sexta-feira, 30 de abril de 2010

Questão XXXII - Do conhecimento das pessoas divinas

QUESTÃO XXXII — DO CONHECIMENTO DAS PESSOAS DIVINAS


Em seguida devemos tratar do conhecimento das Pessoas divinas. E nesta questão discutem-se quatro artigos:
  1. Se pela razão natural podemos conhecer as Pessoas divinas;
  2. Se devemos atribuir algumas noções às Pessoas divinas;
  3. Do número das noções;
  4. Se é lícito opinar diversamente sobre as noções.

ART. I. — SE PODEMOS CONHECER A TRINDADE DAS PESSOAS DIVINAS PELA RAZÃO NATURAL


(I Sent., dist. III, q. 1, a. 4; De Verit., q. 10, a. 13; in Boet. De Trin., q. 1, a. 4; ad Rom., cap. I, lect. VI)

O primeiro discute-se assim. — Parece que a Trindade das divinas Pessoas pode ser conhecida pela razão natural.
1. — Pois, os filósofos não chegaram ao conhecimento de Deus senão pela razão natural. Ora, disseram muitas coisas sobre a Trindade das Pessoas. — Assim, diz Aristóteles: Com este número ternário, aplicamo-nos a magnificar o Deus uno, superior às propriedades das coisas criadas. — E Agostinho também diz: Aí li (nos livros dos Platônicos), não certamente com estas palavras, mas exatamente com este sentido, que no princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e Deus era o Verbo, e o mais que se segue; ora, tais palavras ensinam a distinção das Pessoas divinas. — E por sua vez diz a Glosa, que os magos do Faraó erraram no terceiro sinal, a saber, no conhecimento da terceira Pessoa, i. é, o Espírito Santo; e portanto conheceram pelo menos duas. — E enfim o Trimegisto diz: A mónada gerou a mónada, e em si refletiu o seu ardor; por onde declara a geração do Filho e a processão do Espírito Santo. Logo, podemos ter conhecimento das Pessoas divinas, pela razão natural.
2. Demais. — Ricardo de S. Vitor diz: Creio sem dúvida que a qualquer explanação da verdade não somente não faltam os argumentos prováveis, mas, nem os necessários. Donde, as razões para provar a Trindade das Pessoas alguns as foram buscar no infinito da bondade divina, que a si mesma infinitamente se comunica, na processão das divinas Pessoas. Outros, porém, foram-nas buscar no fato de não poder ser agradável a posse de nenhum bem, sem a coparticipação de outrem. Porém Agostinho, para manifestar a Trindade das Pessoas, parte da processão do verbo e do amor em a nossa mente; e essa via nós a seguimos no que antes dissemos. Logo, pela razão natural pode ser conhecida a Trindade das Pessoas.
3. Demais. — É supérfluo revelar ao homem o que ele não pode conhecer pela sua razão. Ora, não se pode dizer, que a revelação divina, quanto ao conhecimento da Trindade, seja supérflua. Logo, a Trindade das Pessoas pode ser conhecida pela razão humana.
Mas, em contrário, Hilário: Não pense o homem poder alcançar com a inteligência o sacramento da geração. E Ambrósio: É impossível conhecer o segredo da geração: a mente falha, a palavra emudece. Ora, pela origem da geração e da processão se distingue a Trindade das Pessoas divinas, como do sobredito resulta (q. 30, a. 2). Logo, como o homem não pode saber e alcançar com a inteligência aquilo de que não pode obter a razão necessária, segue-se que a Trindade das Pessoas não pode ser pela razão conhecida.
SOLUÇÃO. — É impossível chegar, pela razão natural, ao conhecimento da Trindade das Pessoas divinas. Pois, já demonstramos (q. 12, a. 4, 11, 12), que o homem, pela razão natural, não pode chegar ao conhecimento de Deus, a não ser pelas criaturas. Ora, estas levam ao conhecimento daquele como o efeito, ao da causa. Donde, podemos conhecer, de Deus, pela razão natural, o que necessariamente lhe convém como princípio de todos os seres; e este fundamento já usamos (q. 12, a. 12) quando tratamos de Deus. Mas, sendo comum a toda a Trindade, a virtude criadora de Deus pertence à unidade da essência e não à distinção das Pessoas. Logo, pela razão natural podemos conhecer o que pertence à unidade essencial de Deus e não, o concernente à distinção das Pessoas. E quem pretender provar a Trindade das Pessoas pela razão natural, duplamente irá de encontro à fé. — Primeiro, quanto à dignidade mesma desta, cujo objeto são as realidades invisíveis, sobre excedentes à razão humana. Donde o dizer o Apóstolo (Hb 11, 1): A fé se refere às coisas que não aparecem; e noutro lugar (1 Cor 2, 6): Entre os perfeitos falamos da sabedoria; não porém da sabedoria deste século nem da dos príncipes deste século; mas falamos da sabedoria de Deus, em mistério, que está encoberta. — Segundo, quanto à utilidade de atrair os outros à fé. Pois quando, para provar a fé, apresentamos razões não necessitantes, caímos na irrisão dos infiéis, crentes que nos apoiamos em tais razões para crermos.
