Iº Domingo do Advento
1. — Pois, diz Dionísio que os anjos ignoram as próprias virtudes. Ora, conhecida a substância, conhecida está a virtude. Logo, o anjo não conhece a sua essência.
2. Demais. — O anjo é uma substância singular; do contrário, não agiria, pois, os atos são próprios dos seres singulares subsistentes. Ora, não sendo nenhum singular inteligível, não pode ser inteligido; e, assim, como o anjo só tem o conhecimento intelectual, nenhum anjo poderá conhecer-se a si mesmo.
3. Demais. — O intelecto se move pelo inteligível, pois, o inteligir é certo modo de padecer, como diz Aristóteles. Ora, nada se move ou parede por si mesmo, como se vê pelas coisas corpóreas. Logo, o anjo não pode inteligir-se a si mesmo.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que o anjo, na sua própria conformação, i. é, na iluminação da verdade se conhece a si mesmo.
SOLUÇÃO. — Como já ficou dito (q. 14, a. 2; q. 54, a. 2), o objeto comporta-se diferentemente em relação à ação imanente no sujeito e à transitiva para algo de exterior. Pois, nesta última, o objeto ou a matéria, para a qual passa o ato, é separada do agente, como, p. ex., o ser aquecido, do que aquece, e o edifício, do edificador. Mas, para que a ação imanente resulte, é necessário, que o objeto se una com o agente; assim, é necessário que o sensível se una com o sentido para que este se atualize. De modo que o objeto unido com a potência, está para tal ação como forma, princípio de ação nos outros agentes; pois, como o calor é o princípio formal da calefação, no fogo, assim a espécie da coisa vista é o princípio formal da visão nos olhos.
Mas devemos considerar que tal espécie do objeto, ora está na faculdade cognoscitiva, em potência somente e, então, esta só em potência conhece; sendo, para que conheça em ato, necessário esteja a faculdade cognoscitiva reduzida ao ato da espécie. Se, porém, a faculdade tiver a espécie sempre em ato, então por esta pode conhecer sem nenhuma mutação ou recebimento precedente. Donde resulta que ser movido pelo objeto não é da essência do ser conhecente como tal, mas enquanto é potência cognoscitiva. E não importa para ser a forma princípio de ação, que ela própria seja às vezes inerente, e que seja por si subsistente; pois, o calor não aqueceria menos se fosse por si subsistente, do que aquece sendo inerente. Portanto, se há algum ser que, no gênero dos inteligíveis, se comporte como forma inteligível subsistente, esse se intelige a si mesmo. O anjo, porém, sendo imaterial, é uma forma subsistente e, assim, inteligível em ato. Donde resulta que, pela sua forma, que é a sua substância, intelige-se a si mesmo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A citação é de antiga tradução, corrigida pela nova, que diz: além disso também eles mesmos, i e., os anjos, terem conhecido as próprias virtudes; e em lugar disto estava na antiga tradução: e alem disso eles ignorarem as próprias virtudes. Embora também se possa conservar a letra da antiga tradução, quanto à este ponto, que os anjos não conhecem perfeitamente a sua virtude, enquanto procedente da ordem da sabedoria divina, para eles incompreensível.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Nós não inteligimos as coisas corpóreas singularmente, não em razão da singularidade, mas da matéria que é nelas o princípio de individuação. Donde, se alguns seres singulares forem subsistentes, sem matéria, como os anjos, nada impede que sejam inteligíveis em ato.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Ser movido e padecer convêm ao intelecto em potência; por isso, não tem lugar no intelecto angélico, sobretudo quanto ao inteligir-se este a si mesmo. Pois, a ação do intelecto não é da mesma natureza que a dos corpos, transeunte para outra matéria.
1. — Pois, diz o Filósofo que, se o intelecto humano encerrasse em si alguma natureza do número das naturezas das coisas sensíveis, essa, existente interiormente, impediria a manifestação de naturezas estranhas; do mesmo modo que, se a pupila fosse colorida de uma certa cor, não poderia ver todas as cores. Ora, o intelecto humano se comporta, como o angélico, no conhecimento das coisas corpóreas, como o angélico, no dos seres imateriais. Ora, como este encerra em si uma determinada natureza, do número das naturezas imateriais, resulta que não pode conhecer outros.
2. Demais. — Toda inteligência conhece o que lhe é superior, enquanto por este causada; e o que lhe é inferior, enquanto o causa. Ora, um anjo não é a causa do outro. Logo, um não conhece outro.
3. Demais. — Um anjo não pode, pela sua própria essência, como conhecente, conhecer outro; pois, todo conhecimento supõe a razão de semelhança, e a essência do anjo conhecente, não sendo semelhante à do conhecido, senão genericamente, como já vimos (q. 50, a. 4), resulta que um anjo não teria de outro conhecimento próprio, mas só geral. E também, do mesmo modo, não se pode dizer que um anjo conheça outro pela essência do conhecido, pois o pelo que o intelecto intelige lhe é intrínseco e só a Trindade é extrinsecamente interior à inteligência angélica. Semelhantemente, ainda, não se pode dizer que um anjo conhece outro por uma espécie, pois esta, sendo imaterial, como o anjo inteligido, deste não difere, logo, de nenhum modo pode um anjo conhecer outro.
4. Demais. — Se um anjo inteligisse outro, ou seria por uma espécie inata e, então, se Deus criasse um novo anjo este não poderia ser conhecido pelos já existentes; ou por uma espécie adquirida das coisas e, então, resultaria que os anjos superiores não poderiam conhecer os inferiores, dos quais nada recebem. Logo, de nenhum modo, um anjo pode conhecer outro. Mas, em contrario, é o dito: toda inteligência conhece as coisas que se não corrompem.
