domingo, 30 de janeiro de 2011

II - Pai que estais no céu

II

"Pai que estais no céu"


1. Começamos por um testemunho sobre Deus e pelo efeito da fé, quando dizemos: "Pai, que estás no céu". De fato, aí não só oramos a Deus, mas também mostramos a nossa fé, que tem por consequência chamá-lo de Pai. Como está escrito, "Àqueles que crêem em Deus, foi lhes dado o poder de ser chamados filhos de Deus" (Jo 1, 12).

2. Aliás, o Senhor, muitas vezes, nos faz saber que Deus é Pai. Até mesmo ordenou que a ninguém chamemos de Pai sobre a terra (cf. Mt 23, 9), mas só Àquele que temos no céu. Portanto, ao orar desta forma, cumprimos também um preceito.

3. Felizes aqueles que reconhecem o Pai. Eis o que Deus censura a Israel, eis o que afirma, chamando por testemunhas o céu e a terra: "Gerei filhos, e eles não me reconheceram" (Is 1, 2).

4. Dizendo, pois, Pai, damos a Deus o seu nome, termo que significa atitude filial e autoridade.

5. Dizendo Pai, invocamos também o Filho. O Senhor disse: "Eu e o Pai somos um" (Jo 10, 30).

6. Nem mesmo a Mãe Igreja é preterida, pois no Filho e no Pai reconhecemos também a Mãe, que nos atesta o nome do Pai e do Filho.

7. Assim, por esta única relação de afinidade, adoramos a Deus, cumprimos o preceito e condenamos os que esquecem seu Pai.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

I - Cristo ensina uma nova forma de oração

I
Cristo ensina uma nova forma de oração


1. Jesus Cristo, nosso Senhor, que é tanto Espírito de Deus, como Palavra de Deus e Verbo de Deus, (Palavra do Verbo e Verbo da Palavra), instituiu para os novos discípulos do Novo Testamento uma nova forma de oração. Convinha, realmente, que também nesse plano se guardasse o vinho novo em odres novos e se costurasse um pano novo numa veste nova (cf. Mt 9, 16-17; Mc 2, 21-22; Lc 5, 36-39). De resto, tudo que viera antes, ou foi inteiramente abolido como a circuncisão, ou foi completado como o resto da Lei, ou cumprido como a profecia, ou levado à perfeição como a própria fé.

2. A nova graça de Deus renovou todas as coisas, fazendo-as passar de carnais a espirituais, mediante o Evangelho, que opera a revisão de todas as coisas antigas. Pelo Evangelho, nosso Senhor Jesus Cristo se fez reconhecer como Espírito de Deus, Palavra de Deus e Verbo de Deus: Espírito, por seu poder eficaz; Palavra, por seu ensinamento; Verbo, por sua vinda. Assim, pois, a oração instituída por Cristo reúne três dimensões: a do Espírito, razão da sua grande eficácia; a da Palavra, em que ela se exprime; e do Verbo.

João já ensinara seus discípulos a orar

3. Também João Batista já ensinara seus discípulos a orar. Mas tudo em João era preparação à vinda de Cristo. Quando Cristo cresceu, João já anunciara que era preciso que Cristo crescesse e ele mesmo diminuísse (cf. Jo 3, 30) toda a obra do precursor se transferiu para o Senhor, segundo o espírito de João. Por isso, nada nos resta das palavras com que João ensinou a orar, pois as coisas terrenas deram lugar às celestes. "Quem é da terra - diz João - fala o que é da terra, mas o que vem do céu fala daquilo que viu" (Jo 3, 31-32). E o que não é celeste no Cristo Senhor, inclusive o seu ensinamento sobre a oração?

Como orar

4. Consideremos, pois, irmãos abençoados, a celeste sabedoria de Cristo, que se manifesta, em primeiro lugar, pelo preceito de orar em segredo (cf. Mt 6, 6). Por aí Cristo induzia o homem a acreditar que o Deus Onipotente nos vê e nos escuta em toda parte, mesmo em casa e nos lugares mais escondidos. Ao mesmo tempo, ele queria que a nossa fé fosse discreta, de modo que, confiante na presença e no olhar de Deus em toda parte, reservasse o homem só a Deus a sua veneração.

5. Já no preceito seguinte (cf. Mt 6, 7), se manifesta uma sabedoria que se refere tanto à fé, como ao discernimento da fé. Pois, certos de que Deus em sua providência olha pelos seus, não se deve pensar que para nos aproximarmos dele precisamos de muitas palavras.

Uma oração breve

6. Aqui chegamos, por assim dizer, ao terceiro grau da sabedoria. Com efeito, essa brevidade está apoiada na significação de palavras grandes e felizes, pois quanto mais curta, mais rica de sentido é esta oração. De fato, ela não compreende apenas a exigência própria da oração, isto é, a veneração de Deus e a súplica do homem, mas quase todas as palavras do Senhor. Constitui uma lembrança de todo o seu ensinamento, de tal modo que nela temos uma síntese de todo o Evangelho.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Questão LX: Do amor ou da dileção dos anjos

Questão 60: Do amor ou da dileção dos anjos


Em seguida deve se considerar o ato da vontade, que é o amor ou dileção, pois, todo ato da virtude apetitiva deriva do amor ou dileção.
E, sobre este ponto, cinco artigos se discutem:
  1. Se nos anjos há amor ou dileção natural.
  2. Se nos anjos há dileção eletiva.
  3. Se o anjo se ama a si mesmo por dileção natural e eletiva.
  4. Se um anjo, pela dileção natural, ama a outro como a si mesmo.
  5. Se o anjo, pela dileção natural, mais ama a Deus que a si mesmo.

