como, p. ex., se eu dissesse: se o sol se move, a erva germinará.

E, portanto, devemos dizer, diferentemente, que, quando no antecedente se inclui o que pertence a um ato da alma, devemos tomar o consequente, não como ele em si mesmo é, mas, como está na alma. Pois um é o ser da coisa, em si mesma, e outro, o que tem na alma; assim, se eu disser — se a alma inteligir um objeto, esse é imaterial — deve-se compreender que tal objeto é imaterial, segundo está no intelecto; não, segundo o que em si mesmo é. Semelhantemente, se disser — se Deus conheceu uma coisa, ela existirá — deve-se compreender o consequente como objeto da ciência de Deus, i. é, enquanto lhe é presente. E então, é necessário, como o seu antecedente; porque, tudo o que existe, enquanto existir, existe necessariamente, como diz Aristóteles.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O que se atualiza no tempo é por nós sucessivamente conhecido nele; mas, por Deus, na eternidade, que é superior ao tempo. Donde, para nós, que os conhecemos como tais, os futuros contingentes não podem ser certos; mas o são só para Deus, cujo inteligir está na eternidade, acima do tempo. Assim, quem vai por um caminho não vê os que lhe vêem atrás; mas, quem olhar todo o caminho, de uma certa altura, vê, ao mesmo tempo todos os que por ele transitam. E portanto, o que nós sabemos há de ser necessário ainda considerado no que em si mesmo é; porque os futuros contingentes não podemos conhecê-los. As coisas, porém, sabidas de Deus, devem ser necessárias, pelo modo por que são objetos da ciência divina, como dissemos; não porém, absolutamente, enquanto considerados nas suas causas próprias.

Donde, na proposição — é necessário, que tudo o que é sabido de Deus exista. — costuma-se distinguir. Pois, pode referir-se à realidade ou à afirmação. Entendida no real,é dividida e falsa, e o sentido é — toda realidade que Deus conhece é necessária. Entendida da afirmação, é composta e verdadeira, e o sentido é — esta afirmação, o que é sabido por Deus existe, é necessária.

Mas, alguns objetam, que essa distinção tem lugar nas formas separáveis da matéria, como se disser — é possível o branco ser preto. O que é certamente falso, quanto à afirmação, mas verdadeiro, quanto à realidade; pois, uma coisa branca pode ser preta. Ao contrário, esta afirmativa — o branco é preto — nunca pode ser verdadeira. Porém, nas formas inseparáveis da matéria, tal distinção não tem lugar, como se dissesse — é possível um corvo preto ser branco. Porque, em ambos os sentidos, tal afirmação é falsa. Ora, o ser sabido de Deus é inseparável da realidade, porque o que é sabido de Deus não pode ser não-sabido. — Esta instância teria lugar se o que chamo — sabido — importasse alguma disposição inerente ao sujeito. Mas, como importe o ato do ciente, à realidade mesma sabida, embora sempre o seja, pode-se-lhe atribuir, em si mesma, algo que não se lhe atribui enquanto depende do ato do ciente. Assim, o ser material é atribuído à pedra em si, que não lhe é atribuído enquanto inteligível.

ART. XIV — SE DEUS CONHECE OS ENUNCIÁVEIS


(I Sent., dist. XXXIII, a. 3; dist. XLI, a. 5; I Cont. Gent., cap. LVIII, LIX; De Verit., q. 2, a. 7)

O décimo quarto discute-se assim. — Parece que Deus não conhece os enunciáveis.

1. — Pois, conhecer os enunciáveis é próprio da nossa inteligência, enquanto compõe e divide. Ora, no intelecto divino não há nenhuma composição. Logo, Deus não conhece os enunciáveis.

2. Demais. — Todo conhecimento se realiza por alguma semelhança. Ora, em Deus, não há nenhuma semelhança dos enunciáveis, pois, é absolutamente simples. Logo, Deus não conhece os enunciáveis.

Mas, em contrário, a Escritura (Sl 93, 11): O Senhor conhece os pensamentos dos homens. Ora, os enunciáveis existem no pensamento dos homens. Logo, Deus conhece os enunciáveis.

SOLUÇÃO. — Como está no poder do nosso intelecto formar os enunciáveis, e como Deus sabe tudo o que está no seu poder, ou no da criatura, como dissemos (a. 9), é necessário Deus conheça todos os enunciáveis, que podemos formular. Mas, como ele conhece as coisas materiais, imaterialmente, e as compostas, simplesmente, assim, conhece os enunciáveis não como tais, de maneira que haja no seu intelecto a composição ou a divisão deles; senão que conhece cada um por simples inteligência, inteligindo-lhes a essência. Como se nós, por isso mesmo que inteligimos o que é o homem, inteligíssemos tudo o que do homem se pode predicar. O de que não é capaz a nossa inteligência, que discorre de um termo para outro; pois, a espécie inteligível representa um objeto, porque não representa outro.

Por isso, inteligindo o que é o homem, não inteligimos ao mesmo tempo, mas, numa certa sucessão, o mais que nele existe; donde, o que inteligimos separada e divididamente, é necessário reduzi-lo à unidade, compondo e dividindo, formando assim a enunciação. Ora, a espécie do intelecto divino, i. é, a sua essência, basta para explicar tudo; por isso, inteligindo a sua essência, conhece as essências de todas as coisas, e tudo o de que são susceptíveis.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção procederia se Deus conhecesse os enunciáveis, como tais.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A composição do enunciável significa alguma realidade do objeto; e, assim, Deus, pelo seu ser, que é a sua essência, é semelhança de tudo aquilo significado pelos enunciáveis.

ART. XV — SE A CIÊNCIA DE DEUS É VARIÁVEL


(I Sent., dist. XXXVIII, art. 2; dist. XXXIX, q. 1, a. 1, 2; dist. XLI, a. 5; De Verit., q. 2, a. 5, ad 2; a. 13)

O décimo quinto, discute-se assim. — Parece que a ciência de Deus é variável.

1. — Pois, a ciência é considerada relativamente ao cognoscível. Ora, aquilo que importa relação com a criatura predica-se de Deus temporal e variavelmente, segundo a variação das criaturas. Logo, a ciência de Deus é variável, segundo a variação das criaturas.

2. Demais. — Quem pode fazer muitas coisas, também pode conhecê-las. Ora, Deus pode fazer mais coisas, do que as que faz. Logo, pode conhecer mais do que as que conhece. E, portanto, a sua ciência pode variar, por aumento e diminuição.

3. Demais. — Deus soube que Cristo havia de nascer. Agora, porém, não sabe que Cristo há de nascer, porque Cristo já não deve nascer. Logo, nem tudo o que Deus soube, sabe; é portanto, a ciência de Deus é variável.

Mas, em contrário, a Escritura (Tg 1, 17): Em Deus, não há mudança nem sombra alguma de variação.

SOLUÇÃO. — Sendo a ciência de Deus a sua substância, como resulta do que já foi dito (a. 4), e sendo a sua substância absolutamente imutável, como já se demonstrou (q. 9, a. 1), resulta necessariamente, que a sua ciência é absolutamente invariável.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As expressões — Senhor, Criador e semelhantes — implicam relações com as criaturas, como tais. Mas, a ciência de Deus implica relação com elas, do modo pelo qual existem em Deus; pois, é por estar no ser, que intelige, que um objeto é inteligido, em ato. Ora, as coisas criadas estão, em Deus, invariavelmente; em si mesmas, porém, variavelmente. — Ou, devemos responder, de outro modo, que — Senhor, Criador e expressões semelhantes — implicam relações consequentes a atos, que se entendem como terminados nas criaturas; como elas em si mesmas existem; e, portanto, tais relações predicam-se variavelmente de Deus, conforme a variação das criaturas. Ao passo que a ciência, o amor e causas semelhantes implicam relações conseqüentes a atos, que se entendem como existentes em Deus e, por isso, dele se predicam invariavelmente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus conhece mesmo aquilo que pode fazer e não faz. Mas, de poder fazer mais do que faz não se deduz que possa saber mais do que sabe; salvo se nos referirmos à ciência da visão, pela qual dizemos que sabe o que existe em ato, num determinado tempo. Porém, de saber que podem existir coisas, que não existem, ou não existirem, que existem, não se conclui que a sua ciência seja variável, mas sim, que conhece a variabilidade das coisas. Se existisse, ao contrário, alguma coisa cujo ser Deus antes não conhecesse, e depois viesse a conhecer, então a sua ciência seria variável. Ora, tal não pode dar-se, porque tudo o que existe ou pode existir em qualquer tempo, Deus o sabe, no seu ser eterno. E, portanto, desde que se admita que alguma coisa pode existir, num determinado tempo, é necessário admitir-se como sabida por Deus abeterno. Logo, não se deve conceder que Deus possa saber mais do que sabe, porque tal proposição implica que, antes, não soubesse o que depois veio a saber.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os antigos Nominalistas disseram, que é o mesmo enunciável — Cristo nascer, haver de nascer e haver nascido — porque essas três proposições têm a mesma significação: a natividade de Cristo. E de tal opinião resulta, que Deus sabe tudo o que soube; pois, o saber agora que Cristo nasceu, significa-lhe o mesmo que Cristo haverá de nascer. — Mas esta opinião é falsa, tanto porque a diversidade das partes da oração causa a diversidade dos enunciáveis, como porque dela resultaria, que uma proposição verdadeira, uma vez, sê-lo-ia sempre, o que vai contra o Filósofo, que diz que a oração — Sócrates está sentado — é verdadeira, estando ele sentado, e falsa, quando se levanta. — Logo, devemos pensar que a proposição — tudo o que Deus soube, sabe — não é verdadeira, referente aos enunciáveis. Mas, daí não se segue que a ciência de Deus seja variável.