Logo, não devemos tentar provar as verdades da fé senão com autoridades, para os que as admitem. Para os outros, porém, basta provar não ser impossível o que a fé ensina. Daí o dizer Dionísio: Quem recusa totalmente as Sagradas Letras longe estará da nossa filosofia; mas com quem admitir a verdade das Sagradas Escrituras também nós usaremos da mesma regra.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os filósofos não conheceram o mistério da Trindade das divinas Pessoas, pelas suas propriedades, que são a paternidade, a filiação e a processão, segundo aquilo do Apóstolo (1 Cor 2, 6): Falamos da sabedoria de Deus, a qual nenhum dos príncipes deste século conheceu, i. é, dos filósofos, segundo a Glosa. Conheceram porém eles alguns atributos essenciais próprios às Pessoas, como o poder, ao Pai, a sabedoria, ao Filho, a bondade, ao Espírito Santo, como a seguir se verá (q. 39, a. 7). — Quanto ao dito de Aristóteles — Com este número aplicamo-nos etc., não devemos entendê-lo como introduzindo o número ternário, em Deus, mas como significando que os antigos usavam este número nos sacrifícios e nas orações, por causa de certa perfeição que ele encerra. — Também nos livros dos Platônicos se lê — No princípio era o Verbo — não que o Verbo signifique a pessoa gerada em Deus, mas enquanto que por tal palavra se entende a razão ideal das coisas, própria ao Filho, pela qual Deus as criou a todas. — E embora conhecessem as propriedades das três Pessoas, diz-se contudo que erraram no terceiro sinal, i. é, no conhecimento da terceira Pessoa, transviando-se quanto à bondade, própria do Espírito Santo, pois, conhecendo-o como Deus, não o glorificaram como Deus, segundo diz o Apóstolo (Rm 1, 21). Ou porque, admitindo os Platônicos um ser primeiro, a que chamavam o pai de toda a universalidade das coisas, consequentemente admitiam outra substância inferior a ele, a que denominavam mente ou intelecto paterno, que encerrava as razões de todas as coisas, como o expõe Macróbio no Sonho de Cipião. Mas não admitiam nenhuma terceira substância separada correspondente ao Espírito Santo. Assim também nós não admitimos o Pai e o Filho, diferentes pela substância, erro de Orígenes e de Ário, discípulos neste ponto dos Platônicos. — Quanto ao dito de Trimegisto — A mónada gerou a mónada e em si refletiu o seu ardor, não devemos referi-lo à geração do Filho nem à processão do Espírito Santo, mas à produção do mundo; pois, um só Deus produziu um mundo, por amor de si mesmo.
RESPOSTA À SEGUNDA. — De duplo modo podemos dar a razão de uma coisa. De um modo, para lhe provar suficientemente o fundamento; assim, nas ciências da natureza damos a razão suficiente para provar que o movimento do céu é sempre de velocidade, uniforme. De outro modo, damos, não a razão que lhe prove suficientemente o fundamento, mas a explicativa da congruência desse fundamento já estabelecido, com os efeitos dele resultantes. Assim, a astrologia dá a razão dos excêntricos e dos epiciclos, mostrando que, admitido esse fundamento, podem-se explicar as aparências sensíveis dos movimentos celestes, sem ser contudo essa razão suficientemente probante; pois talvez, admitida outra opinião, as referidas aparências se pudessem explicar. Por onde, do primeiro modo, podemos dar a razão para provar a unidade de Deus e outros semelhantes atributos. Mas, ao segundo modo pertencem as razões dadas para manifestar a Trindade; a saber, que esta admitida, são tais razões congruentes, embora não provem suficientemente a Trindade das Pessoas. E isto mesmo se evidencia, em particular. — Assim, a bondade infinita de Deus se manifesta também na produção das criaturas; porque só um poder infinito é capaz de produzir do nada; mas necessário não é, de comunicar-se Deus com infinita bondade, que dele proceda um ser infinito, senão que cada ser deve receber a divina bondade segundo o seu modo. E semelhantemente, o dito — sem a coparticipação de outrem não pode ser agradável a posse de nenhum bem — se aplica a uma pessoa que, não possuindo a bondade perfeita, precisa, para ter a plena bondade do prazer, do bem de outro ser que lhe esteja unido. Quanto à semelhança do nosso intelecto, ela nada prova, suficientemente, de Deus, pois o intelecto não existe univocamente em Deus e em nós. — Donde vem o dizer Agostinho, que pela fé chegamos ao conhecimento, mas não inversamente.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O conhecimento das divinas Pessoas nos é necessário duplamente. — Primeiro, para pensarmos retamente da criação das coisas; pois, dizendo que todas as fez Deus pelo seu Verbo, excluímos o erro dos que ensinam que Deus as produziu por necessidade de natureza. Introduzindo a processão do Amor, mostramos que Deus não produziu as criaturas por precisar delas ou por qualquer outra causa extrínseca, mas pelo amor da sua bondade. Por isso Moisés, depois de ter dito — No princípio criou Deus o céu e a terra — acrescenta — Disse Deus: Faça-se a luz — para manifestar o Verbo divino; e em seguida: — E viu Deus que a luz era boa — para mostrar a aprovação do divino Amor; e semelhantemente nas outras obras. — Segundo e mais principalmente, para pensarmos retamente sobre a salvação do gênero humano, levada a cabo pelo Filho encarnado e pelo dom do Espírito Santo.