Art. 1 — Se nos anjos há amor ou dileção natural


(III Sent., dist. XXVII, q. 1, a. 2.)

O primeiro discute-se assim. – Parece que nos anjos não há amor ou dileção natural.

1. — Pois, o amor natural se opõe ao intelectual, como se vê em Dionísio. Ora, o amor do anjo é intelectual. Logo, não é natural.

2. Demais. — Os seres que amam por amor natural mais são conduzidos do que agem por si; pois nenhum tem o domínio da sua natureza. Ora, os anjos não são conduzidos, mas agem por si, dotados que são de livre arbítrio, como já se demonstrou. Logo, neles não há amor ou dileção natural.

3. Demais. — Toda dileção ou é reta ou não; respeitando aquela à caridade, esta, à iniqüidade. Ora, a caridade não respeita à natureza, por ser superior a esta; nem a iniquidade, por ser contrária à mesma. Logo, não há nos anjos dileção natural.

Mas, em contrário, a dileção se segue ao conhecimento, pois só se ama o que se conhece, como diz Agostinho. Ora, nos anjos há conhecimento natural. Logo, também há a dileção natural.

SOLUÇÃO. — É necessário admitir-se nos anjos a dileção natural; o que se evidencia considerando-se que o anterior deve existir no posterior. Ora, sendo a natureza, essência do ser, anterior ao intelecto, o que pertence à natureza deve existir também nos seres inteligente. Mas, é comum a toda natureza uma certa inclinação, que é o apetite natural ou o amor; e essa inclinação existe diversamente nas diversas naturezas; em cada uma ao modo dessa. Donde, na natureza intelectual, a inclinação natural se funda na vontade; na sensitiva, no apetite sensitivo; enfim, na desprovida de conhecimento, na só tendência da natureza. Por isso, o anjo, sendo de natureza intelectual, necessário é tenha na sua vontade a dileção natural.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O amor intelectual se opõe ao natural, que é somente natural; pois, como tal lhe não acrescenta a natureza, além da essência da mesma, a perfeição do sentido ou do intelecto.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Todos os seres da totalidade do universo são conduzidos por outro; salvo o agente primeiro, o qual, identificando-se nele a natureza e a vontade, age de modo que por nenhum outro é conduzido. Por onde, não é inconveniente que o anjo seja conduzido, pois a sua inclinação natural lhe foi infundida pelo autor da sua natureza. Contudo, ele não é conduzido de modo tal que não tenha atividade própria, dotado que é de vontade livre.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como o conhecimento natural sempre é verdadeiro, a dileção natural sempre é reta, pois, o amor natural nada mais é do que a inclinação da natureza, nela infundida pelo seu autor. Dizer, portanto, que não seja reta a inclinação da natureza é ir contra o autor desta. Contudo, uma é a retidão da dileção natural, outra a da caridade e da virtude; pois, esta é perfectiva daquela. Do mesmo modo que uma é a verdade do conhecimento natural, e outra a do conhecimento infuso ou adquirido.

Art. 2 — Se nos anjos há dileção eletiva


(Ia IIae, q. 10, a. 1; De Verit., q. 22, a. 2.)

O segundo discute-se assim. — Parece que nos anjos não há dileção eletiva.

1. — Pois a dileção eletiva é o amor racional resultando do conselho, que consiste numa inquisição, como diz Aristóteles. Ora, o amor racional se opõe ao intelectual, próprio dos anjos, como diz Dionísio. Logo, nos anjos não há dileção eletiva.

2. Demais. — Além do conhecimento infuso, só há nos anjos o natural, pois eles não partem de princípios para chegar a conclusões. E assim comportam-se para com tudo o que naturalmente podem conhecer como o nosso intelecto para com os primeiro princípios naturalmente cognoscíveis, conforme já se disse. Logo, nos anjos, além da dileção gratuita só há a dileção natural, não havendo, portanto, a eletiva.

Mas, em contrário — Pelo que nos é natural, nem merecemos nem desmerecemos. Ora, os anjos, pela sua dileção, merecem ou desmerecem. Logo, há neles dileção eletiva.

SOLUÇÃO. — Há nos anjos uma dileção natural e outra eletiva, sendo aquela o princípio desta, pois sempre o que tem prioridade de existência exerce a função de princípio. Por onde, sendo a natureza o que é primário em qualquer ser, é necessário que o atinente a ela seja nesse ser o princípio. E isto bem se vê no homem, quanto ao intelecto e quanto à vontade. Pois, o intelecto conhece os princípios naturalmente e desse conhecimento resulta para a ciência das conclusões, não conhecidas naturalmente, mas por invenção ou por doutrina. E semelhantemente, o fim é na vontade o que o princípio é no intelecto, conforme diz Aristóteles. Donde, a vontade tende naturalmente para o seu fim último, pois todo homem quer naturalmente a felicidade. E dessa vontade natural resultam todas as demais vontades, porque o homem quer, por causa de um fim, tudo o que quer. Portanto, a dileção do bem, que o homem naturalmente quer como fim, é uma dileção natural; porém, a dileção do bem, amado por causa do fim, é derivada da primeira e é a dileção eletiva.