Pois, como Deus, sem variação da sua ciência, sabe que um mesmo ser, ora é, e, ora, não, assim sem variação essa mesma ciência sabe, que um enunciável, ora, é verdadeiro, e, ora, falso. Mas, a ciência de Deus seria variável se conhecesse os enunciáveis como tais, compondo e dividindo, como acontece com a nossa inteligência. E, por isso, o nosso conhecimento varia, segundo a verdade ou a falsidade; p. ex., se, mudada a realidade, conservamos dela a mesma opinião; ou segundo as diversas opiniões, como se, primeiro, disséssemos que alguém está sentado, e, em seguida, que não. Ora, nada disso se pode dar com Deus.

ART. XVI — SE DEUS TEM CIÊNCIA ESPECULATIVA DAS COISAS


(De Verit., q. 3, a. 3)

O décimo sexto discute-se assim. — Parece que. Deus não tem, das coisas, ciência especulativa.

1. — Pois, a ciência de Deus é a causa das coisas, como antes foi demonstrado (a. 8). Ora, a ciência especulativa não é a causa das coisas sabidas. Logo, a ciência de Deus não é especulativa.

2. Demais. — A ciência especulativa nasce da abstração das coisas, o que não convém à ciência divina. Logo, a ciência de Deus não é especulativa.

Mas, em contrário, tudo o que é mais nobre devemos atribuir a Deus. Ora, a ciência especulativa é mais nobre que a prática, como está claro no Filósofo. Logo, Deus tem das coisas ciência especulativa.

SOLUÇÃO. — Há uma ciência, que é somente especulativa; outra, somente prática; outra, enfim, especulativa, num ponto de vista, e prática, em diverso.

Para evidenciá-lo devemos saber, que qualquer ciência pode ser considerada especulativa, de tríplice modo.

Primeiro, quanto às coisas sabidas, que não são realizáveis por quem as conhece; tal a ciência humana das coisas naturais, ou das divinas.

Segundo, quanto ao modo de conhecer; p. ex., se o construtor considerar uma casa, definindo e dividindo e considerando os predicados universais da mesma. O que é, por certo, considerar, de modo especulativo, o que é objeto de prática, e não, enquanto tal objeto. Pois, o praticável é tal, pela aplicação de uma forma à matéria, e não, pela resolução do composto aos princípios formais universais.

Terceiro, quanto ao fim; pois, o intelecto prático difere, pelo fim, do especulativo, como diz Aristóteles. Porque o intelecto prático ordena-se ao fim da operação, ao passo que o fim do intelecto especulativo é a consideração da verdade. Donde, o construtor que examinasse como uma casa possa ser feita, não a ordenando ao fim da operação, mas, somente ao do conhecimento, a examinaria especulativamente, quanto ao fim, e contudo, a respeito de um objeto de uma operação. Portanto, a ciência especulativa, em razão da própria coisa conhecida, é somente especulativa. A especulativa, porém, pelo modo ou pelo fim, é de certa maneira, especulativa, e de certa outra, prática. Quando porém, ordenada ao fim da operação, é prática, pura e simplesmente.

Segundo, pois, o que acaba de ser exposto, devemos concluir, que Deus tem, de si mesmo, somente a ciência especulativa, pois não é objeto de operação. Mas, de todos os outros seres, a tem especulativa e prática. Especulativa, quanto ao modo; pois, tudo o que nas coisas nós conhecemos especulativamente, definindo e dividindo, tudo isso Deus conhece muito mais perfeitamente. Daquelas coisas, porém, que pode certamente fazer, sem que as faça em tempo nenhum, não tem ciência prática, enquanto que tal ciência tira a sua denominação do fim. Assim, pois, tem ciência prática daquilo que faz num determinado tempo. Quanto ao mal, embora não possa praticá-lo, contudo tem dele conhecimento prático, como o tem do bem, permitindo-o, impedindo-o, ou ordenando-o. Assim, as doenças não compreende a ciência prática do médico, que as cura com a sua arte.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A ciência de Deus é causa, não certamente de si mesmo, mas dos outros seres. De uns, i. é, daqueles que são feitos, num tempo determinado, em ato; e doutros, i. é, daqueles que pode fazer, embora nunca venha a faze-los, pelo seu poder.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O ser a ciência oriunda das coisas conhecidas não convém à ciência especulativa, como tal, mas, por acidente, enquanto humana.

RESPOSTA AO OBJETADO EM CONTRÁRIO. — Respondemos: não há ciência perfeita das coisas praticáveis, senão enquanto conhecidas como tais. Por onde, sendo a ciência de Deus, a todos os respeitos, perfeita, necessariamente conhece as coisas que pode fazer, como tais, e não somente, enquanto objeto de especulação. E contudo, nada perde da nobreza da ciência especulativa, porque vê todas as coisas diferentes de si, em si mesmo, a quem conhece especulativamente. Por onde, pela ciência especulativa de si mesmo, tem conhecimento especulativo e prático de todos os outros seres.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Questão XIII - Dos nomes divinos

QUESTÃO XIII — DOS NOMES DIVINOS


Depois de considerado o que pertence ao conhecimento divino, devemos tratar dos nomes divinos, pois nomeamos as coisas conforme as conhecemos.
E, nesta questão, discutem-se doze artigos:
  1. Se Deus pode ser nomeado por nós;
  2. Se há nomes predicados substancialmente de Deus;
  3. Se há nomes atribuídos propriamente a Deus ou se todos lhe são atribuídos metaforicamente;
  4. Se são sinônimos muitos nomes aplicados a Deus;
  5. Se há nomes atribuídos a Deus e às criaturas unívoca ou equivocamente;
  6. Suposto que sejam atribuídos analogicamente, se se atribuem primeiro a Deus ou às criaturas;
  7. Se certos nomes se atribuem a Deus, temporalmente;
  8. Se o nome de Deus indica natureza ou operação;
  9. Se o nome de Deus é comunicável;
  10. Se deve ser tomado unívoca ou equivocamente, segundo designa Deus pela sua natureza, pela participação e pela opinião;
  11. Se a denominação — Aquele que é — é própria por excelência, de Deus;
  12. Se podemos formar, a respeito de Deus, proposições afirmativas.

ART. I — SE ALGUM NOME CONVÉM A DEUS


(I Sent., dist. I, expos. Text., qa. 6; dist. XXII, a. 1; De Div. Nom., cap. I, lect. I, III)

O primeiro discute-se assim. — Parece que nenhum nome convém a Deus.

1. — Pois, diz Dionísio: Que não se lhe pode dar nenhum nome, nem formar qualquer opinião a respeito dele. E a Escritura (Pr 30, 4): Qual é o seu nome, e qual é o nome de seu filho, se é que o sabes?

2. Demais. — Todo nome ou é abstrato ou concreto. Os concretos não convém a Deus, que é simples. Os abstratos, também não, porque não exprimem nada de perfeitamente existente. Logo, nenhum nome pode ser atribuído a Deus.

3. Demais. — Os nomes exprimem a substância qualificada; os verbos e os particípios a exprimem no tempo; e os pronomes, demonstrativa ou relativamente. Ora, nada disto convém a Deus que não tem qualidade nem acidente, nem está no tempo, nem cai sob o alcance dos sentidos, de modo que possa ser designado, nem pode ser expresso relativamente; pois, os relativos fazem lembrar o que já foi dito, seja um nome, particípio ou pronome demonstrativo. Logo, Deus não pode, de nenhum modo, ser nomeado por nós.

Mas, em contrário, a Escritura (Ex 15, 3): O Senhor é como um homem guerreiro, seu nome é onipotente.

SOLUÇÃO. — Segundo o Filósofo, as palavras são sinais dos conceitos, que são semelhanças das coisas. Por onde, é claro que as palavras se referem às coisas que devem significar, mediante a concepção do intelecto. Logo, na medida em que uma coisa pode ser conhecida por nós, nessa mesma pode ser por nós nomeada. Ora, como já demonstramos (q. 12, a. 11, 12), nós não podemos ver a Deus em essência, nesta vida. Mas somente o conhecemos por meio das criaturas, e por via da casualidade, da excelência e da remoção. Portanto, nós podemos nomeá-lo por meio das criaturas. Não, porém, que o nome que designa exprima a divina essência, como ela é, assim como a palavra homem significa a essência do homem tal como é, exprimindo-lhe a definição, que lhe declara a essência, pois a noção significada pelo nome é a definição.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dizemos que Deus não tem nome ou está acima de qualquer denominação, porque a sua essência sobrepuja o que dele inteligimos e exprimimos pela palavra.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como chegamos ao conhecimento e à denominação de Deus, por meio das criaturas, os nomes que lhe atribuímos têm a significação que convém às criaturas materiais, cujo conhecimento nos é conatural, como já dissemos. E como, dentre essas criaturas, as que são perfeitas e subsistentes são compostas; e não sendo, por outro lado, a forma delas completa e subsistente, mas, antes, o que faz com que alguma coisa exista, daí provém que todos os nomes que impomos para significar o que é completo e subsistente têm significação concreta, como convém a compostos.

Os nomes, porém, impostos para significar formas simples, exprimem algo, não como subsistente, mas como aquilo pelo que alguma coisa existe; assim a brancura significa aquilo que faz com que uma coisa seja branca. Ora, sendo Deus simples e subsistente, atribuímos-lhe nomes abstratos, para lhe exprimirem a simplicidade; os nomes concretos para lhe exprimirem a subsistência e a perfeição; embora todos esses nomes sejam deficientes para lhe exprimirem o modo de ser, assim como o nosso intelecto não o conhece, nesta vida, tal como é.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Significar a substância qualificada é significar o suposto com a natureza ou a forma determinada, na qual subsiste. Por onde, assim como certos nomes são atribuídos a Deus concretamente para lhe significarem a subsistência e a perfeição, como já dissemos, assim também se lhe atribuem nomes que significam a substância qualificada. Quanto aos verbos e aos particípios, que exprimem o tempo, eles se atribuem a Deus, porque a eternidade inclui todos os tempos; pois, assim como não podemos apreender e exprimir os seres simples subsistentes, senão ao modo que convém aos compostos, assim, não podemos compreender ou exprimir pela palavra a eternidade simples senão ao modo das coisas temporais; e isto por causa da conaturalidade do nosso intelecto com as coisas compostas e temporais.