ART. II. — SE DEVEMOS INTRODUZIR NOÇÕES EM DEUS


(I Sent., dist. XXXIII, a. 2)

O segundo discute-se assim. — Parece que não devemos introduzir noções em Deus.
1. — Pois, Dionísio diz: Não devemos ousar afirmar de Deus nada mais do que o que nos foi expresso pelas Sagradas Letras. Ora, a Sagrada Escritura nenhuma menção faz das noções. Logo, não devemos admitir noções em Deus.
2. Demais. — Tudo quanto dizemos de Deus concerne à unidade da essência ou à Trindade das Pessoas. Ora, nem a esta nem àquela concernem as noções. Pois, das noções nada se predica essencialmente; assim, não dizemos que a paternidade seja sábia ou crie; nem lhes atribuímos propriedades da pessoa, pois não dizemos que a paternidade gere e a filiação seja gerada. Logo, em Deus se não devem introduzir noções.
3. Demais. — Nos seres simples não devemos introduzir noções abstratas, que sejam princípios de conhecimento; pois, os seres simples a si mesmos se conhecem. Ora, as Pessoas divinas são simplicíssimas. Logo, nelas não devemos introduzir noções.
Mas, em contrário, diz João Damasceno: Reconhecemos a diferença das hipóstases, i. é, das Pessoas, por três propriedades, a saber, a paternal, a filial e a processional. Logo, devemos introduzir em Deus, propriedades e noções.
SOLUÇÃO. — Prepositivo, atendendo à simplicidade das Pessoas, disse que se não devem introduzir em Deus propriedades e noções; e quando as encontra, expõe o abstrato pelo concreto. E assim como costumamos dizer — Rogo à tua benignidade — i. é, — a ti benigno — assim, quando se fala da paternidade em Deus, entende-se o Deus Pai. Mas, como já ficou demonstrado (q. 3, a. 3, ad 1; q. 13, q. 1, ad 2), não prejudica a divina simplicidade aplicarmos a Deus nomes concretos e abstratos, porque, como inteligimos assim nomeamos. Porque o nosso intelecto, não podendo atingir a simplicidade divina, em si mesma considerada, por isso apreende e nomeia as realidades divinas ao seu modo, i. é, segundo o que descobre nas coisas sensíveis, das quais tira o conhecimento. Ora, para significar as formas simples destas, usamos de nomes abstratos; e para significar as coisas subsistentes, de nomes concretos. E por isso, como já dissemos (Ibid), exprimimos as realidades divinas, pelo concernente à simplicidade, com nomes abstratos; e pelo concernente à subsistência e ao complemento, com nomes concretos. Ora, é necessário exprimir, abstrata e concretamente, não só os nomes essenciais, como quando dizemos divindade e Deus, sabedoria e sábio; mas também os pessoais, como quando dizemos paternidade e pai. E a isto sobretudo nos obrigam duas razões. A primeira é a instância dos heréticos. Pois, se nos perguntassem, ao confessarmos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus em três Pessoas, pelo que são um só Deus e pelo que são três Pessoas, do mesmo modo que responderíamos serem um Deus pela essência e pela divindade, assim também devem existir certos nomes abstratos pelos quais possamos responder que as Pessoas se distinguem. E tais são as propriedades ou noções expressas em abstrato, como paternidade e filiação. E