Mas as coisas se passam diferentemente em relação ao intelecto e à vontade. Pois, como já ficou dito, pelo conhecimento intelectual as coisas conhecidas estão no ser que conhece. Sendo por imperfeição da natureza intelectual que o intelecto humano não apreende imediata e naturalmente todos os inteligíveis, mas só alguns, pelos quais, de certo modo, alcança os outros. — Ao passo que, inversamente, o ato da virtude apetitiva parte do apetente para as coisas, das quais, umas são por si boas e apetecíveis, e outras o são dependentemente de outra. Por isso, não é imperfeição apetecer naturalmente uma coisa, como fim e outra, por eleição, como ordenada ao fim. Ora, sendo a natureza intelectual dos anjos perfeita, neles há só o conhecimento natural; não o racionativo; havendo porém a dileção natural e a eletiva. — Tudo porém o que se acaba de dizer é com exclusão do sobrenatural, do qual não é a natureza o princípio suficiente, e disso se tratará em seguida.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dividindo-se por oposição o amor racional do intelectual, nem toda dileção eletiva é amor racional. Pois, chama-se amor racional ao que resulta do conhecimento racionativo. Ora, nem toda eleição resulta do discurso da razão, mas só a eleição humana, como já se disse quando se tratou do livre arbítrio. Logo, a objeção não colhe.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Resulta a resposta do que ficou dito.

Art. 3 — Se o anjo se ama a si mesmo por dileção natural e eletiva


(Ia IIae, q. 26, a. 4; q. 29, a. 4; De Div. Nom., cap. IV, lect. IX)

O terceiro discute-se assim. — Parece que o anjo não se ama a si mesmo por dileção natural e eletiva.

1. — Pois a dileção natural se refere ao fim, como já se disse; ao passo que a eletiva, aos meios. Mas o referente ao fim não se pode identificar com o referente aos meios, no mesmo ponto de vista. Logo, a dileção natural e a eletiva não podem ter o mesmo objeto.

2. Demais. — O amor é virtude unitiva e concretiva, como diz Dionísio. Mas a união e a concreção se referem a diversos objetos reduzidos a um só. Logo, não pode o anjo amar-se a si mesmo.

3. Demais. — Dileção é movimento. Mas todo movimento tende para um termo. Logo, o anjo se não pode amar a si mesmo por amor natural nem eletivo.

Mas, em contrário, diz o Filósofo que a amizade para com outrem vem da que temos para conosco mesmo.

SOLUÇÃO. — Tendo o amor por objeto o bem, e sendo este substancial e acidental, conforme diz Aristóteles, de dois modos pode uma coisa ser amada: como bem subsistente e como bem acidental ou inerente. A que se ama pelo primeiro modo, a essa se lhe deseja algum bem; a que se ama pelo segundo é a que se deseja para outra coisa: assim a ciência é amada, não por ser boa, mas por ser possuída. A esta espécie de amor alguns chamaram concupiscência; à primeira, porém, amizade. Ora, é claro que os seres privados de conhecimento naturalmente apetecem o que lhes é o bem; assim, o fogo apetece o lugar superior. Por isso, também o anjo e o homem naturalmente apetecem o bem próprio e a própria perfeição; e a isto se chama amar-se a si mesmo. Por onde, naturalmente o anjo, como o homem, ama-se a si mesmo, pois deseja para si algum bem, pelo apetite natural. Mas, na medida em que deseja para si e por eleição algum bem, nessa mesma ama-se a si por dileção eletiva.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O anjo, como o homem, não se ama a si mesmo por dileção natural e eletiva, em relação ao mesmo ponto de vista, mas a diversos, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como mais é ser uno do que ser unido, assim é mais uno o amor a si mesmo do que o às diversas coisas que estão unidas ao amante. E Dionísio, usando os termos união e concreção, quis mostrar como o amor deriva do amante para os outros seres, do mesmo modo que, de um deriva unicidade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como o amor é ação imanente no agente, assim é movimento imanente no amante, e não transitivo, necessariamente, a algo de exterior; pode, porém, refletir-se sobre o amante para que se ame a si mesmo, assim como o conhecimento se reflete no conhecente, para que se conheça a si mesmo.

Art. 4 — Se um anjo, pela dileção natural, ama a outro como a si mesmo


(De div. nom., cap. IV, lect. IX)

O quarto discute-se assim. — Parece que um anjo, por dileção natural, não ama a outro como a si mesmo.

1. — Pois, a dileção resulta do conhecimento. Ora, um anjo não conhece a outro como a si mesmo, pois, conhecendo-se a si mesmo por meio da sua essência, só conhece a outro pela sua semelhança, como já se disse antes. Logo, um anjo não ama a outro como a si mesmo.

2. Demais. — A causa é superior ao causado e o princípio, ao que de si deriva. Ora, a dileção para com outrem deriva da para consigo mesmo, conforme diz o Filósofo. Logo, um anjo não ama a outro como a si mesmo, mas se ama a si mesmo mais.

3. Demais. — A dileção natural ama o fim e não se pode perder. Ora, um anjo não é fim de outro; e além disso, essa dileção pode perder-se, como se vê pelos demônios, que não amam aos bons anjos. Logo, um anjo não ama a outro, por dileção natural, como a si mesmo.

Mas, em contrário, o que se encontra em todos os seres, mesmo nos desprovidos de razão, é natural. Ora, como diz a Escritura (Ecle 13, 19), todo animal ama ao seu semelhante. Logo, um anjo ama naturalmente a outro como a si mesmo.

SOLUÇÃO. — Como já se disse, o anjo e o homem naturalmente se amam a si mesmo. Ora, o que com outro ser se unifica com este se identifica e, por isso, cada ser ama o que consigo se unifica. E se o for por união natural, ama-lo-á por dileção natural; se por união não-natural, ama-lo-á por dileção não-natural. Assim, o homem ama o seu concidadão por dileção da virtude política; o consanguíneo, porém por dileção natural, pois se unifica com ele pelo princípio da geração natural. Ora, é manifesto que o que com outro se unifica, genérica ou especificamente, por natureza se unifica. Por onde, um ser ama, por dileção natural, aquilo que com ele especificamente se unifica, na medida em que ama a sua própria espécie. O que se vê, mesmo nos seres desprovidos de conhecimento; pois, o fogo tem inclinação natural para comunicar a sua forma, que é o seu bem, a outro ser; assim como naturalmente se inclina a buscar o seu bem, isto é, estar na parte superior.