SOLUÇÃO. — Como diz Agostinho, de duplo modo efluiram do Verbo de Deus as coisas nele existentes abeterno: para o intelecto angélico, e como subsistentes na sua própria natureza. Efluiram para o intelecto angélico por lhe ter impresso as semelhanças das coisas que criou no ser natural. Porém, no Verbo de Deus, existiram, existiram não só as noções das coisas corpóreas mas também as de todas as criaturas espirituais. Assim, pois, em cada uma destas criaturas espirituais foram impressas pelo Verbo de Deus a noções de todas as coisas, tanto corpóreas como espirituais. Todavia, por tal arte que, em cada anjo fosse impressa a noção da sua espécie, segundo a existência natural e intelectual, simultaneamente; de modo que o anjo subsistisse em a natureza de sua espécie, inteligindo-se por esta espécie. Porém, as noções de outras naturezas, tanto espirituais como naturais foram impressas no anjo somente segundo a existência intelectual, de modo que o anjo, por tais espécies impressas, conhecesse tanto as criatura corpóreas como as espirituais.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — as naturezas espirituais dos anjos se distinguem umas das outras por uma certa ordem, como já se disse (q. 50, a. 4, ad 1, 2). Assim que a natureza de um anjo não lhe impede o intelecto de conhecer outras naturezas angélicas; pois tanto os superiores como os inferiores têm-lhe afinidade com a natureza, existindo diferença somente quanto aos diversos graus de perfeição.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A relação de causa e a de causado não faz com que um anjo conheça outro, senão em razão da semelhança, enquanto causa e causado são semelhantes. Donde, admitindo-se entre os anjos semelhança sem causalidade, haverá em um o conhecimento do outro.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Um anjo conhece outro pela espécie deste, existente no intelecto daquele, e a qual difere de outro anjo, de quem é semelhança, não pela existência material e imaterial, mas pela natural e intencional. Pois, é o anjo mesmo que é forma subsistente, com existência natural, e não a sua espécie, existente no intelecto de outro anjo, no qual ela tem existência inteligível somente; do mesmo modo que a forma da cor, na parede, tem existência natural, tendo, entretanto, no meio que a transmite, existência intencional somente.
RESPOSTA À QUARTA. — Deus fez cada criatura proporcionada ao universo que quis criar. Por onde, se Ele tivesse determinado fazer mais anjos ou mais naturezas das coisas, teria impresso nas mentes angélicas mais espécies inteligíveis; do mesmo modo que o edificador, querendo fazer uma casa maior, far-lhe-ia maior o fundamento. Assim a razão porque Deus acrescentasse alguma criatura ao universo seria também a de acrescentar mais alguma espécie inteligível ao anjo.
1. — Pois, Dionísio diz, que Deus está colocado, por uma virtude incompreensível, sobre todas as inteligências celestes. E, em seguida, acrescenta que, por estar acima de toda substância, está segregado de todo conhecimento.
2. Demais. — Deus dista infinitamente do intelecto angélico. Ora, seres infinitamente distantes não podem ser atingidos. Logo, resulta que o anjo, pelas suas faculdades naturais, não pode conhecer a Deus.
3. Demais. — A Escritura diz (1 Cor 13, 12): Nós agora vemos a Deus como por um espelho, em enigmas; mas então face a face. Donde resulta que há um duplo conhecimento de Deus. Por um, Deus é visto na sua essência, no sentido em que se diz vê-lo face a face; por outro, é visto no espelho das criaturas. Ora, conhecer a Deus, pelo primeiro modo, o anjo não o pode pelas suas faculdades naturais, como já antes se demonstrou (q. 12, a. 4). E quanto à visão especular, ela não convém aos anjos, que não conhecem as coisas divinas pelas coisas sensíveis, como diz Dionísio. Logo, pelas suas faculdades naturais, não podem conhecer a Deus.
Mas, em contrario, os anjos têm maior poder de conhecimento que os homens. Ora, estes, pelas faculdades naturais, podem conhecer a Deus, segundo a Escritura (Rm 1, 19): Porque o que se pode conhecer de Deus é-lhes manifesto. Logo, com maior razão, os anjos.
SOLUÇÃO. — Os anjos podem ter, pelas suas faculdades naturais, algum conhecimento de Deus. Para a evidencia do que, devemos considerar nos três modos pelos quais se pode conhecer alguma coisa. De um modo, pela presença da essência da coisa no conhecente, como a luz é vista nos olhos; e, assim, se diz que o anjo se intelige a si mesmo. De outro modo, pela presença da semelhança da coisa na potência cognoscitiva; como uma pedra é vista pelos olhos, por estar nestes a semelhança dela. De um terceiro modo, enquanto a semelhança da coisa conhecida não é recebida imediatamente dessa coisa, mas de outra que primeiro a recebeu; assim, vemos um homem num espelho. Ora, ao primeiro modo pertence o conhecimento divino, pelo qual Deus conhece pela sua essência; e este modo de conhecer não o pode ter criatura nenhuma pelas suas faculdades naturais, como antes já se disse (q. 12, a. 4).
Ao terceiro modo pertence o conhecimeto pelo qual conhecemos a Deus, nesta vida, pela semelhança dele, existente nas criaturas, segundo a Escritura (Rm 1, 20): Porque as coisas visíveis de Deus, compreendendo-se pelas obras que foram feitas, tornaram-se visíveis. E, por isso, se diz que vemos a Deus num espelho, o conhecimento, porém, pelo qual o anjo, pelas suas faculdades naturais, conhece a Deus, é um meio termo entre os dois outro modos, e se assemelha ao conhecimento peço qual uma coisa é inteligida por meio da espécie dela recebida. Pois, estando a imagem de Deus impressa na própria natureza do anjo, este, pela sua essência, conhece a Deus, de quem é semelhança. Todavia, não contempla a essência mesma de Deus, porque nenhuma semelhança criada é suficiente para representar tal essência. Por onde, tal conhecimento mais se aproxima ao do terceiro modo, por ser a natureza mesma do anjo um como espelho representativo da divina semelhança.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dionísio se refere ao conhecimento de compreensão, como as suas palavras expressamente o declaram. E, de tal modo, Deus não é conhecido de nenhuma inteligência criada.
RESPOSTA À SEGUNDA. — De distar infinitamente de Deus o intelecto e a essência do anjo resulta que este não pode compreender a Deus, nem contemplar a divina essência, pelas suas faculdades naturais. Não resultam porém, quem por isso, nenhum conhecimento possa ter de Deus; pois, assim como Deus dista infinitamente do anjo, assim o conhecimento que Deus tem de si mesmo dista infinitamente do que o anjo tem de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O conhecimento, que o anjo naturalmente tem de Deus é um meio termo entre os dois modos de conhecer; contudo se aproxima mais de um do que do outro, como acima se disse.
1. — Pois Dionísio diz que os anjos conhecem as coisas da terra pela natureza própria da inteligência. Ora, a natureza do anjo é a sua essência. Logo, é por esta que o anjo conhece as coisas;
2. Demais. — Segundo o Filósofo, nos seres sem matéria identificam-se a inteligência e o que é inteligido. Ora, é em virtude daquilo pelo que se intelige que o inteligido se identifica com o ser que intelige. Logo, nos seres sem matéria, como os anjos, o pelo que se intelige é a substância mesma do ser inteligente.
3. Demais. — O que existe em outrem neste está ao modo do mesmo. Ora, o anjo, tendo natureza intelectual, tudo o que nele existe aí está por modo inteligível, mas tudo nele está, porque os seres inferiores estão nos superiores essencialmente, e estes, naqueles, participativamente; por onde, diz Dionísio, que Deus congrega tudo em todos, isto é, todas as coisas em todos os seres. Logo, o anjo conhece, na sua substância, todas as coisas.