Por fim, os pronomes demonstrativos se aplicam a Deus, enquanto designam o que é compreendido, e, não, o que é sentido, pois na medida em que compreendemos, nessa mesma designamos. E assim, do modo pelo qual os nomes, os particípios e os pronomes demonstrativos se atribuem a Deus, desse mesmo podem ser significados pelos pronomes relativos.

ART. II — SE ALGUM NOME SE PREDICA DE DEUS SUBSTANCIALMENTE


(I Sent., dist. II, a. 2; I Cont. Gent., cap. XXXI; De Pot., q. 7, a. 5)

O segundo discute-se assim. — Parece que nenhum nome se predica de Deus substancialmente.

1. — Pois, diz Damasceno: Tudo o que dizemos de Deus não exprime o que ele é substancialmente, mas, significa o que não é, ou alguma relação, ou alguma particularidade consecutiva à sua natureza ou ação.

2. Demais. — Dionísio diz: Em todos os santos teólogos acharás um hino às felizes participações da tearquia, exprimindo manifestativa e laudativamente cada uma das denominações de Deus. O sentido deste lugar é que os nomes que os Santos Doutores consagram ao divino louvor, se distinguem pelas participações de Deus. Ora, o que exprime a participação de um ser não significa nada do que lhe pertence à essência. Logo, os nomes predicados de Deus não se lhe atribuem substancialmente.

3. Demais. — Um ser é nomeado por nós conforme o modo pelo qual o compreendemos. Ora, nós não inteligimos a Deus em substância, nesta vida. Logo, nenhum dos nomes que lhe aplicamos se lhe aplica substancialmente.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Em Deus se identificam o ser forte, sábio, ou o que quer que digamos da sua simplicidade, para lhe significar a substância. Logo, todas essas denominações exprimem a divina substância.

SOLUÇÃO. — Os nomes atribuídos a Deus negativamente ou os que exprimem alguma relação dele com a criatura, é claro que de nenhum modo lhe significam a substância, mas, dele removem alguma coisa ou exprimem alguma relação que têm com algum ser ou, antes, que algum ser tem com ele.

Mas, as opiniões variam quanto aos nomes que de Deus se predicam absoluta e afirmativamente, como bom, sábio e outros. — Assim, uns disseram que, embora todos esses nomes se prediquem de Deus afirmativamente, contudo, são destinados, antes, para dele remover, que para afirmar alguma coisa. Por onde, dizem, quando afirmamos que Deus é vivo, queremos exprimir que não tem o mesmo modo de ser das coisas inanimadas, e assim por diante. Esta é a opinião de Moisés Maimónides. — Outros, porém, dizem que tais nomes são impostos para exprimir as relações de Deus com as criaturas; assim, quando dizemos que Deus é bom, o sentido é, que Deus é a causa da bondade das cousas, e assim por diante.

Mas, estas duas opiniões são inconvenientes, por três razões.

Primeiro, porque nenhuma dessas duas opiniões pode explicar a razão por que certos nomes se predicariam de Deus, de preferência a outros. Pois, ele é causa, tanto dos corpos, como dos bens; portanto, se quando dizemos que Deus é bom queremos dizer que Deus é a causa dos bens, semelhantemente, quando dizemos, que Deus é corpo, também significa isso que é a causa dos corpos. E, do mesmo modo, dizendo que é corpo; dele removemos que seja um ente puramente potencial, como a matéria prima.

Segundo, porque resultaria de tais opiniões, que todos os nomes aplicados a Deus não lhe convém senão em sentido secundário, como quando dizemos que um remédio é são para, em sentido secundário, significar somente que é causa da saúde no animal que, primariamente, se chama são.

Terceiro, porque tais opiniões vão contra a intenção dos que falamos de Deus, que, quando dizemos que Deus é vivo, queremos dizer coisa diferente, que quando dizemos que é a causa da nossa vida, ou que difere dos corpos inanimados. E, portanto, devemos pensar, de outro modo, que tais nomes significam certamente a substância divina e de Deus se predicam substancialmente, mas o representam de modo deficiente, o que assim se demonstra. Os nomes exprimem a Deus do modo pelo qual o nosso intelecto o conhece. Ora, como o nosso intelecto o conhece por meio das criaturas, há de conhecê-lo do modo pelo qual estas o representam. Já demonstramos, porém, que Deus encerra em si, primariamente, quase absoluta e universalmente simples, todas as perfeições das criaturas.

Por onde, uma criatura qualquer o representa e tem com ele semelhança, na medida em que tem alguma perfeição; não porém, que o represente como sendo da mesma espécie ou do mesmo gênero, mas, como um principio excelente, em relação a cuja forma os efeitos são deficientes, se deixarem, contudo, de exprimir alguma semelhança dele; assim, a forma dos corpos inferiores representam a virtude solar. E isso já o expusemos quando tratamos da perfeição divina. Por onde, os nomes em questão exprimem a divina substância, embora imperfeitamente, assim como imperfeitamente as criaturas o representam. Assim, pois, quando dizemos, que Deus é bom, o sentido não é, que Deus é a causa da bondade, ou que Deus não é mau, mas que a bondade que atribuímos às criaturas, preexiste em Deus de modo mais eminente. Donde, pois não se segue que a Deus convém o ser bom; porque causa a bondade, mas, antes, pelo contrário, porque é bom difunde nas coisas a bondade, conforme aquilo de Agostinho: Porque ele é bom é que nós somos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Damasceno diz que tais nomes não significam o que é Deus, porque nenhum deles exprime o que Deus perfeitamente é, mas, cada um o significa imperfeitamente, assim como imperfeitamente o representam as criaturas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Às vezes, uma coisa é a origem da qual um nome tira a sua significação, e outra, o objeto que ele designa. Assim, o nome de lapide ou pedra se origina daquilo que lesa o pé; não é, porém, usado para significar aquilo que lesa o pé, mas, uma espécie de corpo; do contrário, tudo o que lesa o pé seria lápide ou pedra. Donde devemos concluir, que os nomes divinos em questão são, certo, originados das participações da divindade. Assim, pois, como as criaturas representam a Deus, embora imperfeitamente, segundo as diversas participações das divinas perfeições, assim o nosso intelecto conhece e nomeia a Deus conforme cada uma dessas participações. Esses nomes, porém, não são impostos para significar as participações mesmas; e quando dizemos que Deus é vivo, queremos dizer que de Deus procede a vida, querendo assim significar o princípio mesmo das coisas, no qual preexiste a vida, embora de modo mais eminente do que o que nós podemos compreender ou exprimir.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não podemos, nesta vida, conhecer a essência de Deus, tal como ela é em si mesma; mas, a conhecemos enquanto representada nas perfeições das criaturas e, assim é que os nomes que impomos a significam.

ART. III — SE ALGUM NOME SE PREDICA DE DEUS PROPRIAMENTE


(I Sent., dist. IV, q. 1, a. 1; dis. XXII, a. 2; dist. XXXIII, a. 2; dist. XXXV, a. 1, ad 2; I Cont., cap. XXX; De Pot., q. 7, a. 5)

O terceiro discute-se assim. — Parece que nenhum nome se predica de Deus propriamente.

1. — Pois, todos os nomes que aplicamos a Deus são tirados das criaturas, como já se disse (a. 1). Ora, tais nomes se aplicam a Deus metaforicamente; assim, quando dizemos que Deus é pedra ou leão ou algo de semelhante. Logo, os nomes que atribuímos a Deus se aplicam metaforicamente.

2. Demais. — Um nome que é removido de um ser, mais verdadeiramente do que é dele predicado, não se lhe aplica propriamente. Ora, todos os nomes como — bom, sábio, e semelhantes — removem-se de Deus mais verdadeiramente do que dele se predicam, como se lê claramente em Dionísio. Logo, nenhum desses nomes se predica propriamente de Deus.

3. Demais. — Sendo Deus incorpóreo, os nomes de corpos não se lhe atribuem senão metaforicamente. Ora, todos os nomes em questão implicam certas condições corpóreas, como o tempo, a composição e outras semelhantes. Logo, todos esses nomes se atribuem a Deus metaforicamente.

Mas, em contrário, diz Ambrósio: Há certos nomes que indicam evidentemente uma propriedade divina. Outros que exprimem, com clara verdade, a majestade divina; Outros por fim que se aplicam a Deus por metáfora e semelhança. Logo, todos esses nomes se predicam de Deus metaforicamente.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 2), conhecemos a Deus pelas perfeições que dele procedem para as criaturas, perfeições que nele existem de modo mais eminente que nestas. Ora, o nosso intelecto as apreende conforme o modo pelo qual elas existem nas criaturas e, como as apreende, assim as exprime por nomes. Ora, nos nomes que atribuímos a Deus há dois elementos a se considerarem, a saber: as perfeições mesmas que eles significam, como bondade, vida e outras; e o modo de significar. Quanto ao que significam tais nomes, convém a Deus propriamente e mais que às criaturas, dele se predicam primariamente. Quanto ao modo de significar, não se lhe atribuem propriamente, pois, esse modo é próprio das criaturas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Alguns nomes significam as perfeições procedentes de Deus para as coisas criadas, de maneira que o modo imperfeito mesmo, pelo qual a perfeição divina é participada pela criatura, está incluída na significação deles; assim, pedra significa um ser material. E tais nomes não se podem atribuir a Deus senão metaforicamente. Os nomes, porém, que significam as perfeições mesmas, absolutamente, sem que nenhum modo de participação se inclua na significação deles — como ente, bom, vivente e semelhantes — esses atribuem-se a Deus propriamente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Dionísio diz que os nomes em questão podem ser negados de Deus, porque a significação deles não lhe convém, do mesmo modo pelo qual a exprimem, mas, de modo mais excelente. E, por isso, Dionísio diz, no mesmo lugar, que Deus está acima de toda substância e de toda vida.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os nomes que se predicam propriamente de Deus implicam condições corpóreas, não pela significação mesma deles, mas, pelo modo de significar. Os que, porém, se atribuem a Deus, metaforicamente implicam condição corporal, pela sua significação mesma.