Portanto, deve-se dizer que um anjo ama a outro, por natural dileção, na medida em que com esse outro convém, por natureza. Na medida, porém, em que com esse outro convém, por outras conveniências ou dele difere, por certas diferenças, não o ama por natural dileção.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A expressão como a si mesmo pode, de um modo, determinar o conhecimento ou a dileção da parte do conhecido e do amado. E assim um anjo conhece a outro como a si mesmo, conhecendo a existência desse outro como se conhece a si mesmo existente. De outro modo, pode determinar o conhecimento e a dileção, da parte de quem ama e conhece. E assim, não conhece a outro como a si mesmo, pois, se conhece a si por meio da sua essência, a outro, porém, não o conhece pela essência desse. Semelhantemente, não ama a outro como a si mesmo, porquanto a si mesmo se ama pela sua vontade, a outro, porém, não o ama pela vontade desse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como não designa a igualdade, mas a semelhança. Pois, fundando-se a dileção natural na unidade natural, o que está menos unificado com o anjo, naturalmente é menos amado. Por onde, ele ama naturalmente o que consigo se unifica, numericamente, mais do que o unificado específica ou genericamente. Mas é natural tenha, para com outro, dileção semelhante à para consigo mesmo, enquanto que, amando-se a si mesmo, por querer para si o bem, ame a outro querendo-lhe o bem desse outro.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz-se que a dileção natural visa o fim, não enquanto alguém deseja para outro algum bem, mas enquanto, desejando para si algum bem, consequentemente o deseja para outrem, estando este identificado com aquele. E nem pode essa dileção natural ser perdida, mesmo dos anjos maus, de modo que deixassem de ter dileção natural para com os santos anjos, com os quais comunicam pela natureza, embora os odeiem, diversificados que são pela justiça e pela injustiça.

Art. 5 — Se o anjo, pela dileção natural, mais ama a Deus que a si mesmo


(Ia IIae, q. 109, a. 3; IIa IIae, q. 26, a. 3; II Sent., dist. III, part. II, q. 3; III dist. 29, a. 3; Quodl. I, q. 4, a. 3; De div. nom., cap. IV, lect. IX, X)

O quinto discute-se assim. — Parece que o anjo, por dileção natural, não ama a Deus mais que a si mesmo.

1. — Pois, como já se disse, a dileção natural se funda na união natural. Ora, a natureza divina dista maximamente da do anjo. Logo, por dileção natural, o anjo ama a Deus menos que a si próprio ou mesmo que a outro anjo.

2. Demais. — Toda causa inclui, em grau eminente, o seu efeito. Ora, o que alguém ama por dileção natural é por causa de si, pois todo ser ama alguma coisa, enquanto é o seu bem. Logo, por dileção natural, o anjo não ama a Deus mais que a si mesmo.

3. Demais. — A natureza se reflete sobre si mesma, pois vemos que todo agente naturalmente age para a conservação de si. Ora, a natureza não se refletiria sobre si mesma se tendesse mais para outra coisa do que para si própria. Logo, por dileção natural, o anjo não ama a Deus mais que a si mesmo.

4. Demais. — É próprio à caridade o amarmos a Deus mais que a nós mesmos. Ora, a dileção da caridade não é natural aos anjos, mas se lhes infunde nos corações pelo Espírito Santo, que lhes foi dado, como diz Agostinho. Logo, por dileção natural, os anjos não amam a Deus mais que a si mesmos.

5. Demais. — A dileção natural sempre permanece, permanecendo a natureza. Ora, o amor a Deus mais que a si mesmo não permanece no anjo ou no homem pecadores; pois, como diz Agostinho dois amores fizeram duas cidades, a saber: a terrena, o amor de si até o desprezo de Deus; a celeste, porém, o amor de Deus até o desprezo de si. Logo, amar a Deus mais que a si mesmo não é natural.

Mas, em contrário. Todos os preceitos morais da lei pertencem à lei natural. Ora, amar a Deus mais que a si mesmo, sendo preceito moral da lei, o é também da lei natural. Logo, por dileção natural, o anjo ama a Deus mais que a si mesmo.

SOLUÇÃO. — Alguns disseram que o anjo, por dileção natural, ama a Deus mais que a si mesmo, por amor de concupiscência, pois mais deseja para si o bem divino do que o seu bem. E também por amor de amizade, querendo o anjo, naturalmente, para Deus, maior bem do que para si; pois, naturalmente, quer que Deus seja Deus, querendo, porém, para si, a sua natureza própria. Mas, absolutamente falando, por dileção natural, mais se ama a si do que a Deus, pois, naturalmente mais intensa e principalmente ama-se a si do que a Deus.

Mas, surgirá de manifesto a falsidade desta opinião a quem considerar para o que se movem, naturalmente, os seres naturais; pois, a inclinação natural, nos seres desprovidos de razão indica a da vontade da natureza intelectual. Ora, o ser natural que, por natureza, depende de outro, naquilo mesmo que é, mais principalmente se inclina para esse outro do que para si próprio. E essa inclinação natural se verifica nas coisas naturalmente feitas. Assim, uma coisa é produzida pela natureza como é natural que a façamos, diz Aristóteles. Ora, vemos a parte se expor, naturalmente, para a conservação do todo; assim, a mão se expõe ao golpe, sem deliberar, para a conservação de todo o corpo. E, como a razão imita a natureza, tal imitação encontramos nas virtudes políticas; pois, é próprio do cidadão virtuoso expor-se ao perigo de morte pela conservação de toda a república; e se o homem fosse parte natural de tal república, natural lhe seria essa inclinação.