assim, em Deus, a essência significa o que é, a Pessoa, quem é, e a propriedade, enfim, pelo que é. A segunda é que, em Deus, uma Pessoa se refere a duas, a saber, a Pessoa do Pai à do Filho e à do Espírito Santo. Não porém pela mesma relação; porque daí resultaria referirem-se também o Filho e o Espírito Santo ao Pai por uma e mesma relação; e assim como em Deus só a relação multiplica a Trindade, seguir-se-ia não serem duas Pessoas o Filho e o Espírito Santo. Nem se pode dizer, como queria prepositivo, que assim como Deus de um só modo se refere às criaturas, embora estas diversamente se lhe refiram a ele, assim também o Pai, por uma só relação, se refere ao Filho e ao Espírito Santo, se bem estes se lhe refiram a ele por duas relações. Porque, consistindo a razão específica do relativo em referir-se a outro, necessário é dizer-se, que duas relações não são especificamente diversas se lhes corresponde, por contrariedade, uma só relação; e por isso necessariamente são diversas as relações entre senhor e pai, segundo a diversidade entre filiação e escravidão. Ora, todas as criaturas de Deus se lhe referem por uma só espécie de relação. Porém o Filho e o Espírito Santo não se referem ao Pai pelas relações da mesma natureza; e portanto, o caso não é o mesmo. Além disso, Deus não tem necessariamente uma relação real com as criaturas, como já dissemos (q. 28, a. 1 ad 3). E de outro lado, não há inconveniente em se multiplicarem nele as relações de razão. Mas no Pai é necessário haver uma relação real que o refira ao Filho e ao Espírito Santo; e daí, segundo a dupla relação do Filho e do Espírito Santo com o Pai, o ser forçoso admitir neste duas relações, que o refiram ao Filho e ao Espírito Santo. Por onde, sendo a Pessoa do pai uma só, é necessário separadamente exprimir as relações em abstrato, chamadas propriedades e noções.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora a Sagrada Escritura não mencione as noções, menciona contudo as Pessoas, nas quais aquelas se compreendem, como abstrato, no concreto.
RESPOSTA À SEGUNDA. — As noções, em Deus, não significam realidades, mas umas certas razões, pelas quais se conhecem as Pessoas, embora essas noções ou razões nele existam realmente, como já dissemos (q. 28, a. 1). Por onde, tudo o que se referir a um ato essencial ou pessoal não se pode predicar das noções, porque isto lhes repugna ao modo da significação. Assim, não podemos dizer que a paternidade gere ou crie, seja sábia ou inteligente. Porém, o que for essencial e não se referir a nenhum ato, mas remover de Deus as condições da criatura, pode-se predicar das noções; e assim pode dizer, que a paternidade é eterna ou imensa, ou predicações semelhantes. Semelhantemente, pela sua identidade real, podem os substantivos pessoais e essenciais ser predicados das noções; e assim podemos dizer: A paternidade é Deus e a paternidade é Pai.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora as Pessoas sejam simples, contudo, sem prejuízo da simplicidade, podem ser expressas em abstrato as razões próprias delas, como dissemos.