ART. IV — SE OS NOMES PREDICADOS DE DEUS SÃO SINÔNIMOS


(I Sent., dist. II, a. 3; dist. XXII a. 3; I Cont. Gent., cap. XXXV; De Pot., q. 7, a. 6; Compend. Theol., cap. XXV)

O quarto discute-se assim. — Parece que os nomes predicados de Deus são sinônimos.

1. — Pois, chamam-se sinônimos os nomes que significam absolutamente o mesmo. Ora, os que de Deus se predicam significam absolutamente o mesmo. Assim, a bondade de Deus é a sua essência e também a sua sabedoria. Logo, tais nomes são absolutamente sinônimos.

2. Demais. — Nem vale dizer, que esses nomes significam a mesma realidade, mas, exprimem noções diversas. — Pois, a noção a que não corresponde nenhuma realidade, é vazia de sentido. Se, portanto, as noções em questão forem muitas e a realidade uma só, tais noções são vazias de sentido.

3. Demais. — O que tem unidade real e racional tem mais unidade que o que tem unidade real e multiplicidade racional. Ora, Deus é uno por excelência. Logo, não pode ter unidade real e multiplicidade racional e, portanto, os nomes que dele se predicam, não significando noções diversas, são necessariamente sinônimos.

Mas, em contrário. — Todos os sinônimos unidos uns aos outros não passam de tautologia, como quando se diz, roupa vestimentas. Se, portanto, todos os nomes de predicados de Deus são sinônimos, não se pode, com conveniência, dizer, que Deus é bom, ou coisa semelhante; e, contudo, diz a Escritura (Jr 32, 18): ó fortíssimo, grande e poderoso, o Senhor dos exércitos é o teu nome.

SOLUÇÃO. — Os nomes de que tratamos não são sinônimos predicados de Deus. E isto já o veríamos facilmente, se disséssemos que tais nomes são usados para negar ou para exprimir a relação de causa que há entre Deus e as criaturas; então, já seriam diversas as noções desses nomes, conforme as coisas diversas que negam ou os efeitos diversos que conotam. — Mesmo, porém, admitindo que, como já dissemos (a. 2), tais nomes exprimam a substância divina, embora imperfeitamente, ainda resulta claro, segundo o que já estabelecemos (a. 1, 2), que eles têm noções diversas. Pois, a noção significada pelo nome é uma concepção do intelecto relativa ao que essa noção exprime.

Ora, como o nosso intelecto conhece a Deus por meio das criaturas, forma, para o inteligir, conceitos proporcionados às perfeições que, de Deus procedem para as criaturas; perfeições essas que, nele, preexistem com unidade e simplicidade e, nestas, divididas e múltiplas. Assim, pois, como às diversas perfeições das criaturas corresponde um princípio simples, representado, vária e multiplamente, pelas diversas perfeições delas, — assim às várias e múltiplas concepções do nosso intelecto corresponde algo de absolutamente uno e simples, apreendido imperfeitamente por tais concepções. E, portanto, os nomes atribuídos a Deus, embora signifiquem uma mesma realidade, contudo, não são sinônimos, porque a designam sob noções múltiplas e diversas.

Por onde, é clara a resposta à primeira objeção. — Pois, chamam-se sinônimos os nomes que, tendo uma determinada noção, significam uma mesma realidade. Os nomes que exprimem noções diversas de uma mesma realidade, não significam uma mesma coisa, primariamente e em si mesma, porque o nome não exprime uma realidade senão mediante um conceito do intelecto, como já dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — As noções várias de tais nomes não são inúteis e vãs, porque a todos eles corresponde algo de simples, que eles representam múltipla e imperfeitamente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — É pela sua perfeita unidade mesma que o que existe múltipla e divididamente nas criaturas, Deus o encerra em si simples e multiplamente. E porque o nosso intelecto o apreende multiplamente, tal como as coisas o representam, é que Deus, uno na realidade, é múltiplo racionalmente.

ART. V — SE É UNIVOCAMENTE QUE OS MESMOS NOMES SE ATRIBUEM A DEUS E ÀS CRIATURAS


(I Sent., Prol., a. 2, ad 2; dist. XIX, q. 5, a. 2, ad 1; dist. XXXV, a. 4; I Cont. Gent., cap. XXXII, XXXIII, XXXIV; De Verit., q. 2, a. 2; De Pot., q. 7, a. 7; Compend. Theol., cap. XXVII)

O quinto discute-se assim. — Parece que é univocamente que os mesmos nomes se atribuem a Deus e às criaturas.

1. — Pois, todo equívoco se reduz ao unívoco, como o múltiplo à unidade. Assim, se o nome de cão se predica equivocamente do que ladra e do cão marinho, é necessário que seja predicado de certos animais univocamente, a saber, de todos os que ladram; pois, do contrário, teríamos que proceder ao infinito. Ora, há certos agentes unívocos que convêm com os seus efeitos pelo nome e pela definição, p. ex., um homem gera outro; outros agentes, porém, são equívocos, assim o sol causa o calor; embora não seja cálido senão equivocamente. Parece, pois, que o primeiro agente, ao qual todos os outros se reduzem, é um agente unívoco, e, portanto, os nomes atribuídos a Deus e às criaturas são predicados univocamente.

2. Demais. — Onde há equívoco não há semelhança. Ora, como há semelhança da criatura com Deus, conforme aquilo da Escritura (Gn 1, 26) — Façamos o homem à nossa imagem e semelhança — conclui-se que alguma realidade, pelo menos, podemos atribuir univocamente a Deus e às criaturas.

3. Demais. — A medida é homogênea com o medido, como diz Aristóteles. Ora, Deus é a medida primeira de todos os seres, como no mesmo lugar o diz. Logo, Deus é homogêneo com as criaturas, e portanto podemos predicar dele e delas algo de unívoco.

Mas, em contrário. — O que se predica de vários sujeitos, por um mesmo nome, mas não no mesmo sentido, é deles predicado equivocamente. Ora, nenhum nome convém a Deus no mesmo sentido por que convém à criatura; assim, a sabedoria, nas criaturas é qualidade, não porém em Deus; pois, como o gênero faz parte da definição, se ele varia, varia também o sentido. E o mesmo se dá com tudo o mais. Logo, tudo o que se diz de Deus e das criaturas, diz-se equivocamente.

Demais. — Deus dista mais das criaturas que estas, umas das outras. Ora, dá-se que, por causa da distância entre certas criaturas, nada pode predicar-se delas univocamente. Assim acontece com as que não convêm num mesmo gênero. Logo, com maior razão, não se pode predicar nada univocamente, senão só equivocamente, de Deus e das criaturas.

SOLUÇÃO. — É impossível predicar-se qualquer coisa, univocamente, de Deus e das criaturas. Pois, todo efeito que não iguala a virtude da causa agente, recebe a semelhança do agente, não segundo o mesmo sentido mas, deficientemente; de modo que, o que nos efeitos existe dividida e multiplamente, existe na causa simples e uniformemente; assim, o sol, pela sua virtude una, produz nos seres da terra formas várias e múltiplas. Do mesmo modo, como já dissemos (a. 4), todas as perfeições que existem nas coisas criadas, dividida e multiplamente, preexistem em Deus, una e simplesmente. Por onde, quando um nome, designando uma perfeição, é atribuído a uma criatura, esse nome exprime essa perfeição distintamente e enquanto que, pela sua definição, se separa do mais.

Assim, pelo nome de sábio, aplicado ao homem, exprimimos uma perfeição distinta da essência, da potência, do ser e do mais que lhe convém. Quando, porém, atribuímos esse nome a Deus, não pretendemos exprimir nada distinto da sua essência, do seu poder ou do seu ser. De maneira que o nome de sábio, atribuído ao homem, circunscreve, de certo modo, e abrange o seu significado; não, porém, quando atribuído a Deus porque, então, deixa a qualidade significada como incompreendida e excedente à significação do nome. Por onde, é claro que o nome de sábio não tem o mesmo sentido, atribuído a Deus e ao homem. E o mesmo se dá com todos os outros. Logo, nenhum nome é predicado univocamente, de Deus e das criaturas.

Nem em sentido puramente equivoco como alguns disseram. Porque, então, por meio das criaturas, não poderíamos conhecer nem demonstrar nada de Deus, sem cairmos no sofisma de equivocação. Demais, esta opinião vai contra o Filósofo, que demonstra muitas verdades a respeito de Deus, como contra o Apóstolo, que diz (Rm 1, 20): As causas de Deus invisíveis se vêem depois da criação do mundo, consideradas pelas obras que foram feitas.

Devemos portanto dizer que os nomes em questão predicam-se de Deus e das criaturas, analogicamente, i. é, em virtude de uma proporção. E isto pode se dar com os nomes, de dois modos. Ou porque muitos termos são proporcionais a uma mesma realidade. E assim, são se diz tanto de um remédio como da urina; enquanto que esta e aquele se ordenam e proporcionam à saúde do animal, da qual a urina é o sinal, e o remédio, a causa da saúde do animal ou porque um termo é proporcional a outro, assim, são se diz do remédio e do animal, por ser aquele a causa da saúde deste. E, deste modo, certos nomes predicam-se de Deus e das criaturas analogicamente e não em sentido puramente equivoco, nem puramente unívoco pois, não podemos designar a Deus senão pelas criaturas, como já dissemos (a. 1).