Como, porém, em Deus mesmo é o bem universal, e esse bem abrange também o anjo, o homem e toda criatura, porque toda criatura, naturalmente, pelo seu ser, vem de Deus, resulta que, por dileção natural, também o anjo, como o homem, ama a Deus mais e mais principalmente do que a si próprio. Do contrário, se naturalmente amasse mais a si mesmo que a Deus, resultaria que a dileção natural seria perversa e não se aperfeiçoaria, mas se destruiria pela caridade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essa objeção procede quanto aos seres que entre si se distinguem no mesmo pé de igualdade, nos quais um, não sendo a razão da existência e da bondade do outro, ama naturalmente mais a si mesmo do que ao outro, pois, mais unificado está consigo mesmo do que com o outro. Mas ao ser que é a razão total da existência e da bondade dos outros, mais se ama, naturalmente, do que a si mesmo; e assim, dissemos que cada parte ama, naturalmente, o todo mais que a si; e cada indivíduo singular ama, naturalmente, mais o bem da sua espécie do que o seu bem singular. Ora, Deus, sendo não somente o bem de uma espécie, mas o mesmo bem universal absolutamente, daí resulta que cada ser ama naturalmente, ao seu modo, mais a Deus que a si mesmo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No dizer-se que deus é amado pelo anjo enquanto é o bem deste, se enquanto exprimir o fim, então há falsidade, pois, o anjo não ama naturalmente a Deus por causa do bem do anjo, mas por causa de Deus mesmo. Se, porém, exprimir a razão do amor, por parte do amante, então há verdade, pois, não estaria na natureza de nenhum ser amar a Deus se cada um não dependesse do bem, que é Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A natureza se reflete em si mesma, não só quanto ao que lhe é singular, mas muito mais quanto ao comum. Pois, cada ser se inclina não somente para a sua conservação individual, mas ainda para a específica. E muito mais cada ser tem inclinação natural para o bem absolutamente universal.

RESPOSTA À QUARTA. — Deus, como bem universal de que depende todo bem natural, é amado por dileção natural, de cada ser; mas, enquanto bem beatificante, universalmente, de todos os seres, pela beatitude sobrenatural, é amado pela dileção da caridade.

RESPOSTA À QUINTA. — Identificando-se, em Deus, a sua substância e o bem comum, todos os que vêem a essência divina, em si, pelo mesmo movimento de dileção, movem-se para ela como distinta dos outros seres e como sendo um bem comum. E sendo, enquanto bem comum, naturalmente amada de todos, é impossível não a ame quem a vê. Os que, porém, não a vêem a conhecem por certos efeitos particulares que, por vezes, contrariando-lhes a vontade, diz-se, então, que esses odeiam a Deus. Mas, como bem comum de todos, cada qual naturalmente o ama mais que a si mesmo.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Angelus

Angelus


Enquanto navegava e olhava algumas postagens no youtube, encontrei este maravilhoso vídeo com o canto do Angelus que por meio da tradição é rezada desde o século XI.

As origens do Angelus encontra-se no costume de recitar três Ave Marias durante o repicar do sino da tarde, que remota ao século XI: o papa Gregório IX (+1241) ordenou que se tocasse o sino ao anoitecer, por volta das seis horas, para lembrar os cristãos de rezarem pelos cruzados.
Em 1269 São Boa Ventura advertiu seus frades a exortar os fiéis a imitarem o costume franciscano de recitar 3 Ave-Marias quando o sino tocava ao entardecer. João XXII ligou uma indulgência a essa prática em 1318 e 1327.

O Angelus da manhã derivou do crescimento, no século XIV, do costume monástico de recitar 3 Ave-Marias no toque para as Primas.
O Angelus do meio-dia originou-se da devoção da Paixão, que levava ao toque de sinos ao meio-dia das sextas-feiras; também é associado a orar pela paz. A prática foi primeiro mencionada no Sínodo de Praga em 1386 e estendida a toda a semana quando Calisto III, em 1456, convidou todo o mundo a rezar pela vitória sobre os turcos.

O século XVI viu a unificação dos três costumes. Bento XIV, Leão XIII e Pio XI indulgenciaram a prática: 10 anos a cada período de recitação e uma plenária a quem recitá-lo diariamente por um mês (tocando sino ou não).

Angelus (1857-1859) de Jean-François Millet

A Hora do Angelus (ou Toque das Ave-Marias), que corresponde às 06:00, 12:00 ou 18:00 horas do dia, relembra aos católicos, através de preces e orações, o momento da Anunciação - feita pelo anjo Gabriel a Virgem Maria - da concepção de Jesus Cristo. É habitualmente rezado ao 12:00 em portugal e no Brasil.
No Tempo Pascal, substitui-se o Angelus pela oração da Regina Cœli


Oração em português

V. O Anjo do Senhor anunciou a Maria.
R. E Ela concebeu do Espírito Santo.
Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.
Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.

V. Eis aqui a escrava do Senhor.
R. Faça-se em mim segundo a vossa palavra.
Ave Maria…

V. E o Verbo se fez carne ou então E o Verbo divino encarnou.
R. E habitou entre nós.
Ave Maria…

V. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus.
R. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Oremos: Infundi, Senhor, a vossa graça em nossas almas para que, conhecendo pela anunciação do Anjo a encarnação de vosso Filho bem-amado, cheguemos por sua paixão e cruz, à glória da ressurreição.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco, na unidade do Espírito Santo. Amém.
Glória ao Pai...


Oração em latim

V. Angelus Domini nuntiavit Mariæ.
R. Et concepit de Spiritu Sancto.
Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Iesus.
Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostræ. Amen.