ART. III. — SE HÁ CINCO NOÇÕES


(I Sent., dist. XXVI, q. 2, a. 3; dist. XXVIII, q. 1, a. 1; De Pot., q. 3, a. 9, ad 21, 27; q. 10, a. 5, ad 12; Compend Theol., cap. LVII sqq)

O terceiro discute-se assim. — Parece que não há cinco noções.
1. — Pois, as noções próprias das Pessoas são as relações pelas quais se distinguem. Ora, em Deus, como se disse (q. 28, a. 4), não há senão quatro relações. Logo, só há também quatro noções.
2. — Demais. — Por ter uma só essência, diz-se que Deus é uno; mas, por serem três as Pessoas, que é trino. Se portanto, há nele cinco noções, há de se chamar quino, o que é inconveniente.
3. — Demais. — Se, por existirem em Deus três Pessoas, existem cinco noções, é necessário que em alguma das pessoas haja certas noções, duas ou mais, assim como na Pessoa do Pai existe a inascibilidade, a paternidade e a expiração comum. Ora, ou estas três noções diferem realmente, ou não. Se diferem, segue-se que a Pessoa do Pai é composta de várias realidades. Se, porém, só racionalmente diferem, segue-se que uma delas pode predicar-se da outra, podendo então dizer-se, que assim como a bondade de Deus é a sua sabedoria, por não haver entre elas diferença real, assim a expiração comum é a paternidade o que se não concede. Logo, não há cinco noções. Mas, em contrário, parece sejam mais as noções. Pois, assim como o Pai, de ninguém procedendo, dá origem à noção da inascibilidade, assim do Espírito Santo não procede outra pessoa. E, portanto, será necessário admitir-se uma sexta noção. Demais. — Sendo comum ao Pai e ao Filho o proceder deles o Espírito Santo, assim é comum ao Filho e ao Espírito Santo o procederem do Pai. Logo, assim como há uma noção comum ao Pai e ao Filho, assim deve haver outra comum ao Filho e ao Espírito Santo.
SOLUÇÃO. — Chama-se noção à razão própria pela qual se conhece a Pessoa divina. Ora, as Pessoas, divinas se multiplicam pela origem; e como esta implica a proveniência de outro ser e o ser proveniente doutro, por estes dois modos podemos conhecer a pessoa. Por onde, não pode a Pessoa do Pai ser conhecida como provinda de outro, mas como a que ninguém provém; cabendo-lhe então deste modo a noção da inascibilidade. Mas, enquanto alguém dele provém de duplo modo pode o Pai ser conhecido pela noção de paternidade; e enquanto dele provém, o Espírito Santo, o é pela noção de espiração comum. O Filho, por seu lado, pode ser conhecido como proveniente de outro por nascimento; e assim, é conhecido pela filiação; e porque dele procede outra Pessoa, a saber, o Espírito Santo, é conhecido ainda pelo mesmo modo porque o Pai o é, a saber, pela espiração comum. Quanto ao Espírito Santo, pode ser conhecido enquanto procedente de outro ou de outros, e assim o é pela processão; não o é, porém, por dele proceder outro, pois, nenhuma pessoa divina dele procede. Logo, há cinco noções em Deus, a saber: a inascibilidade, a paternidade, a filiação, a espiração comum, e a processão. Mas delas só quatro são relações, pois a inascibilidade só por uma redução é relação, como depois se dirá (q. 33, a. 4 ad 3). Enquanto às outras quatro, elas são somente propriedades, pois, a espiração comum, convindo a duas pessoas, não é uma propriedade. E três são as noções pessoais, i. é, constitutivas das Pessoas, a saber, a paternidade, a filiação e a processão; pois, a espiração comum e a inascibilidade se chamam noções de Pessoas, não porém pessoais, como a seguir (q. 40, a. 1, ad 1) mais claro ficará.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Além das quatro relações é necessário introduzir outra noção, como se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A essência em Deus é entendida como significativa de uma certa realidade; e, semelhantemente, como certas realidades, são entendidas as Pessoas. Mas as noções consideram-se como razões notificativas das Pessoas. Por onde, embora Deus seja denominado uno pela unidade de essência, e trino, pela Trindade das Pessoas, todavia não lhe chamamos quino, por causa das cinco noções.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como só a oposição relativa faz a pluralidade real em Deus, às varias propriedades de uma Pessoa, não se opondo relativamente entre si, realmente não diferem. Mas nem por isso se predicam umas das outras, pois se consideram como significativas das diversas razões das Pessoas; assim como também não dizemos, que o atributo da potência é o atributo da ciência, embora digamos que a ciência é uma potência.
RESPOSTA À QUARTA. — A pessoa, importando dignidade, como já se disse (q. 29, a.3 ad 2), nenhuma noção pode ser admitida, no Espírito Santo, por não provir dele nenhuma Pessoa. Pois, isto não lhe pertence à dignidade, como pertence a autoridade do Pai não provir ninguém.
RESPOSTA À QUINTA. — O Filho e o Espírito Santo não convém em se originarem do Pai de um modo especial, como o Pai e o Filho convém em produzirem o Espírito Santo de um modo especial. Ora é necessário que o princípio de conhecimento seja algo de especial. Portanto, não há semelhança.

ART. IV. — SE É LÍCITO OPINAR CONTRARIAMENTE SOBRE AS NOÇÕES


(I Sent., dist. XXXIII, a. 5)