E assim, o que dizemos de Deus e das criaturas dizemo-lo por haver uma certa ordem da criatura para Deus, como o principio e a causa em que preexistem excelentemente todas as perfeições dos seres. De modo que esta como que comunidade de denominações é um meio termo entre a pura equivocação e a simples univocação. Pois, as predicações análogas não têm o mesmo sentido, como o têm as unívocas, nem sentidos totalmente diversos, como as equivocas; mas, o nome assim empregado em sentido múltiplo significa proporções diversas relativas a um termo uno. Assim, o nome de são aplicado à urina é tomado como sinal da saúde do animal; aplicado a um remédio, porém, significa que este é a causa da saúde.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora as predicações equívocas se reduzam às unívocas, contudo, nas ações, o agente não unívoco precede, necessariamente, ao unívoco. Pois aquele é causa universal de toda a espécie; p. ex., o sol é a causa da geração de todos os homens. O agente unívoco, porém, não é causa agente universal de toda a espécie; do contrário, seria a causa de si mesmo, pois está contido na espécie; mas, é causa particular de um determinado indivíduo, que leva a participar da espécie. Por onde, a causa universal de toda a espécie não é o agente unívoco. Ora, a causa universal tem prioridade sobre a particular. Por outro lado, o agente universal, embora não seja unívoco, também não é absolutamente equívoco, porque então não poderia produzir um ser semelhante a si; mas, pode ser chamado agente análogo. É assim que todas as predicações unívocas se reduzem a um termo primeiro não unívoco, mas, análogo, que é o ser.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A semelhança da criatura com Deus é imperfeita a tal ponto que não comporta gênero comum, como já dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Deus não é uma medida proporcionada ao medido. Por onde, não é necessário que esteja contido no mesmo gênero da criatura.

E quanto às objeções em contrário, elas concluem que os nomes em questão não se predicam univocamente de Deus e das criaturas; mas isto não prova que se prediquem equivocamente.

ART. VI — SE OS MESMOS NOMES SE PREDICAM PRIMEIRO DAS CRIATURAS QUE DE DEUS


(Supra, a. 3; I Sent., dist. XXII, a. 2; I Cont. cap. XXXIV; Comp. Thel. Cap. XXVII; Ephes., cap. III, lect. IV)

O sexto discute-se assim. — Parece que os mesmos nomes se predicam primeiro das criaturas que de Deus.

1. — Pois, como conhecemos um ser, assim o denominamos; porque, segundo o Filósofo, os nomes são os sinais das cousas inteligidas. Ora, nós conhecemos a criatura antes de conhecermos a Deus. Logo, todos os nomes que impomos convêm primeiro às criaturas, que a Deus.

2. Demais. — Segundo Dionísio, nomeamos a Deus por meio das criaturas. Ora, os nomes transferidos destas para Deus, como leão, pedra e outros, predicam-se primeiro delas que dele. Logo, todos os nomes se predicam primeiro das criaturas que de Deus.

3. Demais. — Todos os nomes predicados, em comum, de Deus e das criaturas, atribuem-se a Deus como causa de todos os seres, conforme diz Dionísio. Ora: o que se predica de um ser como causa é predicado em segundo lugar; assim, diz-se primeiro, do animal, que é são, do que do remédio, causa da saúde. Logo, tais nomes predicam-se das criaturas, antes de se predicarem de Deus.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Ef 3, 14): Dobro os meus joelhos diante do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a paternidade toma o nome nos céus e na terra. E o mesmo se deve dizer dos outros nomes que se predicam de Deus e das criaturas. Logo, tais nomes se predicam primeiro de Deus que das criaturas.

SOLUÇÃO. — Todos os nomes atribuídos analogicamente a vários seres hão necessariamente de ser dependentes de um primeiro termo, a que são relativos; e, portanto, este termo há de entrar na definição de todos esses nomes. E como a noção expressa pelo nome é a definição, conforme Aristóteles, é necessário que este nome seja atribuído, primeiramente, ao termo da analogia, que entra na definição dos outros e, em segundo lugar, à destes, conforme se aproximam mais ou menos do primeiro termo. Por exemplo, são, atribuído ao animal, entra na definição dessa mesma palavra são atribuída ao remédio, assim chamado por causar a saúde do animal; e também entra na definição de são, atribuído à urina, assim chamada por ser o sinal da saúde do animal.

Por onde, todos os nomes predicados metaforicamente de Deus, atribuem-se primeiro às criaturas que a Deus, porque, referidos a ele, não significam senão uma semelhança com tais criaturas ou tais outras. Assim, rir, atribuído a um prado, não significa senão que o prado, quando floresce, é agradável, como o homem, quando ri, por semelhança de proporção; e, do mesmo modo, o nome leão, aplicado a Deus, não significa senão que Deus age fortemente, nas suas obras, como o leão, nas suas. Por onde, é claro que tais nomes, aplicados a Deus, não podem ser definidos senão por comparação com o sentido que têm quando atribuídos às criaturas.

Quanto aos nomes que não são atribuídos a Deus metaforicamente, o mesmo diríamos, se eles fossem predicados de Deus só causalmente, como certos disseram. Assim, quando dizemos — Deus é bom — não quereríamos dizer senão que Deus é a causa da bondade da criatura; e então o nome bom, atribuído a Deus, abrangeria na sua significação, a bondade da criatura e, por conseqüência, dir-se-ia da criatura, antes de ser predicado de Deus. Mas, como já demonstramos (a. 2), tais nomes atribuem-se a Deus não só causal, mas também, essencialmente. Assim, quando dizemos — Deus é bom — ou — sábio queremos dizer, não somente, que é causa da sabedoria ou da bondade, mas, que estas qualidades nele preexistem de modo mais eminente.

Por onde, neste sentido, deve-se dizer que, levando em consideração a coisa significada pelo nome, cada um deles é predicado de Deus, antes de ser das criaturas, porque dele é que lhe derivam as perfeições denominadas. Mas, quanto à imposição dos nomes nós os damos, primeiro, às criaturas, que é o que primeiro conhecemos, e, por isso, eles têm um modo de significar, que convém às criaturas, como já dissemos (a. 3).

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção procede quanto à imposição do nome.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O caso dos nomes atribuídos a Deus metaforicamente não é o mesmo que o dos demais nomes, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A objeção procederia se tais nomes fossem predicados de Deus só causal e não, essencialmente, como quando se diz — o remédio é são.

ART. VII — SE OS NOMES QUE IMPLICAM RELAÇÃO COM AS CRIATURAS SÃO ATRIBUÍDOS A DEUS TEMPORALMENTE


(Infra, q. 34, a. 3 ad 2; I Sent., dist. XXX, a. 1; dist. XXXVII, q. 2 a. 3)

O sétimo discute-se assim. — Parece que os nomes que implicam relação com as criaturas não são atribuídos a Deus temporalmente.

1. — Pois, todos esses nomes exprimem a divina substância, como em geral se diz. Por onde, conforme Ambrósio, o nome de Senhor é nome de poder, que é a divina substância; e Criador significa a ação de Deus, que é a sua essência. Ora, a substância divina não é temporal, mas eterna. Logo, tais nomes não são atribuídos a Deus temporal, mas, eternamente.

2. Demais. — Um ser a que convém um nome, a partir de um certo tempo, pode ser considerado como feito. Ora, a Deus não convém o ser feito. Logo, de Deus nada é predicado no tempo.

3. Demais. — Se certos nomes são predicados de Deus temporalmente, por importarem relação com as criaturas, o mesmo se pode dizer de todos os nomes que implicam tais relações. Ora, alguns desses nomes predicam-se de Deus ab aeterno. Assim, ab aeterno Deus conhece e ama a criatura, conforme aquilo da Escritura (Jr 31, 3): Com amor eterno te amei. Logo, todos os demais nomes, que importam relação com as criaturas, como Senhor e Criador, predicam-se de Deus ab aeterno.

4. Demais. — Os nomes de que tratamos exprimem uma relação. Mas, necessariamente, essa relação é alguma coisa em Deus ou somente na criatura. Ora, este último caso não pode ser, porque então Deus seria denominado Senhor segundo a relação contrária que existe nas criaturas; mas, nada é denominado pelo que é contrário. Logo, a relação é alguma coisa em Deus. Ora, em Deus não pode haver nada de temporal, porque ele está fora de qualquer tempo. Logo, tais nomes não se atribuem a Deus temporalmente.

5. Demais. — A relação faz com que uma atribuição seja relativa; p. ex., dominador vem de domínio, como branco, de brancura. Se, pois, a relação de domínio não existe realmente em Deus, mas, só racionalmente, conclui-se que Deus não é realmente Senhor, o que é falso, de maneira evidente.

6. Demais. — Quando dois termos relativos não são simultâneos por natureza, um pode existir sem que exista o outro; assim, o cognoscível existe, embora não exista conhecimento, como diz Aristóteles. Ora, os termos relativos predicados de Deus e das criaturas não são simultâneos por natureza. Logo, podemos atribuir alguma coisa a Deus em relação com a criatura, mesmo que esta não exista. E assim, os nomes Senhor e Criador predicam-se de Deus ab aeterno e não no tempo.

Mas, em contrário, diz Agostinho, que a denominação relativa de Senhor convém a Deus temporalmente.

SOLUÇÃO. — Certos nomes, que implicam relação de Deus com a criatura, dele se predicam temporalmente e não, ab aeterno.

Para o demonstrar, deve saber-se que alguns ensinaram que a relação não é uma realidade da natureza, mas só da razão. Ora, esta opinião é evidentemente falsa, porquanto os seres da natureza têm, uma ordem natural e relação mútua entre si. Contudo, deve saber-se que, exigindo a relação dois extremos, três condições podem torná-la um objeto da natureza ou um simples ser de razão. — Assim, às vezes, esses dois extremos são seres somente de razão, e isso quando a ordem ou relação entre eles depende só da apreensão racional; p. ex., se dissermos que um mesmo ser é, para si, isso mesmo que é. Pois, quando a razão apreende uma mesma realidade sob dupla concepção, afirma-a como duas, e assim apreende uma certa relação dessa coisa consigo mesma.