V. Ecce Ancilla Domini.
R. Fiat mihi secundum Verbum tuum.
Ave Maria…

V. Et Verbum caro factum est.
R. Et habitavit in nobis.
Ave Maria…

V. Ora pro nobis, Sancta Dei Genetrix.
R. Ut digni efficiamur promissionibus Christi.

Oremus: Gratiam tuam quæsumus, Domine, mentibus nostris infunde; ut qui, angelo nuntiante, Christi Filii tui Incarnationem cognovimus, per passionem eius et crucem, ad resurrectionis gloriam perducamur.
Per eumdem Christum Dominum nostrum. Amen.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Questão LIX: Da vontade dos anjos


De volta as atividades!
Voltamos com as postagens da Suma Teologia!
Feliz 2011!

...

Questão LIX: Da vontade dos anjos


Em seguida devemos tratar do que respeita à vontade dos anjos. Primeiro, trataremos da vontade mesma. Segundo, do seu movimento, que é amor ou dileção.
E, sobre o primeiro ponto, quatro artigos se discutem:
  1. Se nos anjos há vontade.
  2. Se nos anjos difere a vontade, do intelecto e da natureza.
  3. Se nos anjos há livre arbítrio.
  4. Se nos anjos há o apetite irascível e o concupiscível.

Art. I — Se nos anjos há vontade


(II Cont. Gent., cap. XLVII; De Verit., q. 23, a. 1)

O primeiro discute-se assim. Parece que nos anjos não há vontade.

1. Porque, como diz o Filósofo, a vontade está na razão. Ora, nos anjos não há razão, mas algo que lhe é superior. Logo, neles não há vontade, mas algo que lhe é superior.

2. Demais. — A vontade é uma espécie de apetite, como é claro pelo Filósofo Ora, este é de natureza imperfeita, pois se refere ao que ainda não é possuído. Resulta, logo, que nos anjos não há vontade, porque neles não há, sobretudo nos santos, nenhuma imperfeição.

3. Demais. — O Filósofo diz que a vontade é um motor movido, pois é movida pelo objeto apetecível inteligido. Ora, os anjos, sendo incorpóreos são imóveis. Logo neles não há vontade.

Mas, em contrário, diz Agostinho que na alma está a imagem da Trindade representada pela memória, a inteligência e a vontade. Ora, a imagem de Deus se encontra, não só na alma humana, mas também no espírito angélico, pois também este é capaz de Deus. Logo, nos anjos há vontade.

SOLUÇÃO. — É forçoso admitir-se a vontade nos anjos. Para a evidência do que se deve considerar na procedência de todos os seres, da vontade divina; todos, a seu modo, mas diversamente, inclinando-se ao bem, pelo apetite. — Assim, certos buscam o bem pela só tendência natural, sem conhecimento, como as plantas e os corpos inanimados. E essa inclinação para o bem se chama apetite natural. — Outros, porém, buscam o bem com algum conhecimento; não, certo, conhecendo a natureza mesma do bem, mas conhecendo algum bem particular, como o sentido, que conhece o doce, o branco e coisas semelhantes. E essa inclinação resultante de tal conhecimento se chama apetite sensitivo.

Outros seres, por fim, buscam o bem conhecendo-lhe a natureza mesma, o que é próprio do intelecto. E esses buscam-no perfeitissimamente não como somente dirigidos ao bem por meio de outrem, como os seres sem conhecimento; nem como se dirigidos fossem ao bem particular somente, como os seres que têm apenas conhecimento sensível; mas como inclinados que são ao mesmo bem universal. E esta inclinação se chama vontade. Donde, conhecendo os anjos, pelo intelecto, a natureza universal do bem, é manifesto que neles há vontade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Um é o modo pelo qual a razão transcende o sentido, e outro o pelo qual o intelecto transcende a razão. A razão transcende o sentido pela diversidade dos objetos conhecidos: este conhece o particular, aquela, o universal. E, por isso, é forçoso seja um o apetite próprio à razão, e tendente ao bem universal; outro, o próprio ao sentido e tendente ao bem particular. O intelecto e a razão, porém diferem quanto ao modo de conhecer, pois aquele conhece por intuição simples, e esta, discorrendo de um objeto para outro. Todavia, a razão, pelo discurso, chega a conhecer o universal, que o intelecto conhece sem discurso. Portanto, o mesmo é o objeto proposto ao apetite pela razão e pelo intelecto. Por onde, nos anjos, puras inteligências, não há apetite superior à vontade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora o nome da parte apetitiva seja derivado de se apetirem as coisas que se não têm, todavia ela se estende não só a tais coisas, mas ainda a muitas outras; assim como o nome lápida é derivado de lesão do pé, sem que, contudo, tal denominação convenha somente à lápida. Semelhantemente, a potência irascível é assim chamada por causa da ira, embora compreenda várias outras paixões, como a esperança, a audácia e demais.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz-se que a vontade é um motor movido porque o querer é um certo movimento e uma certa intelecção; ora, nada impede que exista nos anjos um tal movimento, que é ato do ser perfeito, como diz Aristóteles.

Art. 2 — Se nos anjos difere a vontade, do intelecto e da natureza.


(I Sent., dist. XLII, q. 1, a. 2, ad 3; De Verit., q. 22, a. 10)

O segundo discute-se assim. — Parece que nos anjos não difere a vontade do intelecto e da natureza.

1. — Pois o anjo é mais simples que o corpo natural. Ora, este, pela forma, busca o seu fim, que lhe é o bem. Logo, com maior razão, o anjo. Mas a forma deste é ou a natureza mesma, na qual subsiste, ou a espécie, que lhe está no intelecto. Logo, o anjo, pela sua natureza ou pela espécie inteligível, busca o bem. Ora, essa tendência para o bem, pertencendo à vontade, esta, no anjo, não lhe difere da natureza ou do intelecto.