Mas, em contrário, Dionísio diz que os anjos são iluminados pelas razões das coisas, logo, conhecem por estas e não pela substância própria.
SOLUÇÃO. — O pelo que o intelecto intelige, está para o intelecto, que intelige, como se lhe fosse a forma; pois é pela forma que o agente age. Ora, para a potência ser perfeitamente completada pela forma, é necessário seja contido por esta tudo o ao que a potência se estende; e daí vem que, nos seres corruptíveis, a forma não completa perfeitamente a potência da matéria, porque esta se estende a mais seres que os abrangidos por tal ou tal forma. A potência intelectiva do anjo, porém, estende-se à intelecção de todas as coisas, por ser o ente ou o verdadeiro comum o objeto do intelecto. Todavia, a essência angélica, determinada a um gênero e a uma espécie, não compreende em si todas as coisas, sendo isto próprio à essência divina, de tal modo infinita, que em si e de modo perfeito, compreende, absolutamente, a todas. Por onde, só Deus conhece tudo pela sua essência; ao passo que o anjo assim não conhece, sendo necessário que o seu intelecto sela aperfeiçoado por certas espécies, para as conhecer.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Quando se diz que o anjo conhece as coisas pela sua natureza, a preposição pela não determina o meio de cognição, que pela semelhança do objeto, mas a virtude cognoscitiva, que convém ao anjo pela sua natureza.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como o sentido em ato é o sensível em ato, no dizer de Aristóteles, sem que, todavia, a própria faculdade sensitiva seja a semelhança mesma do sensível que está no sentido, mas que de ambos resulta a unidade como do ato e da potência; assim também se diz que a inteligência em ato é o objeto inteligido em ato, não por ser a substância da inteligência a semelhança mesma pela qual intelige, mas por lhe ser tal semelhança a forma. Assim, identifica-se esta expressão: nos seres sem matéria o mesmo é a inteligência e o objeto inteligido. – como esta outra: inteligência em ato é o inteligido em ato. Pois, é por ser imaterial que alguma coisa é inteligida em ato.
RESPOSTA À TERCEIRA. — As coisas inferiores, bem com as superiores, ao anjo lhe estão, de certo modo, na substância; não por certo, perfeitamente, nem pela razão própria, pois a essência do anjo, sendo finita, distingue-se, pela sua própria natureza, dos outros seres; mas por uma certa razão comum, na essência de Deus, porém, estão todas as coisas perfeitamente e segundo a razão própria, como na primeira e universal virtude operativa, da qual procede tudo quanto existe, seja próprio ou comum, em qualquer coisa. E por isso Deus, pela sua essência, tem o conhecimento próprio de todas as coisas; não, porém, o anjo, que só o tem comum.
1. — Pois, tudo o que é inteligido o é por alguma semelhança de si existente no ser que intelige. Ora, a semelhança de um ser, existente em outro, neste existe, ou a modo de exemplar, de maneira que tal semelhança é a causa do ser. Por onde e necessariamente toda a ciência do ser inteligente ou será a causa da coisa inteligida, ou será causada por esta. Ora, a ciência do anjo não é a causa das coisas existentes, em a natureza, mas só a ciência divina. Logo, é necessário que todas as espécies pelas quais o intelecto angélico intelige sejam recebidas das coisas.
2. Demais. — A luz da inteligência angélica é mais forte que a luz do intelecto agente, na alma. Ora, este abstrai dos fantasmas as espécies inteligíveis. Logo, aquela pode abstrair as espécies mesmo das próprias coisas sensíveis. E assim nada impede se diga que o anjo intelige por espécies recebidas das coisas.
3. Demais. — As espécies existentes no intelecto comportam-se indiferentemente para com o presente ou o distante, salvo enquanto recebidas das coisas sensíveis. Se, pois, o anjo não intelige por tais espécies, o seu conhecimento, se comportaria indiferentemente para com as coisas próximas e as distantes e, o anjo se moveria localmente em vão.
Mas, em contrário, diz Dionísio que os anjos não congregam o conhecimento divino mediante as coisas divisíveis ou sensíveis.
SOLUÇÃO. — As espécies pelas quais os anjos inteligem não são recebidas das coisas, mas lhes são conaturais a eles. Pois, a distinção e a ordem das substâncias espirituais devem ser entendidas como a distinção e a ordem das corporais. Ora, os corpos superiores têm, em a sua natureza, a potência totalmente aperfeiçoada pela forma; o que se não dá com os inferiores, que recebem ora, uma, ora, outra forma, pela ação de algum agente. Semelhantemente, também as substâncias inferiores intelectuais, a saber, as almas humanas, têm uma potência intelectiva naturalmente incompleta, mas que se completa sucessivamente ao receberem das coisas as espécies inteligíveis. Porém, nas substâncias espirituais superiores, isto é, nos anjos, a potência intelectiva é naturalmente completa pelas espécies inteligíveis, enquanto estas lhe são conaturais para inteligir tudo que naturalmente podem conhecer.
E isto mesmo também resulta do próprio modo de ser de tais substâncias. Pois, as almas substanciais inferiores; i. é, as almas, têm um ser afim com o corpo, enquanto formas dos corpos; assim que, pelo seu próprio modo de ser, lhes cabe obtenham dos corpos e por eles a sua perfeição inteligível; do contrario, em vão estariam unidas a estes. Porém as substâncias superiores, i. é, os anjos, são totalmente independentes dos corpos, subsistentes imaterialmente e no seu ser inteligível; e, por isso, alcançam a sua perfeição inteligível por um efluxo inteligível, pelo qual recebem de Deus as espécies das coisas conhecidas simultaneamente com a natureza intelectual. Por onde, diz Agostinho, que os outros seres inferiores aos anjos são causados de tal modo que primeiro cheguem ao conhecimento da criatura racional e, depois, sejam constituídos no seu gênero.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Na mente do anjo estão as semelhanças das criaturas, não destas mesmas promanadas, mas de Deus, causa delas e em quem primariamente existem a semelhanças das coisas. E por isso Agostinho que, assim como a razão pela qual a criatura é feita está primeiro no Verbo de Deus, do que essa criatura mesma, assim o conhecimento dessa mesma razão primeiro se realiza na criatura intelectual, vindo, depois, a constituição mesma da criatura.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Só pelo meio se pode chegar de um extremo a outro. Ora, o ser da forma, na imaginação, e que, se bem não tenha matéria, não vai sem condições materiais, é o meio entre o ser da forma, que está na matéria, e o da que está no intelecto pela abstração da matéria e das condições materiais. Por onde, por poderoso que seja o intelecto angélico, não poderia reduzir as formas materiais ao ser inteligível, sem que primeiro as reduzisse ao das formas imaginadas; ora, isto é impossível por não ter o anjo imaginação, como já se disse (q. 54, a. 5). Mas mesmo dado que pudesse abstrair das coisas materiais as espécies inteligíveis, não as abstrairia porque, tendo espécies inteligíveis conaturais, delas não precisaria.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O conhecimento do anjo se comporta indiferentemente para com o que é localmente distante e próximo. Mas nem por isso o movimento local do anjo é em vão, pois, não se move localmente para buscar o conhecimento, mas obrar alguma coisa em algum lugar.