E o mesmo se dá com todas as relações entre o ser e o não-ser, relações que a razão forma, apreendendo o não-ser como um extremo. E ainda, o mesmo é o caso de todas as relações conseqüentes a um ato da razão, como o gênero, a espécie e outros. Outras relações há, além dessas, nas quais os dois extremos são realidades da natureza; e isso se dá quando há uma relação entre dois termos fundada em algo que lhes convém realmente aos dois. É o que aparece manifestamente em todas as relações conseqüentes à quantidade, como grande e pequeno, duplo e meio, e semelhantes, pois a quantidade está realmente em cada um dos extremos. E o mesmo sucede com as relações resultantes da ação e da paixão, como, motivo e móvel, pai e filho e outras. — Outras vezes, por fim, um dos termos da relação é uma realidade da natureza e, o outro, somente de razão; e isto se dá sempre que os dois extremos não são da mesma ordem.

Assim, o sentido e a ciência referem-se ao sensível e ao inteligível, que, como coisas, e quanto ao ser natural que têm, são estranhos à ordem do ser sensível e a do inteligível. Por onde, no caso da ciência e da sensação, há uma relação real, por se ordenarem essas atividades a conhecer e a sentir as coisas; mas, estas, em si mesmas consideradas, são estranhas a tal ordem e por isso, não têm relação real com a ciência e com a sensação, mas, relação somente de razão, enquanto o nosso intelecto as apreende como termos das relações da ciência e do sentido. Por onde, diz o Filósofo, que essas coisas são tomadas relativamente, não porque se refiram a outras, mas, porque as outras se lhes referem a elas. Assim também, não dizemos que uma coluna está à direita senão porque está colocada p. ex., à direita de um animal, e, por isso, tal relação não está realmente na coluna, mas, no animal.

Ora, Deus, estando fora de toda a ordem das criaturas, ordenando-se-lhes todas elas, e não inversamente, é manifesto que elas se referem realmente a Deus, que, porém, não tem nenhuma relação real com a criatura, mas, só racional, enquanto elas se lhe referem. Assim, pois, nada impede que os nomes em questão, que implicam relação com a criatura, sejam predicados de Deus temporalmente; não que haja nele qualquer mutação, que só existe na criatura, assim como uma coluna está à direita de um animal, sem que haja nela nenhuma mudança, a qual existe só no animal, que mudou de lugar.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Certos nomes relativos são impostos para exprimirem as relações em si mesmas, e como Senhor e servo, pai e filho, e outros; e estes se chamam relativos quanto ao ser. Outros, porém, são impostos para exprimirem coisas a que certas relações são consecutivas, como motor e móvel, chefe e chefiado e semelhantes, que se chamam relativos quanto à apelação. Assim, também em relação aos nomes divinos, devemos considerar as diferenças seguintes. Certos exprimem a relação mesma que Deus mantém com a criatura, como, Senhor. E estes significam a substância divina, não direta mas, indiretamente por que a pressupõem, assim como o domínio pressupõe o poder que é, no caso, a substância divina.

Outros nomes, porém, exprimem diretamente a essência divina e, por via de conseqüência, implicam uma relação, como, Salvador, Criador e semelhantes, que exprimem a ação de Deus, que é a sua essência. Ora, estas duas categorias de nomes predicam-se de Deus temporalmente, se considerarmos a relação que implicam, principal ou conseqüentemente; não, porém, se considerarmos como significando a essência, direta ou indiretamente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como as relações predicadas de Deus temporalmente nele não existem senão como distinções da nossa razão; do mesmo modo, não podemos aplicar a Deus as expressões — ser feito, ter sido feito — senão como um modo nosso de falar, sem que haja nenhuma mudança em Deus mesmo; tal é o caso do passo da Escritura (Sl 89, 1): Senhor, tu tens sido feito o nosso refúgio.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A operação do intelecto e da vontade existem no agente; e, por isso, os nomes que exprimem relações conseqüentes à atividade dessas duas faculdades predicam-se de Deus ab aeterno. As relações, porém, resultantes de atos exteriores, i. é, de atos que, segundo o nosso modo de entender, se exteriorizam, quanto aos seus efeitos, essas incluem o tempo, na sua significação, assim, quando dizemos que Deus é Salvador, Criador, etc.

RESPOSTA À QUARTA. — As relações expressas pelos nomes em questão, predicados de Deus temporalmente, em Deus existem só como distinção da nossa razão; as relações, porém, opostas a estas estão realmente nas criaturas. Nem há inconveniente em Deus ser denominado pelas relações realmente existentes na criatura, contanto que a nossa inteligência subentenda que nele existem as relações opostas a essas; de modo tal que digamos que Deus é relativo à criatura, porque a criatura se lhe refere a ele, assim como o Filósofo diz que o cognoscível é considerado relativamente à inteligência, porque a ele é relativa a ciência.

RESPOSTA À QUINTA. — Estando a relação de sujeição realmente na criatura, esta é que, propriamente, se refere a Deus e não, Deus a ela. Donde se segue, que Deus é Senhor, não só conforme o nosso modo de falar, mas, realmente, pois é chamado Senhor, do mesmo modo porque dizemos que a criatura lhe está sujeita.

RESPOSTA À SEXTA. — Para conhecermos se os termos relativos são simultâneos por natureza ou não, devemos considerar, não a ordem das coisas a que eles se referem, mas, as significações mesmas deles. Se, pois, um dos termos relativos inclui outro, na sua significação e não inversamente, não são simultâneos por natureza como, duplo, meio, pai e filho, e semelhantes. Mas se um inclui o outro, na sua significação, e não inversamente, não são simultâneos por natureza: E tal é a relação entre a ciência e o cognoscível. Pois, a palavra cognoscível exprime uma potência, ao passo que, ciência exprime um hábito ou um ato. Por onde, o cognoscível, pela sua significação mesma, preexiste à ciência.

Se, porém, considerarmos o cognoscível como atual, então, é simultâneo com a ciência, também atual, pois o conhecido não é nada se dele não há nenhuma ciência. Por onde, embora Deus tenha prioridade sobre as criaturas, como porém, a significação da palavra — Senhor — implica a existência do servo, e vice-versa esses dois termos relativos, Senhor e servo, são simultâneos por natureza. Por onde, Deus não era Senhor, antes de existir a criatura que lhe estivesse sujeita.

ART. VIII — SE O NOME DE DEUS É UM NOME DE NATUREZA


(In Sent. 1 d.2. Exp. text.)

O oitavo discute-se assim. — Parece que o nome de Deus não é um nome de natureza.

1. — Pois, diz Damasceno, que Deus vem de theein que significa prover todas as coisas e delas cuidar; ou também pode vir de aithein porque o nosso Deus é o fogo que consome toda malícia; ou ainda de theasthai, i.é, ver todas as coisas. Ora, todos estes nomes designam operações. Logo, o nome de Deus significa operação e não, natureza.

2. Demais. — Nós nomeamos um ser na medida em que o conhecemos. Ora, a natureza divina é-nos desconhecida. Logo, o nome de Deus não significa a natureza divina.

Mas, em contrário, diz Ambrósio que Deus é nome de natureza.

SOLUÇÃO. — A origem da significação de um nome nem sempre se identifica com a coisa mesma que o nome significa. Assim, como conhecemos a substância de um ser pelas suas propriedades ou operações, denominamos também, às vezes, essa substância por alguma de suas operações ou propriedades. P. ex., denominamos a substância da pedra por uma das suas ações — a de ferir o pé; contudo, este nome é usado, não para significar tal ação, mas, a substância mesma da pedra. Os seres, porém, que são em si mesmos conhecidos de nós, como o calor, o frio, a brancura e semelhantes, não são denominados por meio de outros. E, por isso, o que o nome de tais seres significa é idêntico à causa que deu origem à significação.

Ora, como a natureza de Deus não nos é conhecida senão pelas suas operações e pelos seus efeitos, podemos denominá-lo mediante estes e aqueles, como já dissemos. Por onde, o nome de Deus é um nome que designa operação, considerando-lhe a origem, que é a providência universal das coisas. Pois, todos os que falam de Deus entendem designar, com esse nome, o ser cuja providência universal cuida de todos os seres. Por isso, diz Dionísio, que a divindade é a que vê tudo com providência e bondade perfeita. E assim, o nome de Deus, originado dessa operação, foi imposto para significar a natureza divina.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Tudo isso, a que se refere Damasceno, diz respeito à providência, origem da significação do nome de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Na medida em que podemos conhecer a natureza de um ser pelas suas propriedades e efeitos, podemos também impor-lhe um nome. Ora, como sabemos o que é a pedra por lhe conhecermos a substância, mediante uma de suas propriedades, esse nome — pedra — significa a natureza da pedra em si mesma, pois, significa-lhe a definição pela qual sabemos o que ela é; porque a definição é a noção expressa pelo nome, como diz Aristóteles. Ora, pelos efeitos divinos não podemos conhecer a natureza divina tal qual é, de modo que lhe conheçamos a essência, que só podemos conhecer pelo método de eminência, de causalidade e de negação, como já dissemos (q. 12 a. 12). Por onde, o nome de Deus significa a natureza divina; pois, é imposto para significar um ser superior a tudo o que existe, princípio de tudo e de tudo separado. E é isso o que querem exprimir os que usam de tal nome.

ART IX — SE O NOME DE DEUS É COMUNICÁVEL


O nono discute-se assim. — Parece que o nome de Deus é comunicável.

1. — Pois, a qualquer ser a que se comunica o que é significado pelo nome, comunica-se também o próprio nome. Ora, o nome de Deus, como já se disse, significa a natureza divina, comunicável aos demais seres, conforme aquilo da Escritura (2 Pd 1, 4): Comunicou-nos as mui grandes e preciosas graças que tinha prometido, para que, por elas, sejais feitos participantes da natureza divina. Logo, o nome de Deus é comunicável.