2. Demais. — O objeto da inteligência é o verdadeiro; o da vontade, porém, o bem. Ora, o bem e o verdadeiro não diferem real mas só nocionalmente. Logo, a vontade e o intelecto não diferem realmente.

3. Demais. — A distinção entre o próprio e o comum não diversifica as potências; pois a mesma potência visiva atinge a cor e a brancura. Ora, o bem e o verdadeiro estão entre si como o comum está para o próprio, por ser o verdadeiro um certo bem, a saber, do intelecto. Logo, a vontade, cujo objeto é o bem, não difere do intelecto, cujo objeto é o verdadeiro.

Mas, em contrário, nos anjos a vontade só tende para o bem; ao passo que o intelecto tende pelo conhecimento, para o bem e para o mal. Logo, a vontade, nos anjos, difere do intelecto.

SOLUÇÃO. — A vontade angélica não é senão uma certa virtude e potência, que não se lhes confunde com a natureza, nem com o intelecto. — Que se não lhes confunde com a natureza o prova o seguinte: a natureza ou a essência de um ser dentro nesse mesmo ser se compreende; e assim, tudo que se refere a algo de exterior a esse ser não lhe pertence à essência. Por isso vemos que a causa da inclinação ao ser, nos corpos naturais, não é algo que se lhes acrescente à essência; mas é a matéria, apetitiva da existência, que não tem, e a forma, que mantém o ser na existência. Mas a causa da inclinação deles a algo de extrínseco é-lhes acrescentada à essência; assim, inclinam-se ao lugar pelo peso ou leveza; e inclinam-se a fazer algo de semelhante a si, pelas qualidade ativas.

Ora, a vontade, tendo inclinação natural para o bem, só haverá identidade entre a vontade e a essência quando o bem estiver totalmente contido na essência do ser que quer, a saber, em Deus, que senão em razão da sua bondade, nada quer fora de si. O que se não pode dizer de nenhuma criatura, por estar o bem infinito fora da essência de qualquer ser causado. Por onde, nem a vontade do anjo nem a de qualquer outra criatura podem-se lhes identificar com a essência. — Semelhantemente, a vontade se não pode identificar com o intelecto do anjo ou do homem. Pois, ao passo que o conhecimento se opera por estar o conhecido no conhecente, a vontade tende para a coisa exterior. Donde, o intelecto humano ou angélico atinge a coisa exterior, enquanto a esta, existente pela essência fora dele, lhe é natural existir nele de certo modo.

Porém, a vontade atinge a coisa exterior, enquanto que, por uma certa inclinação, tende de algum modo para tal coisa. Ora, é próprio de uma faculdade ter em si o exterior, e de outra, que esse ser tenda para tal coisa. E, portanto, em qualquer criatura, necessariamente difere o intelecto da vontade. Não, porém, em Deus, que tem em si mesmo o ser e o bem universais; por onde, tanto a vontade como o intelecto se lhe identificam com a essência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O corpo natural, pela forma substancial, tem inclinações essenciais; mas tende para o exterior por meio de algo que lhe é acrescentado, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — as potências não se diversificam pela distinção material dos objetos, mas por uma distinção formal, fundada na noção do objeto. Portanto, as noções diversas de bem e de verdadeiro bastam para diversificar o intelecto, da vontade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — De se converterem o bem e o verdadeiro, resulta na realidade que o bem é inteligido pelo intelecto sob a noção de verdadeiro, e este é apetecido pela vontade sob a noção de bem. Contudo, a diversidade das noções basta para diversificar as potências, como já se disse.

Art. 3 — Se nos anjos há livre arbítrio


(II Sent., dist. XXV, q. 1, a. 1; II Cont. Gent., cap. XLVIII; De Verit., q. 23, a. 1; q. 24, a. 3; De Malo, q. 16, a. 5; Compend. Theol., cap. LXXVI)

O terceiro discute-se assim. — Parece que nos anjos não há livre arbítrio.

1. — Pois, o ato do livre arbítrio é eleger. Mas, como a eleição depende do apetite pré-aconselhado, e o conselho, de um certo exame, conforme diz Aristóteles, não pode haver eleição, nos anjos, que não conhecem inquirindo, por ser isto próprio ao discurso da razão. Logo, conclui-se que, neles, não há livre arbítrio.

2. Demais. — O livro arbítrio supõe duplo termo. Ora, no intelecto angélico nada há que possa tender para um duplo termo, porque esse intelecto nunca se engana, como se disse, quanto aos inteligíveis naturais. Logo, nem pelo apetite pode haver nos anjos livre arbítrio.

3. Demais. — O que é natural aos anjos, lhes convém mais ou menos; pois, a natureza intelectual dos anjos superiores é mais perfeita. Ora, o livre arbítrio não é suscetível de mais nem menos. Logo, nos anjos, não há livre arbítrio.

Mas, em contrário. A liberdade do arbítrio supõe a dignidade humana. Ora, os anjos são mais dignos do que os homens. Logo, se existe nos homens, existe nos anjos, com maior razão, essa liberdade.