1. — Pois, considera-se o universal como abstraído do particular. Ora, os anjos não inteligem por espécies abstraídas das coisas. Logo, não se pode dizer que as espécies do intelecto angélico sejam mais ou menos universais.
2. Demais. — O conhecido em especial o é mais perfeitamente do que o conhecido em universal; pois, conhecer alguma coisa em universal é, de certo modo, o meio entre a potência e o ato. Se, portanto, os anjos superiores conhecem por formas mais universais do que as dos inferiores, segue-se que aqueles têm uma ciência mais imperfeita que a destes; o que é inadmissível.
3. Demais. — Coisas diversas não podem ter a mesma noção. Ora, se o anjo superior conhece, por uma forma universal, as diversas coisas, que o inferior conhece por várias formas especiais, resulta que aquele usa uma forma universal para conhecer coisas diversas. Logo, não poderá ter um conhecimento próprio de cada uma; o que é inadmissível.
Mas em contrário diz Dionísio que os anjos superiores participam mais em universal, da ciência, do que os inferiores. E, noutro passo que os superiores têm formas mais universais.
SOLUÇÃO. — entre os seres superiores são os que mais próximos e semelhantes são ao ser primeiro, que é Deus. Ora, em Deus, toda a plenitude do conhecimento intelectual contém-se na una essência divina, pela qual Ele tudo conhece. Esta plenitude inteligível porém existe nas criaturas inteligíveis de modo inferior e menos absolutamente. E por isso é forçoso que as inteligências inferiores conheçam por muitas espécies o que Deus conhece pela sua essência una; e tanto mais serão essas espécies quanto mais inferior for a inteligência. Assim, pois, quanto mais for o anjo superior, tanto mais poderá apreender, por menos espécies, a universalidade dos inteligíveis. E portanto e necessariamente as suas formas serão mais universais, abrangendo cada uma delas muitas coisas. E mesmo em nós temos de certo modo exemplo disto. Pois certos, por debilidade da inteligência, não podem compreender a verdade inteligível sem que lhes expliquem cada verdade em particular; ao passo que outros, de mais forte inteligência, com pouco podem compreender muito.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O universal pode ser abstraído dos seres particulares, enquanto o intelecto, conhecendo-o tira das coisas o conhecimento. Porém, ao intelecto que não conhecer deste modo o universal por ele conhecido não será abstraído das coisas, mas lhes preexistirá de certo modo; quer na ordem causal, sendo assim que as razões universais das coisas existem no Verbo de Deus; quer ao menos, na ordem da natureza, estando assim tais razões no intelecto angélico.
RESPOSTA À SEGUNDA. — De dois modos se pode conhecer uma coisa em universal. Em relação à coisa conhecida, como se se lhe conhecesse somente a natureza universal; e assim conhecer alguma coisa em universal é conhecer de modo mais imperfeito; pois, imperfeitamente conheceria o homem quem dele conhecesse apenas a qualidade de animal. De outro modo, quanto ao meio de conhecer e, assim, é mais perfeito conhecer alguma coisa em universal; pois, mais perfeito é o intelecto que, por um meio universal, pode conhecer cada ser em particular, do que não pode.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Seres diversos não podem ter a mesma razão adequada. Mas, se for excelente, pode ser uma mesma a razão própria e a semelhança de seres diversos. Assim, no homem, há uma prudência universal quanto a todos os atos de virtude; e essa mesma pode ser considerada como razão própria e semelhança da prudência particular do leão, quanto aos atos de magnanimidade; da prudência da raposa, quanto aos atos de cautela, e assim por diante. Semelhantemente, a essência divina, pela sua excelência, é tomada como a razão própria de tudo o que nela está singularmente; donde o se lhe assimilarem os seres singulares pelas suas razões próprias. E do mesmo modo se deve dizer, da razão universal existente na mente angélica, que por esta, em virtude da sua excelência, muitas coisas podem ser conhecidas por conhecimento próprio.
1. — Pois o anjo é mais sublime e simples que o intelecto agente da alma. Ora, a substância do intelecto agente é a sua ação, como está claro em Aristóteles e em Averroes. Logo com maior razão, a substância do anjo é a sua ação, a saber, o inteligir.
2. Demais. — O Filósofo diz que a ação do intelecto é vida. Ora, sendo o viver a essência dos viventes, como diz Aristóteles, resulta que a vida é essência. Logo, a ação do intelecto é a essência do anjo que intelige.
3. Demais. — Se os extremos são idênticos, o meio não difere deles, porque mais dista um extremo do outro, do que o meio. Ora, no anjo se identificam o inteligente e o inteligido, ao menos quando o anjo intelige a sua essência. Logo o inteligir, meio entre o inteligente e o inteligido, identifica-se com a substância do anjo inteligente.
Mas, em contrario, mais difere da substância de uma coisa a ação do que a existência mesma da coisa. Ora, de nenhuma criatura a existência é substância, porque isto só é próprio de Deus, como resulta do anteriormente dito (q. 3, a. 4; a. 44, a. 1). Logo, nem do anjo, nem de qualquer outra criatura a ação é a substância.
SOLUÇÃO. — É impossível a ação do anjo, ou de qualquer outra criatura, ser a sua substância. Pois a ação é propriamente a atualidade da virtude, como a existência é a da substância ou essência. Ora, é impossível um ser, que não é ato puro, mas tem algo de potencial, ser a sua atualidade, porquanto esta repugna a potencialidade. E como só Deus é ato puro, só nele a substância é a existência e o agir. — Demais. Se o inteligir fosse a substância do anjo, seria necessário que esse inteligir fosse subsistente. Ora, não podendo haver mais de um inteligir subsistente, como não pode haver mais de um abstrato subsistente, a substância de um anjo não se distinguira da de Deus, que é o inteligir mesmo subsistente, nem da de outro anjo. — Se, além disso, o anjo mesmo fosse o seu inteligir, não poderia haver graus mais e menos perfeitos, no inteligir, pois isto se dá pela participação diversa do inteligir em si.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O dito, que o intelecto agente é a sua ação, é uma predicação, não por essência, mas por concomitância; porque, estando a sua substância em ato, imediatamente, quanto nessa substância está, segue-se-lhe a ação. O que não se dá com o intelecto possível, que só age depois de atualizado.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A vida não está para o viver como a essência para a existência, mas como a corrida para o correr, em que aquela significa um ato em abstrato e este, em concreto. Donde se não segue que, se viver é existir, a vida seja essência. Todavia, algumas vezes, a vida é considerada como essência; assim, na expressão de Agostinho, que a memória, a inteligência e a vontade são uma essência e uma vida. Mas não é isso o que quer dizer o Filósofo quando afirma que a ação do intelecto é vida.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A ação transitiva para algo extrínseco é, realmente, um meio entre o agente e o paciente; mas a que permanece no agente não é senão e unicamente pelo modo de significar. Pois, realmente, ela resulta da união do objeto com o agente; assim, é de unificar-se o inteligido com o inteligente que resulta o inteligir, um como efeito diferente de um e outro.