O quarto discute-se assim. — Parece que não é lícito opinar contrariamente sobre as noções.
1. — Pois, Agostinho diz em matéria nenhuma se erra mais perigosamente do que na da Trindade, à qual é certo pertencerem as noções. Ora, opiniões contrárias não vão sem erro. Logo, não é lícito opinar contrariamente sobre as noções.
2. Demais. — Pelas noções se conhecem as Pessoas, como se disse (a. 2, 3). Ora, destas não é lícito opinar contrariamente. Logo, nem daquelas.
Mas, em contrário, os artigos da fé não concernem às noções. Logo, destas se pode opinar de tal maneira ou de tal outra.
SOLUÇÃO. — Duplamente pode uma verdade ser de fé. — De um modo direto; e assim aquelas que principalmente nos foram por Deus transmitidas, como o ser ele trino e uno, o ter-se encarnado o seu Filho e semelhantes. E opinar falsamente sobre tais coisas é ao mesmo tempo incidir em heresia, sobretudo se isso for acompanhado de pertinácia. — Porém, de modo indireto pertencem à fé as afirmações das quais resulta algo de contrário a ela; assim, de se dizer que Samuel não foi filho de Elcana seguir-se-ia a falsidade da Escritura Divina. Donde, no tocante a tais assuntos, alguém pode opinar falsamente, sem perigo de heresia, antes de ser considerado determinado que daí se segue algo contrário a fé; e sobretudo se não aderir pertinazmente. Mas, depois de ser manifesto e sobretudo se for determinado pela Igreja, que daí segue algo contrário a fé, já não pode então errar sem heresia. Donde vem o se reputarem hoje heresia muitas opiniões que outrora se não reputavam tais, por ser hoje mais manifesto o que delas se segue. Assim, pois, devemos dizer que sobre as noções, alguns opinaram contrariamente sem perigo de heresia, não entendendo sustentar nada de contrário a fé. Mas quem opinasse falsamente sobre as noções, considerando que daí se seguiria algo de contrário a fé, incidiria em heresia. Donde se deduzem claras as respostas às objeções.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Questão XXXI - Da unidade e da pluralidade em Deus

QUESTÃO XXXI — DA UNIDADE E DA PLURALIDADE EM DEUS


Em seguida devemos tratar da unidade e da pluralidade em Deus. E nesta questão discutem-se quatro artigos:
  1. Do nome de Trindade;
  2. Se se pode dizer: O Filho é diferente do Pai;
  3. Se a locução exclusiva da diferença pode acrescentar-se, em Deus, ao nome essencial;
  4. Se pode acrescentar-se ao termo pessoal.

ART. I. — SE EM DEUS HÁ TRINDADE


(Sent., dist. XXIV, q. 2, a. 2)

O primeiro discute-se assim. — Parece que não há trindade em Deus.

1. — Pois, todo nome divino significa substância ou relação. Ora, o nome de Trindade não significa substância, porque então se predicaria, de cada uma das pessoas; e nem relação, porque não é empregado como referente a outro. Logo, não se deve aplicar a Deus o nome de Trindade.

2. Demais. — O nome de Trindade, significando multidão, é coletivo e portanto não convém a Deus, porque a unidade expressa pelo nome coletivo é mínima, ao passo que a de Deus é máxima. Logo, o nome de Trindade não convém a Deus.

3. Demais. — Todo trino é tríplice. Ora, a triplicidade, sendo uma espécie de desigualdade, não existe em Deus. Logo, nem a Trindade.

4. Demais. — Sendo Deus a sua essência, tudo o que nele existe está na unidade da sua essência. Ora, se em Deus há Trindade, esta existirá na unidade da sua essência. Logo, haverá nele três unidades essenciais, o que é herético.

5. Demais. — Em tudo o que se diz de Deus, o concreto é predicado do abstrato; assim a deidade é Deus e a paternidade é o Pai. Ora, à Trindade se não pode chamar trina, porque então haveria nove realidades em Deus, o que é errôneo. Logo, não se deve aplicar o nome de Trindade a Deus.

Mas, em contrário, diz Atanásio: Devemos venerar a Unidade na Trindade e a Trindade na Unidade.

SOLUÇÃO. — O nome de Trindade em Deus significa um determinado número de pessoas. Pois, assim como pomos a pluralidade de pessoas em Deus, assim também devemos usar do nome de Trindade; porquanto, o mesmo que a pluralidade significa indeterminadamente, determinadamente o significa o nome de Trindade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O nome de Trindade, segundo a etimologia do vocábulo, significa a essência una de três pessoas; e é como se disséssemos unidade de três. Mas, na sua expressão própria esse vocábulo significa antes o número das pessoas de uma mesma essência. Por isso não podemos dizer que o Pai seja Trindade, pois não é três pessoas. Porque o vocábulo não significa as relações mesmas das pessoas, mas antes o número delas, nas suas relações mútuas. E daí vem que este, pela sua denominação, não é um termo que exprima relação.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Duas coisas implica o nome coletivo: a pluralidade dos supostos e uma certa unidade, a saber, a de uma determinada ordem. Assim, o povo é uma multidão de homens compreendidos numa mesma ordem. Ora, quanto à primeira, o nome de Trindade convém com os nomes coletivos; mas quanto à segunda, deles difere; pois, na divina Trindade não somente há unidade de ordem, mas com esta vai também a de essência.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Trindade se emprega em sentido absoluto, pois significa o número ternário das pessoas. Ao passo que a triplicidade significa proporção de desigualdade; pois, é uma espécie de proporção desigual, como está claro em Boécio. Logo, não há em Deus triplicidade, mas Trindade.