SOLUÇÃO. — Certos seres há que não agem com livre arbítrio, mas quase levados e movidos por outros; assim, a seta é movida ao fim pelo arqueiro. Outros, porém, agem com certo arbítrio, mas que não é livre, como os animais irracionais; assim, a ovelha foge do lobo, em virtude de um juízo pelo qual o julga nocivo a si, sem esse juízo ser livre, mas ínsito naturalmente. Por onde, só o ser inteligente pode agir com livre juízo, conhecendo a noção universal do bem, pela qual poderá julgar boa tal ou tal coisa. Por isso, onde houver intelecto, haverá livre arbítrio. E daí resulta que o livre arbítrio, bem como o intelecto, existe nos anjos, e mesmo de maneira mais excelente que nos homens.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Filósofo fala da eleição própria ao homem. Ora, como o juízo especulativo do homem difere do angélico, por ser este sem inquisição e aquele, inquisitivo, assim também os juízos operativos. Por isso, há nos anjos eleição, sem todavia deliberação inquisitiva do conselho, mas com a imediata captação da verdade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como se disse, o conhecimento se dá quando as coisas conhecidas estão no ser que conhece. Ora, só por imperfeição um ser não tem o que naturalmente deve ter. Donde, o anjo não seria de natureza perfeita, se o seu intelecto não fosse capaz de todas as verdades que naturalmente pode conhecer. Porém, o ato da virtude apetitiva implica a inclinação do afeto para a coisa exterior. Ora, a perfeição de um ser não depende de qualquer objeto, para o qual se incline, mas somente do objeto que lhe é superior. Por onde, não lhe é imperfeição, se o anjo não tem a vontade determinada às coisas que lhe são inferiores; mas ser-lhe-ia, se não fosse inclinada às que lhe são superiores.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O livre arbítrio, bem como o juízo do intelecto, existe de modo mais nobre nos anjos superiores do que nos inferiores. Contudo, é verdade que a liberdade, em si mesma, considerando-se nela a remoção da coação, não padece aumento nem diminuição; porque as privações e as negações, em si mesmas, não se remitem nem intensificam, mas só pela sua causa ou por alguma afirmação adjunta.

Art. 4 — Se nos anjos há o apetite irascível e o concupiscível


(Infra, q. 8, a. 5; II Sent., dist. VII, q. 2, a. 1; ad 1; De Malo, q. 14, a. 1, ad 3)

O quarto discute-se assim. — Parece que nos anjos há o apetite irascível e o concupiscível.

1. — Pois, diz Dionísio que, nos demônios, há furor irrascível e concupiscência amente. Ora, os demônios têm a mesma natureza que os anjos bons, pois o pecado não lhes mudou a natureza. Logo, nos anjos há o apetite irascível e o concupiscível.

2. Demais. — O amor e a alegria pertencem ao apetite concupiscível; porém, a ira, a esperança e o temor, ao irascível. Ora, essas paixões se atribuem, na Escritura, aos anjos bons e aos maus. Logo, nos anjos, há o apetite irascível e o concupiscível.

3. Demais. — Há certas virtudes atribuídas tanto ao apetite irascível como ao concupiscível; assim, a caridade e a temperança pertencem ao concupiscível; a esperança, porém, e a fortaleza, ao irascível. Ora, essas virtudes existem nos anjos. Logo, neles existem ambos os apetites.

Mas, em contrário, diz o Filósofo que os apetites irascível e concupiscível pertencem à parte sensitiva, que não existe nos anjos. Logo, neles não há os dois apetites.

SOLUÇÃO. — Não o apetite intelectivo, mas só o sensitivo é que se divide em irascível e concupiscível. E disso a razão é que as potências se distinguem, não pela distinção material, mas só pela formal dos seus objetos; por isso, se a uma potência corresponde um objeto nocionalmente comum, não haverá distinção de potências pela diversidade dos objetos próprios contidos no comum. Assim, sendo a cor como tal o objeto próprio da potência visiva, não se distinguirão várias potências visivas pela diferença entre o branco e o preto. Mas, se objeto próprio de uma potência fosse o branco, como tal, distinguir-se-ia a potência visiva do branco da visiva do preto.

Ora, é manifesto, pelo já dito, que o objeto do apetite intelectivo, chamado vontade, é o bem sob a sua noção comum; nem pode haver apetite que não busque o bem. Donde, o apetite da parte intelectiva não se divide pela distinção de quaisquer bens particulares, como acontece com o apetite sensitivo, que não visa o bem nocionalmente comum, mas um certo bem particular. Portanto os anjos, tendo apenas o apetite intelectivo, o apetite deles se não divide em irascível e concupiscível, mas permanece indiviso e se chama vontade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Metaforicamente é que se atribui o furor e a concupiscência aos demônios; assim como também se atribui a Deus a ira, pela semelhança de efeito.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O amor e a alegria, como paixões, pertencem ao apetite concupiscível; mas, como denominações de um ato simples da vontade, pertencem à parte intelectiva; sendo então amar querer um bem para si ou para outro e o alegrar-se é o descansar da vontade no bem possuído. E em geral nenhum afeto, como paixão, se predica dos anjos, segundo Agostinho.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A caridade, como virtude, não pertence ao apetite concupiscível, mas à vontade, Pois, o objeto desse apetite sendo o bem deleitável sensível, não pode atingir o bem divino, objeto da caridade. E pela mesma razão deve se dizer que a esperança não pertence ao apetite irascível; pois o objeto deste é o árduo sensível, que não é o arrastado pela virtude da esperança, que visa o árduo divino. Porém a temperança, como virtude humana, diz respeito às concupiscências dos deleitáveis sensíveis, as quais pertencem ao apetite concupiscível; e semelhantemente, a fortaleza diz respeito às audácias e aos temores do apetite irascível.

Donde, a temperança, como virtude humana, pertence ao apetite concupiscível; e a fortaleza, ao irascível. Não é, porém, assim que essas virtudes existem nos anjos; pois, não há neles paixões de concupiscências, ou do temor e da audácia, que devam ser reguladas pela temperança e pela fortaleza. Mas se lhes atribui a temperança enquanto manifestam moderadamente a vontade pela regra da vontade divina; e a fortaleza enquanto firmemente executam a vontade divina; o que tudo fazem pela vontade e não pelos apetites irascível e concupiscível.