1. — Pois, para os viventes o viver é a essência, como diz Aristóteles. Ora, o inteligir é, de certo modo, viver, como diz o mesmo. Logo, o inteligir do anjo é a sua essência.
2. Demais. — Uma causa está para outra como um efeito para outro. Ora, a forma pela qual o anjo existe é a mesma pela qual intelige, pelo menos, a si mesmo. Logo o seu inteligir se lhe identifica com a essência.
Mas, em contrario. O inteligir do anjo é o seu movimento, como se vê claramente em Dionísio. Oram a essência não é movimento. Logo, a essência do anjo não é o seu inteligir.
SOLUÇÃO. — A ação do anjo não é a sua essência como não é a de nenhuma criatura. Pois, há duplo gênero de ação, como diz Aristoteles. Uma transitiva para algo de exterior, causando-lhe paixão, como queimar e cortar. Outra, porém, não passa para algo de extrínseco mas permanece no próprio agente, como sentir, inteligir e querer; e por tal ação, nada de extrínseco se muda, mas tudo se passa no próprio agente que age. Ora, é manifesto que, no primeiro gênero, a ação não pode ser a essência mesma do agente, pois esta é constitutiva do agente em si, ao passo que a ação considerada eflui do agente para o ato. A ação do segundo gênero, porém, tem, por natureza, a infinidade ou absolutamente ou de certo modo. Absolutamente como: o inteligir, cujo objeto é o verdadeiro; o querer, cujo objeto é o bem; e convertendo-se ambos com o ser, ambos, por essência, se referem a tudo e recebem a espécie do objeto. De certo modo, porém, o sentir é infinito, por se referir a todos os seres sensíveis, como, p. ex., a visão a todos os visíveis. Todavia, o ser de qualquer criatura está incluído num gênero e numa espécie; ao passo que só o ser de Deus é absolutamente infinito compreendendo em si tudo, como diz Dionísio. Por isso só a essência divina é o divino inteligir e o divino querer.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Viver, umas vezes, se toma pela essência mesma do vivente; outras vezes, porém, pela operação vital, isto é, a operação pela qual se manifesta um ser vivo. E, neste sentido, o Filósofo diz que inteligir é, de certo modo, viver, distinguindo assim os diversos graus de seres vivos pelas diversas operações vitais.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A essência mesma do anjo é a razão de todo o seu ser; não, porém, a de todo o seu inteligir, porque não pode inteligir tudo pela sua essência. Por onde, na sua noção própria, enquanto é uma determinada essência, respeita a existência mesma do anjo; mas lhe respeita o inteligir pela noção de um objeto mais universal, i. é. o verdadeiro ou o ente. E assim é claro que, embora seja a forma a mesma, não é esta todavia, segundo a mesma noção, o princípio de existir e de inteligir. E, por isso, não se segue que, no anjo, se identifiquem a essência e o inteligir.
1. — Pois, inteligência e intelecto designam a potência intelectiva. Mas Dionísio, em vários lugares de seus livros, chama aos anjos intelectos e inteligências. Logo, o anjo é sua potência intelectiva.
2. Demais. — Se a potência intelectiva do anjo é diferente da essência deste, é necessário seja um acidente, pois chamamos acidente de um ser ao que é diferente da essência. Ora, a forma simples não pode ser sujeito, como diz Boécio. Logo, o anjo não é forma simples, o que vai contra o já estabelecido.
3. Demais. — Agostinho diz que Deus fez a natureza angélica aproximada d´Ele; porém. A matéria prima aproximada do nada. Donde resulta que o anjo é mais simples que a matéria prima, como mais próximo de Deus. Mas, a matéria prima é a sua potência. Logo, com maior razão, o anjo é a sua potência intelectiva.
Mas, em contrario, Dionísio diz que os anjos se dividem em substância, virtude e operação. Logo, neles, uma coisa é a substância, outra a virtude e outra a operação.
SOLUÇÃO. — Nem no anjo, nem em nenhuma criatura, a virtude ou potência operativa é o mesmo que a essência. E isto assim se prova. Como a potência é relativa ao ato, é necessário que, tal a diversidade dos atos, tal a das potências; e por isso se diz que um ato próprio corresponde a uma potência própria. Ora, em toda criatura, a essência difere da existência e aquela está para esta como a potência para o ato, segundo resulta do que já foi dito (a. 1; q. 44, a. 1). O ato, porém, ao qual é relativa a potência operativa é a operação. Ora, no anjo, o inteligir não se lhe identifica com a essência, como não se identifica com esta nenhuma outra operação, quer no anjo quer em qualquer outro ser criado. Por onde, a essência do anjo não é a sua potência intelectiva, como a essência de nenhuma criatura é a sua potência operativa.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O anjo se chama intelecto e inteligência porque todo o seu conhecimento é intelectual. Porém o conhecimento da alma é, em parte, intelectual e, em parte, sensitivo.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A forma simples, sendo ato puro, não pode ser sujeito de nenhum acidente; porque o sujeito está para o acidente como a potência para o ato. E um tal ser é só Deus; sendo essa forma à qual se refere Boécio no lugar citado. Porém a forma simples que não é a sua existência mas está para esta como a potência para o ato, pode ser o sujeito do acidente e, precipuamente, do acidente resultante da espécie, pois este pertence à forma; ao passo que o acidente do individuo, não resultante da espécie total, resulta da matéria, que pelo princípio de individuação. E uma tal forma simples é o anjo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A potência da matéria corresponde ao ser mesmo substancial; não, porém, a operativa, que corresponde ao ser acidental. E, por isso, não há símile.
1. — Pois, o Filósofo dia que, assim como em toda a natureza há um princípio que é a causa de todas as coisas seres feitas, e outro que as faz a todas, assim também o mesmo se dá com a alma. Ora, o anjo é uma natureza de certa espécie. Logo, há nele os intelectos agente e possível.
2. Demais. — Receber é próprio do intelecto possível; iluminar, porém, é próprio do intelecto agente, como se vê em Aristóteles. Ora, um anjo recebe iluminação de outro que lhe é superior e ilumina o inferior. Logo, há nele os intelectos agente e possível.