RESPOSTA À QUARTA. — Pela Trindade divina se entendem o número e as pessoas enumeradas. Assim, quando falamos da Trindade na unidade, não introduzimos o número na unidade da essência, como se esta fosse três vezes uma; mas, as pessoas enumeradas, na unidade da natureza, assim como dizemos, que os supostos de uma natureza nela existem. E inversamente, dizemos, que há unidade na Trindade, como dizemos, que a natureza está nos seus supostos.

RESPOSTA À QUINTA. — Quando dizemos - A Trindade é trina - com a idéia de número, que ai introduzimos, exprimimos a multiplicidade do mesmo número, em si mesmo; pois, o que chamamos trino importa distinção nos supostos do ser do qual o predicamos. Portanto, não podemos dizer que a Trindade é trina; pois seguir-se-ia, de ser trina a Trindade, que três seriam os seus supostos; assim como, de dizer-se que Deus é trino, resulta serem três os supostos da divindade.

ART. II. — SE O FILHO É OUTRO QUE NÃO O PAI


(I Sent., dist. IX, q. 1, a. 1; dist. XIX, q. 1, a. 1, ad 2; dist. XXIV, q. 2, a. 1; De Pot., q. 9, a. 8)

O segundo discute-se assim. — Parece não é o Filho outro que não o Pai.

1. — Pois outro implica relação de diversidade substancial. Se, portanto, o Filho é outro que não o Pai, resulta que é deste diverso, o que vai contra Agostinho quando afirma que, dizendo três pessoas, não queremos nisso compreender a diversidade.

2. Demais. — Todos os seres entre si outros, de algum modo entre si diferem. Se, pois, o Filho é outro que não o Pai, resulta que é deste diferente; o que vai contra Ambrósio, dizendo, O Pai e o Filho são unos pela divindade; nem há entre eles diferença de substância ou qualquer outra diversidade.

3. Demais. — De ser outro deriva o ser alheio. Ora, o Filho não é alheio ao Pai: pois, Hilário diz, que nas pessoas divinas nada é diverso, nada alheio, nada separável. Logo, o Filho não é outro que não o Pai.

4. Demais. — Outro e outra coisa significam o mesmo e só diferem pela significação genérica. Ora, se o Filho é outro que não o Pai, resulta que o primeiro é outra coisa, diferente do Pai.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Una é a essência do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na qual não é uma coisa o Pai, outra, o Filho e outra, o Espírito Santo, embora pessoalmente seja um o Pai, outro, o Filho, outro, o Espírito Santo.

SOLUÇÃO. — Pois que se incorre em heresia proferindo palavras desordenadas, como diz Jerônimo, por isso, quando se fala da Trindade, é necessário proceder com cautela e modéstia. Porque, como diz Agostinho, em nenhum assunto mais perigosamente se erra, em nenhum a perquirição é mais laboriosa e a descoberta mais frutuosa. Importa por isso, ao tratarmos da Trindade, evitar dois erros opostos, prudentemente caminhando entre um e outro. Tais são o erro de Ário, ensinando a Trindade das substâncias com a das pessoas; e o da Sabélio, ensinando a unidade de pessoa com a de essência.

Por onde, para escapar ao erro de Ario, devemos evitar aplicar a Deus os nomes de diversidade e diferença, para não o privarmos da unidade de essência. Podemos, porém, usar da palavra distinção, por causa da oposição relativa. E assim, quando em qualquer escritura autêntica encontramos a diversidade ou diferença de pessoas, diversidade ou diferença significam distinção. E para não destruirmos a simplicidade da divina essência, devemos evitar os nomes de separação e divisão, que é a do todo em suas partes. Para não destruirmos a igualdade, devemos evitar o nome de disparidade.

Para não eliminarmos a semelhança, devemos evitar as palavras alheio e discrepante; assim, diz Ambrósio, que no Pai e no Filho não há discrepância, mas, a divindade una; e segundo Hilário, como se disse, em Deus nada é alheio, nada separável.