2. Demais. — Só os nomes próprios não são comunicáveis. Ora, o nome de Deus não é próprio, mas, apelativo, pois, como é claro, tem plural, conforme a Escritura (Sl 81, 6): Eu disse: Sois deuses. Logo, o nome de Deus é comunicável.

3. Demais. — O nome de Deus tem a sua origem na operação, como já se disse (a. 8). Ora, outros nomes que impomos a Deus, originados das suas operações ou dos seus feitos, como bom, sábio, e outros, são comunicáveis. Logo, o nome de Deus é comunicável.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Sb 14, 21): Deram às pedras e ao pau um nome incomunicável; referindo-se ao nome de deidade. Logo, o nome de Deus é incomunicável.

SOLUÇÃO. — Um nome pode ser comunicável de dois modos: propriamente e por semelhança. É propriamente comunicável o nome que se aplica a muitos seres na sua significação total; e, por semelhança, quando é imposto só em relação a uma parte da sua significação. Assim, o nome de leão é, propriamente, comunicado a todos os seres que têm a natureza que tal nome exprime; é, porém, comunicável, por semelhança, aos seres que participam algo de leonino, como, a audácia ou a fortaleza, e são por isso, metaforicamente, chamados leões.

Ora, para sabermos que nomes são propriamente comunicáveis, devemos considerar que toda forma existente num sujeito singular, que a individua, é comum a muitos seres, realmente ou, pelo menos, racionalmente. Assim, a natureza humana é comum a muitos seres, real e racionalmente; ao passo que a natureza do sol não o é real, mas só racionalmente, pois pode ser entendida como existente em muitos sujeitos; e isto porque o intelecto intelige a natureza de uma espécie por abstração do singular. Por onde, existir num sujeito singular ou em vários é um fato estranho ao conceito que fazemos da natureza da espécie, e, por isso, o conceito da natureza específica ficando salvo, pode ser inteligido como existente em vários seres.

O singular pelo contrário, por isso mesmo que o é, é separado de tudo o mais, e, por isso, todo nome imposto para significar o singular é incomunicável, real e racionalmente. Pois, a pluralidade de um de-terminado indivíduo não pode cair sob a nossa apreensão. Por onde, nenhum nome que signifique um determinado indivíduo é comunicável propriamente, a muitos outros, mas, só, por semelhança; assim, um indivíduo pode ser denominado metaforicamente Aquiles ou ter alguma das propriedades de Aquiles, p. ex., a fortaleza.

As formas, porém, que não se individúam por meio de nenhum suposto estranho, mas, por si mesmas, porque são formas subsistentes, se as consideramos em si mesmas, não podem comunicar-se nem real nem racionalmente, mas só, talvez, por semelhança, como já dissemos tratando dos indivíduos. Mas, como não podemos inteligir as formas simples por si subsistentes, tais quais elas são em si mesmas, mas as inteligimos como se fossem seres compostos, que têm as formas realizadas na matéria, por isso, como já dissemos, impomos-lhes nomes concretos, que designam a natureza existente em algum suposto. Por onde, no que diz respeito ao conteúdo dos nomes, o caso dos nomes que impomos para significarem as naturezas das coisas compostas é o mesmo que o dos que impomos para significarem as naturezas simples subsistentes.

Portanto, sendo o nome de Deus imposto para significar a natureza divina, como já dissemos, e não sendo esta multiplicável, como ficou demonstrado, resulta, que o nome de Deus é, certo, realmente incomunicável, mas pode ser comunicável conforme a opinião de alguém; assim, como o nome sol é comunicável, na opinião dos que admitem vários sois. E, neste sentido, diz a Escritura (Gl 4, 8): Servíeis aos que por natureza não são deuses; o que comenta a Glosa: Não são deuses por natureza, mas na opinião dos homens. Contudo, se o nome de Deus não é comunicável na sua significação total, o é por algo que nele existe, por uma certa semelhança; e, neste sentido, chamamos deuses aos que participam, por semelhança, algo de divino, conforme aquilo da Escritura (Sl 81, 6): Eu disse: sois deuses.

Se, porém, existisse algum nome imposto para significar Deus, não em sua natureza, mas como sujeito, enquanto que ele é tal ser, esse nome seria, de qualquer modo, incomunicável, como se dá, talvez, com o tetragrama entre os Hebreus; e o mesmo se daria se alguém impusesse ao sol um nome que designasse precisamente esse indivíduo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A natureza divina não é comunicável senão pela participação da semelhança.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O nome de Deus é apelativo, e não próprio, porque significa a natureza divina como se ela existisse num sujeito; embora Deus mesmo, na realidade, não seja universal nem particular. Pois, os nomes não seguem o modo de ser real das coisas, mas o que existe em o nosso conhecimento. E, contudo, na verdade das coisas, o nome de Deus é incomunicável, como já dissemos, referindo-nos ao nome do sol.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os nomes — bom, sábio e semelhantes, são, certo, impostos como derivados das perfeições que procedem de Deus para as criaturas. São, porém, aplicados para significar, não a natureza divina mas, as perfeições mesmas, absolutamente falando; e, portanto, mesmo na verdade das coisas, são comunicáveis a muitos. Mas, o nome de Deus é imposto como tendo a sua origem na operação própria a Deus — e que nós experimentamos continuamente — para significarem a natureza divina.

ART. X — SE O NOME DE DEUS DELE SE PREDICA UNIVOCAMENTE, QUANTO À NATUREZA, À PARTICIPAÇÃO E À OPINIÃO


O décimo discute-se assim. — Parece que o nome de Deus se lhe atribui univocamente, quanto à natureza, à participação e à opinião.

1. — Pois, entre quem afirma e quem nega não há contradição se as palavras têm sentidos diversos, pois, a equivocação impede que se contradigam. Ora, o católico, dizendo — um ídolo não é Deus — contradiz o pagão que afirma um ídolo é Deus. Logo, Deus é tomado univocamente nessas duas expressões.

2. Demais. — Assim como um ídolo é Deus conforme uma certa opinião e não na realidade das coisas, assim o gozo dos prazeres carnais também se chama felicidade, de acordo com certa opinião e não na realidade. Ora, a palavra felicidade predica-se univocamente tanto da que o é, por opinião, como da que verdadeiramente é tal. Logo, também o nome de Deus se predica univocamente do Deus real, como do que uma opinião considera tal.

3. Demais. — São unívocos os termos que têm a mesma significação. Ora, quando um católico diz que Deus é uno, ele entende por esse nome um ser onipotente e digno de veneração, mais que todos os outros; e o mesmo entende o gentio quando diz que um ídolo é Deus. Logo, em ambos os casos o nome de Deus é empregado univocamente.

Mas, em contrário. — O que está na inteligência é uma semelhança do que existe na realidade, como diz Aristóteles. Ora, o termo animal é empregado equivocamente quando atribuído a um animal verdadeiro e a um animal pintado. Logo, o nome de Deus é predicado equivocamente quando é atribuído ao Deus verdadeiro e ao que a opinião julga tal.

Demais. — Ninguém pode exprimir o que não conhece. Ora, o gentio não conhece a natureza divina. Logo, quando diz — um ídolo é Deus — não exprime a verdadeira deidade, a qual o católico exprime dizendo que Deus é um só. Logo, o nome de Deus não se predica unívoca, mas, equivocamente, do Deus verdadeiro e do que uma opinião qualquer julga como tal.

SOLUÇÃO. — O nome de Deus não é tomado, nas três significações propostas, nem unívoca, nem equívoca, mas analogicamente, o que assim se demonstra. Os termos unívocos têm a mesma significação; os equívocos têm significação diversa; nos análogos, porém, é necessário que a significação de um nome, tomado numa acepção, apareça na definição desse mesmo nome tomado em outras acepções. Assim, a palavra ser, predicado da substância, entra na definição de ser quando predicado do acidente; do mesmo modo são, predicado de um animal, entra na definição de são predicado da urina e de um remédio; pois, da saúde do animal, a urina é o sinal, e o remédio, a causa. Ora, o mesmo se dá com o caso em questão, pois quando o nome de Deus é tomado pelo verdadeiro Deus, este vocábulo exprime, quer uma opinião, quer uma participação.

Assim, quando dizemos que alguém é Deus por participação, entendemos por esse nome, um ser que tem semelhança com o verdadeiro Deus. Semelhantemente, quando dizemos que um ídolo é Deus, queremos, com o nome de Deus, designar um ser que a opinião dos homens considera tal. Por onde, é manifesto que são diferentes as significações esse nome; mas, uma delas está contida nas outras e, portanto, é claro que tal nome é predicado analogicamente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A multiplicidade de acepções dos nomes não depende da predicação mas, da significação deles. Pois, o nome de homem tem sempre a mesma significação, seja qual for a sua predicação, verdadeira ou falsa. Mas, teria múltiplas acepções, se com ele quiséssemos significar seres diversos; assim, se um quisesse designar com esse nome, o homem verdadeiro e outro, uma pedra ou causa semelhante. Por onde, é claro que quando o católico diz, que um ídolo não é Deus, contradiz ao pagão que tal afirma, porque ambos empregam o nome de Deus para designar o Deus verdadeiro. Mas, quando o pagão diz que um ídolo é Deus, não emprega esse nome para significar um Deus que uma opinião considera como tal, porque então diria a verdade; pois, que também os católicos às vezes empregam esse nome nessa significação, como quando a Escritura diz (Sl 95, 5): Todos os deuses das gentes são demônios.

E o mesmo devemos responder, à segunda e à terceira objeções. — Pois, essas objeções procedem, quanto à diversidade da predicação do nome, e, não, quanto à diversidade da significação.

RESPOSTA À QUARTA. — Não é em sentido puramente equivoco que predicamos o nome de animal, do animal verdadeiro e do pintado. Mas, o Filósofo toma os nomes equívocos em sentido lato, enquanto em si incluem os análogos; pois o ente, empregado analogicamente é atribuído às vezes, equivocamente, aos diversos predicamentos.