Mas, em contrário, os intelectos agente e possível, em nós supõem relação com os fantasmas, que estão para o intelecto possível, como as cores para a visão; e, para o intelecto agente, como as cores para a luz, segundo se vê em Aristóteles. Ora, tal não se dá com o anjo. Logo, neste não há os intelectos agente e possível.
SOLUÇÃO. — A necessidade de supor, em nós, um intelecto possível, foi porque, de fato, ora, inteligimos em potência e não em ato. Donde ser necessário existir uma virtude potencial em relação aos inteligíveis, antes do ato mesmo de inteligir mas que se atualize, em relação a eles, quando adquire a ciência e, depois, quando raciocina. E uma tal virtude se chama intelecto possível. Por outro lado, a necessidade de se supor um intelecto agente está em que as naturezas das coisas materiais, que nós inteligimos, não subsistem fora da alma como imateriais e inteligíveis em ato, mas são somente, como tais, inteligíveis em potência. Donde ser forçoso existir alguma virtude que torne tais naturezas inteligeveis em ato, e tal virtude, em nós, se chama intelecto agente.
Ora, ambas essas necessidades não existem nos anjos porque estes não são, nunca, inteligentes em potência somente, em relação às coisas que naturalmente inteligem; nem os inteligíveis deles são potenciais, mas atuais; pois, inteligem, primária e principalmente, as coisas imateriais, como a seguir se verá (q. 56). E, portanto, não pode haver neles os intelectos agentes e possível, senão equivocamente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Filósofo admite a existência desses dois princípios em todos os seres susceptíveis de geração e vir-a-ser, como as suas próprias palavras o demonstram. Porém, nos anjos, a ciência não é gerada, mas existe naturalmente. Por isso não se lhes deve atribuir a agência e a possibilidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Ao intelecto agente é próprio o iluminar, não, por certo, outro ser inteligente, mas os inteligíveis, atualizando-os, pela abstração. Porém, ao intelecto possível é próprio o ser potencial em relação aos cognoscíveis naturais; e, por vezes, atualizar-se. donde, o fato de um anjo iluminar a outro não pertence à essência do intelecto agente; nem à do intelecto possível pertence o de ser iluminado quanto aos mistérios sobrenaturais, em relação a cujo conhecimento esse intelecto está, por vezes, em potência. Se, contudo, alguém quiser chamar a tais fatos intelectos agente e possível, fa-lo-á equivocamente; nem devemos nos importar com as denominações.
1. — Pois, diz Agostinho que nos anjos há a vida que intelige e sente. Logo, tem a potência sensitiva.
2. Demais. — Isidoro diz que os anjos conhecem muitas coisas por experiência. Ora, esta consta de muitos fatos rememorados, como diz Aristóteles. Logo, têm eles também a potência memorativa.
3. Demais. — Dionísio diz que, nos demônios, a fantasia é proterva. Ora, a fantasia pertence à virtude imaginativa. E, pela mesma razão, os anjos, por serem da mesma natureza.
Mas, em contrario, diz Gregório que o homem sente, como os animais, e intelige, como os anjos.
SOLUÇÃO. — A nossa alma tem certas potências, cujas operações se exercem por órgãos corpóreos; e tais operações são o ato de certas partes do corpo, como a visão o é dos olhos e a audição, dos ouvidos. Porém, ela tem certas faculdades, cujas operações não se exercem por órgãos corpóreos, como a inteligência e a vontade; e tais operações não são o ato de nenhuma parte do corpo. Ora, os anjos, não tendo corpos que lhes estejam naturalmente unidos, como no sobredito se colhe (q. 51, a. 1), só o intelecto e a vontade, dentre as faculdades humanas, podem lhes convir. E mesmo o Comentador reconhece que as substâncias separadas se dividem em inteligência e vontade. Pois, convém à ordem do universo que a suprema criatura intelectual o seja total e não parcialmente, como a nossa alma. E, por isso, os anjos são também chamados Intelectos e Inteligências, como antes já se disse (a. 3, ad 1).
E quanto às OBJEÇÕES em contrario pode-se lhes responder de duplo modo. — Ou que as autoridades citadas seguem a opinião dos que ensinavam terem os anjos e os demônios corpos que lhes estão naturalmente unidos. E assim Agostinho, nos seus livros, usa frequentemente dessa opinião, embora sem pretender afirmá-la; e por isso diz que não se deve gastar muito tempo com tal assunto. — Ou então, de outro modo, pode-se responder que tais autoridades, e outras semelhantes, devem ser interpretadas como por comparação. Pois, assim como o sentido tem apreensão certa do sensível próprio, assim é costume dizer-se que também o intelecto sente as coisas por uma apreensão certa, chamada, igualmente, sentença. Porém a experiência, podendo ser atribuída aos anjos, por semelhança das coisas conhecidas, não o pode pela virtude cognoscitiva. Assim, há em nós experiência quando conhecemos o singular pelos sentidos; ma os anjos, embora conheçam o singular, como a seguir se verá (q. 57, a. 2), não o conhecem pelos sentidos. A memória, contudo, podemos admiti-la, nos anjos, na acepção que Agostinho a admite em a nossa alma, se bem não lhes possa convir considerada como parte da alma sensitiva. Semelhantemente, a fantasia proterva é atribuída aos demônios por termo uma falsa estimação prática do verdadeiro bem; pois, o engano, em nós, propriamente resulta da fantasia, pela qual, à vezes, tomamos as semelhanças das coisas pelas próprias coisas, como acontece com os adormecidos e os loucos.
São Bernardo diz que todas as almas justas são esposas do Senhor, "mas de um modo particular vale isso das almas virgens", como nota Santo Antônio de Pádua. Por isso São Fulgêncio chama a Jesus Cristo o Esposo de todas as virgens consagradas a Deus.
Uma moça que quer permanecer no mundo e casar-se, se é prudente, se informa com todo o cuidado a respeito dos que solicitam a sua mão, para conhecer o mais digno e o mais capaz de torná-la feliz aqui na terra. A pessoa religiosa, por sua vez, desposasse, pelos votos, com Nosso Senhor Jesus Cristo. Procuremos a esposa dos Cânticos, que sabe perfeitamente avaliar as qualidades desse Esposo Divino, e perguntemos-lhe: 'Quem é o vosso amado, ó santa esposa? Quem é aquele que possui todo o vosso coração e vos tornou a mais feliz das mulheres?' Ela responde: 'Meu Amado é branco e vermelho: é branco por Sua pureza, e vermelho pela chama do amor em que se abrasa por Sua esposa; em uma palavra, Ele é tão belo, tão perfeito em todas as virtudes, que não há nem pode haver um outro esposo mais nobre ou mais amoroso que Ele'. "Nem quem O iguale em Sua grandeza, nem em Sua beleza, nem em Sua generosidade", diz Santo Euquério.