RESPOSTA À QUINTA. — Nem o católico nem o pagão conhecem a natureza de Deus como ela é em si mesma; mas, só a conhecem pelas noções de causalidade ou de excelência ou de remoção, como já dissemos (q. 12, a. 12). E neste sentido, quando o gentio usa do nome de Deus, dizendo — Um ídolo é Deus, pode tomá-lo na mesma significação em que o toma o católico quando diz que um ídolo não é Deus. Porém se houvesse alguém desprovido totalmente da noção de Deus, esse não poderia nomeá-lo, a não ser no sentido em que nós proferimos nomes cuja significação ignoramos.

ART. XI — SE A DENOMINAÇÃO — AQUELE QUE É — É POR EXCELÊNCIA O NOME PRÓPRIO DE DEUS


(I Sent., dist. 8, q. 1, a. 1, 3; De Pot., q. 2, a.1; q. 7, a. 5; q. 10, a. 1 ad 9; De Div. Nom., cap. V, lect. I)

O undécimo discute-se assim. — Parece que a denominação — Aquele que é — não é, por excelência, o nome próprio de Deus.

1. — Pois, o nome de Deus é incomunicável, como já dissemos (a. 9). Ora, isto não se dá com a denominação — Aquele que é. Logo, esta denominação não é própria de Deus.

2. Demais. — Dionísio diz, que o nome de bem é manifestativo de todas as processões de Deus. Ora, convém a Deus, por excelência, ser o princípio universal das coisas. Logo, a denominação própria de Deus, por excelência, é a de bem e não Aquele que é.

3. Demais. — Todo nome divino parece que deve implicar uma relação com as criaturas, pois não conhecemos a Deus senão por meio destas. Ora, a denominação — Aquele que é — não implica nenhuma relação com as criaturas. Logo, essa denominação — Aquele que é — não é, por excelência, própria de Deus.

Mas, em contrário, a Escritura (Ex 3, 13): a Moisés que perguntava: Se eles me disserem: que nome é o seu? Que lhes hei-de eu responder — respondeu-lhe o Senhor: Eis-aqui o que tu hás-de dizer aos filhos de Israel: Aquele que é me enviou a vós. Logo, é a denominação — Aquele que é — por excelência, própria de Deus.

SOLUÇÃO. — A denominação — Aquele que é — por excelência é própria de Deus, por três razões.

Primeira, pela sua significação, pois não significa nenhuma forma, mas, o próprio ser. Ora, sendo em Deus a existência idêntica à essência, o que não se dá com nenhum outro ser, como já demonstramos (q. 3, a. 4), é manifesto que, entre outras, a denominação de que se trata é a que convém a Deus, por excelência; pois, um ser é denominado pela sua forma.

Segunda, por causa da sua universalidade. Pois, todos os outros nomes são menos gerais, ou, se são equivalentes à denominação vertente, contudo, acrescentam-lhe algo, racionalmente, e de certo modo informam-na e a determinam. Ora, o nosso intelecto não pode, nesta vida, conhecer a essência mesma de Deus, tal como ela em si é; por onde, seja qual for o modo por que determinamos o que inteligimos de Deus, não poderemos nunca compreender o que Deus em si mesmo é. E, portanto, quanto menos determinados e quanto mais gerais e absolutos forem certos nomes, tanto mais propriamente nós os atribuiremos a Deus. E por isso, diz Damasceno, que de todos os nomes atribuídos a Deus, é o principal — Aquele que é; pois, compreendendo tudo em si, exprime o ser mesmo, como uma espécie de pélago infinito e indeterminado da substância. Ao passo que qualquer outro nome determina apenas um aspecto da substância da coisa designada, a denominação — Aquele que é — não determina nenhum modo de ser, porque se comporta indeterminadamente em relação a todos e, portanto, designa o pélago mesmo infinito da substância.

Terceira, pelo que está incluído na sua significação mesma, que é o ser presente, que se atribui a Deus por excelência, cujo ser não conhece pretérito nem futuro, como diz Agostinho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A denominação — Aquele que é — quanto à sua origem, é mais própria de Deus, que este último nome mesmo; pois, ela se origina do ser, tanto quanto à sua significação, como quanto ao conteúdo desta, conforme já dissemos. Mas, quanto ao ser designado, o nome de Deus é mais próprio, porque é usado para significar a natureza divina; se bem que mais próprio ainda é o nome do tetragrama, imposto para significar a própria essência incomunicável, e, por assim dizer, singular, de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O nome de bem é o principal nome de Deus, como causa; mas, não de Deus, considerado em absoluto, pois absolutamente falando, nós inteligimos o ser antes de inteligirmos a causa.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não é necessário que todos os nomes divinos impliquem relação de Deus com as criaturas; mas, basta que sejam impostos, fundados em certas perfeições, que procedem de Deus para elas; e entre essas perfeições a primeira é o ser mesmo, donde derivou a denominação — Aquele que é.

ART. XII — SE PODEMOS FORMAR SOBRE DEUS PROPOSIÇÕES AFIRMATIVAS


(I Sent., dist. IV, q. 2, a. 1; dist. XXII, a. 2, ad 1; I Cont. Gent., cap. XXXVI; De Pot., q. 7, a. 5, ad 2)

O duodécimo discute-se assim. — Parece que não podemos formar sobre Deus proposições afirmativas.

1. — Pois, diz Dionísio, que as negações, sobre Deus, são verdadeiras, mas, as afirmações são inconsistentes.

2. Demais. — Boécio diz, que a forma simples não pode ser sujeito. Ora, Deus é forma simples, por excelência, como já se demonstrou (q. 3, a. 7). Logo, não pode ser sujeito. Ora, todo o ser sobre o qual podemos formar uma proposição afirmativa é tomado como sujeito. Logo, não podemos formar sobre Deus proposições afirmativas.

3. Demais. — Todo o intelecto, que compreende as coisas diferentemente do que elas são, é falso. Ora, Deus tem o ser sem nenhuma composição, como já se provou (q. 3). E, como todo intelecto, que afirmar alguma coisa, a intelige com composição, resulta que não podemos, verdadeiramente, formar sobre Deus proposições afirmativas.

Mas, em contrário, a fé não contém nada de falso. Ora, ela encerra certas proposições afirmativas, como: Deus é trino e uno, é onipotente. Logo, podemos formar, verdadeiramente, a respeito de Deus proposições afirmativas.

SOLUÇÃO. — Podemos formar, verdadeiramente, a respeito de Deus, proposições afirmativas. Para evidenciá-lo devemos considerar que, em qualquer proposição afirmativa verdadeira, é necessário que o predicado e o sujeito exprimam a mesma realidade, de certo modo, e coisas diversas, quanto à noção. E isto é claro, não só quanto às proposições em que a predicação é acidental, mas também em relação àquelas em que ela é substancial. Pois, é manifesto que — homem e branco — têm idêntico sujeito, mas representam noções diferentes; pois, uma é a noção de homem e outra, a de branco. E o mesmo se dá quando digo — o homem é um animal racional; pois, o homem é, em si mesmo e verdadeiramente, animal racional; porque o mesmo é o suposto da natureza sensível, em virtude da qual é chamado animal, e da natureza racional, em virtude da qual é chamado homem.

Por onde, também neste caso, o predicado e o sujeito têm idêntico suposto mas, noções diversas. E ainda, isto mesmo se dá, de certo modo, com as proposições nas quais um sujeito é predicado de si mesmo; pois, então àquilo que a inteligência toma como sujeito ela o faz desempenhar o papel de suposto; e ao que toma como predicado dá a natureza de forma do suposto; e é isto que leva os lógicos a dizerem que os predicados são tomados formalmente e os sujeitos, materialmente. Ora, a esta diversidade racional corresponde a pluralidade de predicado e de sujeito; ao passo que a identidade real o intelecto a exprime pela composição mesma. — Ora, Deus, em si mesmo considerado, é absolutamente uno e simples; contudo, o nosso intelecto o conhece por meio de conceitos diversos, já que não pode vê-lo tal como em si mesmo é.

Mas, embora o intelija sob noções diversas, sabe, contudo que a todas as suas noções corresponde um mesmo ser simples. Por onde, essa pluralidade racional ele o representa pela pluralidade de predicado e sujeito; e a unidade, por meio da composição.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dionísio diz, que as afirmações sobre Deus são inconsistentes; ou inconvenientes, segundo outra tradução, porque nenhum nome lhe convém quanto ao modo de significar, como já dissemos (a. 3).

RESPOSTA À SEGUNDA. — O nosso intelecto não pode compreender as formas simples subsistentes, tais como elas em si mesmas são; mas, as apreende ao modo dos compostos, nos quais há um sujeito e o que a esse sujeito é inerente. Por onde, apreende a forma simples como se fosse sujeito e lhe atribui alguma coisa.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A proposição — o intelecto que compreende as coisas diferentemente do que elas são é falso — tem duplo sentido, porque o advérbio diferentemente pode determinar o verbo compreende, em relação ao objeto compreendido, ou ao sujeito que compreende. No primeiro caso, a proposição é verdadeira e o seu sentido é: qualquer intelecto que compreende uma coisa diferentemente do que ela é, é falso. Ora, isto não se dá no caso vertente, porque o nosso intelecto, quando forma uma proposição sobre Deus, não diz que ele é composto, mas, simples. No segundo caso, porém, a proposição é falsa; pois, então, o modo pelo qual o intelecto compreende é diferente do pelo qual a coisa existe.

Pois, é manifesto que o nosso intelecto intelige imaterialmente as coisas materiais que lhe são inferiores; não que as intelija como imateriais, mas, porque tem um modo imaterial de as inteligir. E, semelhantemente, quando intelige os seres simples, que lhe são superiores, intelige-os ao seu modo, como se fossem compostos, mas, sem pensar que sejam realmente compostos. E assim, o nosso intelecto não é falso, quando afirma em Deus alguma composição.