Por isso escreve Santo Inácio de Antioquia: "Aquelas bem-aventuradas virgens, que se consagraram a Jesus Cristo, podem estar certas de que não encontrarão, nem no céu nem na terra, um esposo tão belo, tão nobre, tão rico, tão amável como Aquele que lhes foi dado, Jesus Cristo".
Santa Clara de Montefalco dizia que prezava tanto sua virgindade, que antes quereria sofrer durante toda a sua vida as penas do inferno, do que perder esse valioso tesouro. Com toda a razão, pois, muitas virgens virtuosas renunciaram a casamentos principescos para permanecerem esposas de Jesus Cristo. Santa Joana, infanta de Portugal, renunciou à mão de Luís XI, rei da França; a Beata Inês de Praga, à do imperador Frederico II; Isabel, filha do rei da Hungria e herdeira do reino, à de Henrique, arquiduque da Áustria, e muitas outras procederam do mesmo modo.
Uma virgem que se consagra ao Senhor, diz Teodoreto, está livre de todo o cuidado inútil. Não tem outra coisa a fazer senão entreter-se contínua e familiarmente com Deus. Isso indica o Apóstolo quando diz que a virgem "é santa no corpo e na alma" (I Cor 7, 34); santa no corpo pela castidade, santa no espírito por seu comércio íntimo com Deus. "Se ela não tivesse outra recompensa a esperar, diz Santo Anselmo, só por estar livre dos cuidados seculares e não ter outra obrigação, já deveria ser tida por sumamente feliz". Do que se vê que as virgens não só receberão uma imensa glória no Céu, mas já serão recompensadas antecipadamente aqui na terra, com uma paz inalterável.
As virgens que se consagram ao amor de Jesus Cristo, ofertando-Lhe o lírio da pureza do coração, tornam-se tão agradáveis a Deus como os Santos Anjos, - certamente um efeito sublime da castidade virginal. Todas as virgens que buscam a perfeição são esposas queridas de Jesus Cristo, porque Lhe consagraram seu corpo e sua alma, e nada mais buscam nesta vida que agradar-Lhe. São João foi o discípulo amado de Jesus, porque guardou a virgindade. Justamente por esse motivo amava-o Jesus mais que aos outros discípulos, como a Igreja o insinua quando diz: "Foi escolhido como virgem pelo Senhor, e mais amado que todos os outros".
As virgens são chamadas, na Sagrada Escritura, as primícias de Deus: "São virgens; esses seguem o Cordeiro aonde quer que Ele vá. Esses foram comprados dentre os homens, para serem as primícias para Deus e para o Cordeiro" (Apoc 14, 4). Mas por que são chamados primícias de Deus? O Cardeal Hugo responde: "Como os primeiros frutos são mais agradáveis que os outros, assim também as virgens consagradas a Deus agradam mais ao Coração deste e constituem o objeto de seu especial amor".
Diz-se ainda, na Sagrada Escritura, que o Esposo Divino "se apascenta entre os lírios" (Cânt 2, 16). Esses lírios representam as virgens que conservam sua pureza por amor de Deus. Um expositor nota o seguinte nessa passagem dos Cânticos: "Enquanto o demônio procura a imundície da impureza, Jesus Cristo se apascenta [isto é, descansa,] entre os lírios da castidade".
O que, porém, deve aumentar consideravelmente a nossos olhos o valor da virgindade, é o louvor extraordinário que lhe tece o Espírito Santo, dizendo: "Tudo o que se aprecia não é comparável a uma alma continente" (Ecli 26, 20). Isso mesmo nos deu a entender a Santíssima Virgem, quando disse ao Arcanjo que Lhe anunciava a divina maternidade: "Como se dará isso, se não conheço varão?" (Lc 1, 14). Maria, com essas palavras, mostrou que preferiria renunciar à dignidade de Mãe de Deus, a perder o tesouro de Sua virgindade.
Segundo São Cipriano, a pureza virginal é a rainha de todas as virtudes e o complemento de todos os bens. Santo Efrém escreve que as virgens que guardam a sua pureza por amor de Jesus Cristo, serão favorecidas por Ele em todos os pontos. São Bernardo acrescenta que a virgindade habilita a alma, de um modo todo especial, a ver o Divino Esposo nesta vida pela fé, e na outra pela luz da glória.
Imensa é a glória que Jesus Cristo prepara no Céu às Suas esposas que na terra Lhe consagraram sua virgindade. Nosso Senhor mostrou um dia à Sua grande serva Lucrécia Orsini os sublimes tronos que ocuparão aqueles que serviram a Jesus Cristo em pureza virginal. Ao que exclamou ela: "Oh! Quão agradáveis não são a Jesus e a Maria as virgens!" Os teólogos afirmam que as virgens receberão no Céu uma auréola especial, sendo ornadas com uma luzente coroa de honra e glória, pois se diz na Sagrada Escritura, a respeito das virgens: "Ninguém podia cantar esse cântico, senão aqueles cento e quarenta e quatro mil que foram comprados na terra". Explicando essa passagem, diz Santo Agostinho que a glória que Jesus Cristo concede às Virgens não confere aos outros Santos.
II. Grande é a satisfação de Jesus Cristo quando alguém se associa ao número de Suas esposas. Isso declaram aquelas palavras dos Cânticos: "Vinde, ó filhas de Sião, e vede o rei Salomão com o diadema com o qual o coroou sua mãe no dia de suas núpcias, no dia da alegria de seu coração" (Cânt 3, 11). Isso, porém, vale só daquelas almas que se consagraram sem restrição ao amor do Esposo Divino. Desposando Jesus uma tal alma, quer que todo o Céu se alegre com Ele e entoe hinos de regozijo: "Alegremo-nos e exultemos e demos-Lhe glória, porque são chegadas as bodas do Cordeiro e Sua esposa está ornada" (Apoc 19, 7). Os ornatos com que Jesus quer ver ataviadas Suas esposas são as virtudes, particularmente o amor e a pureza, que são apresentadas nos Cânticos como coroas de prata e de ouro: "Nós te faremos umas cadeias de ouro listradas de prata" (Cant 1, 10).
São estas as vestes pomposas e as jóias com que o Senhor atavia Suas esposas, e das quais fala Santa Inês: "Ele circundou minha direita e meu pescoço com um colar de pedras preciosas, revestiu-me com um hábito bordado a ouro e ornado com artísticos relevos e deslumbrantes adornos".
Os seculares buscam coisas terrenas, mas as esposas de Jesus Cristo nada mais querem senão Deus; por isso delas se pode afirmar ao pé da letra: "Esta é a geração dos que buscam a Deus" (Sl 23, 6). "Ó esposas do Redentor, exclama São Tomás de Villanova, não deveis buscar qual de vós sobrepuja as outras por seu nascimento, seus talentos ou fortuna; examinai, antes, quem é mais agradável ao Esposo Divino, quem vive unida mais intimamente a Ele, quem é mais humilde, pobre e obediente". Ouçamos também o que diz o Espírito Santo: "Filho, quando entrares ao serviço de Deus... prepara tua alma para a tentação" (Ecli 2, 1), para sofreres com humildade e paciência, pois "o ouro e a prata se provam no fogo, e os homens que Deus quer receber, na fornalha da humilhação" (Id. v. 5). "Ninguém pode servir a dois senhores" (Mat 6, 24), a Deus e ao mundo. quem, portanto, quiser consagrar-se a Deus deve renunciar ao mundo, e quem quiser tornar-se esposa de Jesus Cristo deverá exclamar incessantemente: "Deus só é todo o meu tesouro e meu único bem".
São José de Calazans diz que, se não se der a Jesus todo o coração, não se Lhe deu nada. Isso é inteiramente verdade, porque nosso coração já é em si muito pequeno para amar dignamente a um Deus que merece um amor infinito; e esse pequeno coração deveria ainda ser dividido entre Deus e as criaturas?
Como poderás, pois, tu, alma cristã, te incomodares com o mundo, depois de te consagrares a Deus? Esquece de tudo o mais e procura guardar o teu coração inteiro para teu Divino Esposo, que escolheste para Lhe dedicares todo o teu amor. Eu disse: teu coração inteiro, porque Jesus Cristo quer que Sua esposa seja "um jardim fechado e uma fonte selada" (Cânt 4, 12); um jardim fechado, pois não deve receber a ninguém mais senão a seu Divino Esposo; uma fonte selada, porque esse Divino Esposo é zeloso e não permite que encontre entrada no coração de sua esposa outro amor que o amor por Ele. Por isso diz-Lhe: "Quero que me coloques como um selo sobre teu coração e sobre teu braço" (Cant 8, 6), para que a ninguém mais ames senão a Mim, e para que todos os teus atos sejam feitos com a única intenção de Me agradares. O Amado é colocado como um selo sobre o coração e o braço, diz São Gregório, quando a alma mostra por sua vontade (isto é, o coração) e por suas ações (isto é, o braço), quanto ama a seu celeste Esposo.
Quando o amor divino reina numa alma, expulsa toda a afeição que não se refere a Deus, pois "o amor é forte como a morte" (Id. it.). Como nada há que possa resistir à veemência da morte quando é chegada a sua hora, assim também não há nenhum impedimento e nenhuma dificuldade que não seja superada pelo amor divino, quando ele se apodera de um coração. "Se um homem der todas as riquezas de sua casa, ele as desprezará como se nada tivesse dado" (Id., v. 7). Um coração que ama a Deus, despreza tudo o que lhe oferece e pode oferecer o mundo; numa palavra, ele despreza tudo o que não é Deus. São Bernardo diz que Deus, como nosso Senhor, exige de nós temor; como Pai, respeito; como Esposo, porém, unicamente amor.
A Venerável Francisca Farnese não conhecia meio mais eficaz para estimular a si e às suas companheiras a tender à perfeição, do que a recordação de que eram esposas de Jesus Cristo. Está fora de dúvida, dizia ela, que cada uma de vós foi escolhida por Deus para se tornar santa, pois que vos concedeu agrande honra de vos fazer Suas esposas. E, de fato, é essa uma graça inapreciável, que exige uma fiel cooperação. Santo Agostinho escreveu a uma virgem consagrada a Deus: "Tens um Esposo que é mais belo que tudo o que existe no Céu e na terra, e que te deu um penhor seguro de Seu amor escolhendo-te para Sua esposa. Podes concluir disso quão obrigada estás a pagar o Seu amor". Ó esposa de Jesus Cristo, não te ocupes mais contigo e com o mundo; não pertences mais ao mundo, nem a ti mesma, mas a Deus; e cuida unicamente em viver para esse Esposo que escolheste.
Escolheste a Deus por Esposo, mas primeiramente te escolheu o Senhor para Sua esposa. Quantas almas não deixou Ele no mundo, não lhes concedendo os favores que a ti fez? O Salvador preferiu-te a todas essas almas, não por seres mais digna, mas por te amar mais que às outras. Por isso te diz o Senhor, pela boca do Profeta (Ez 16, 8), que o tempo que te resta de vida é "um tempo para amar". Deves ligar-te a Jesus, teu Esposo, com toda a tua confiança e, com todo o teu amor, prender-te a Ele, que te amou desde a eternidade, que te criou por Sua bondade, e te chamou a Seu santo amor por meio de tantas graças especiais. Por isso, se o mundo solicitar o teu amor, ó esposa de Jesus Cristo, diz-lhe com Santa Inês: "Aparta-te de mim, pábulo da morte. Desejas o meu amor, mas eu não posso amar a mais ninguém do que a meu Deus, que me amou primeiro". "Porque és a esposa de um Deus, diz São Jerônimo, reveste-te de um santo orgulho".
Os seculares se orgulham de sua união com pessoas nobres e ricas; tu, porém, podes te gloriar de uma sorte muito melhor, porque te tornaste esposa de um Rei Celeste. Dize, pois, cheia de alegria e santo orgulho: "Achei a quem meu coração ama; prende-lo-ei com meu amor e não O largarei mais" (Cant 3, 4).
De fato, é uma imensa felicidade para uma virgem quando ela pode gloriar-se e dizer: "Aquele a quem os Anjos do Céu desejam servir, é meu Esposo. Meu Criador escolheu-me para Sua esposa, e, como Ele é o Rei e o Senhor do mundo, cingiu-me igualmente com uma coroa de rainha".
Deves saber, entretanto, ó esposa do Senhor que lês esses louvores, que não possuis irrevogavelmente essa coroa enquanto permaneceres aqui na terra; poderás perdê-la novamente por tua culpa; para que ninguém ta roube, segura-a fortemente (Apoc 3, 11). Renuncia às criaturas, une-te cada vez mais intimamente a Jesus Cristo pelo amor e pela oração, e suplica-Lhe sem cessar que não permita que te tornes outra vez infiel. Deves dizer-Lhe: Ó Jesus, meu divino Esposo, não permitais que me separe de Vós.
E quando as criaturas quiserem apoderar-se de teu e daí expulsar Jesus Cristo, dize desassombradamente com o Apóstolo, confiada na assistência divina: "Quem me separará do amor de Jesus Cristo? Nem a morte, nem a vida, nem criatura alguma será capaz de nos separar do amor de Deus" (Rom 8, 35).
Nota: Quando o Santo Doutor fala da santa virgindade, refere-se às almas, tanto das mulheres quanto dos homens.