Por outro lado, para evitarmos o erro de Sabélio devemos evitar a palavra singularidade a fim de não tolhermos a comunicabilidade à essência divina; por isso diz Hilário: É sacrilégio ensinar que o Pai e o Filho são cada qual um Deus. Devemos também evitar a expressão único para lhe não tolhermos o número das pessoas; donde, o dito de Hilário, no mesmo livro, que de Deus se excluem os conceitos de singular e de único. Dizemos, contudo, único Filho, por não haver vários filhos em Deus; não dizemos, porém, único Deus, por ser a divindade comum a todas as pessoas. Também devemos evitar a palavra confundido, para não tolhermos às pessoas a ordem de natureza; donde o dizer Ambrósio: Nem é confundido o que é uno, nem pode ser múltiplo o que não é diferente. Enfim, devemos evitar o nome de solitário para não tolhermos o consórcio das três pessoas; assim, Hilário diz: Não devemos ensinar que Deus é solitário nem diverso.

Ora, a palavra outro, no masculino, só importa distinção de suposto. Por isso, podemos com conveniência dizer que o Filho é outro que não o Pai, por ser outro suposto da natureza divina, como é outra pessoa e outra hipóstase.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Outro, sendo um nome particular, diz respeito ao suposto, e por isso satisfaz-lhe à noção da distinção de substância, que é a hipóstase ou a pessoa. Mas a diversidade exige a distinção substancial da essência. E, portanto, não podemos dizer que o Filho seja diverso do Pai, embora seja outro.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Diferença importa distinção formal. Ora, em Deus há uma só forma, como se lê na Escritura (Fp 2, 6): O qual, tendo a natureza de Deus. — Por onde, não convém propriamente a Deus o nome de diferença, como é claro pela autoridade aduzida. — Contudo, Damasceno usa do nome de diferença, tratando das pessoas divinas, no sentido em que a propriedade relativa é significada a modo de forma; e daí o dizer ele, que não diferem entre si as hipóstases pela substância, mas pelas propriedades determinadas. Ao passo que a diferença é tomada no sentido de distinção, como se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Alheio é o estranho e dissemelhante. Ora, tal não dizemos quando empregamos a palavra outro. E assim, dizemos que o Filho é outro que não o Pai, embora não digamos que seja alheio.

RESPOSTA À QUARTA. — O gênero neutro é uniforme, ao passo que o masculino e o feminino são formados e distintos. E por isso, pelo gênero neutro convenientemente exprimimos a essência comum; mas, pelo masculino e pelo feminino, um suposto determinado em a natureza comum. Por isso, quando se trata do homem, à pergunta — Quem é este? — Responde-se — Sócrates — que é nome do suposto. Mas, à pergunta — Que coisa é este? — responde-se — animal racional e mortal. Por onde, em Deus a distinção, sendo pessoal e não, essencial, dizemos que o Pai é outro que não o Filho, não, porém, outra coisa; e, ao inverso, dizemos que são um, não, porém uno.

ART. III. — SE A LOCUÇÃO EXCLUSIVA SÓ DEVE-SE ACRESCENTAR AO TERMO ESSENCIAL, EM DEUS


(I Sent., dist. XXI, q. 1, art. 1)

O terceiro discute-se assim. — Parece que não devemos acrescentar ao termo essencial, em Deus, a locução exclusiva só.

1. — Pois, segundo o Filósofo, só é quem não está com outro. Ora, Deus está com os anjos e as almas santas. Logo, não podemos dizer que Deus está só.

2. Demais. — Tudo o que se acrescentar ao termo essencial, em Deus, pode ser predicado de qualquer das pessoas, em si, e de todas simultaneamente. Assim, podemos dizer com conveniência que Deus é sábio; podemos dizer — o Padre é Deus sábio, e a Trindade é Deus sábio. Ora, Agostinho escreve: Devemos examinar a opinião que ensina não ser só o Padre o verdadeiro Deus. Logo não se pode dizer — só Deus.

3. Demais. — A locução só, acrescentada ao termo essencial, constituirá uma predicação pessoal ou uma predicação essencial. Ora, pessoal não pode ser; porque a proposição só Deus é Pai é falsa, pois também o homem pode sê-lo. Nem essencial, porque se fosse verdadeira a proposição — Só Deus cria — sê-lo-ia também estoutra — Só o Pai cria — porque tudo o dito de Deus pode sê-lo do Pai. Ora, esta última proposição é falsa, porque também o Filho é criador. Logo, a locução só não se pode acrescentar ao termo essencial, em Deus.

Mas, em contrário, a Escritura (1 Tm 1, 17): Ao Rei dos séculos imortal, invisível, a Deus só.

SOLUÇÃO. — Esta locução só pode ser tomada como categoremática ou sincategoremática. Categoremática é a locução, que atribui de modo absoluto uma realidade a um suposto, como branco, ao homem, quando dizemos homem branco. Donde, se neste sentido tomássemos a locução só, de nenhum modo poderia ser acrescentada a qualquer termo, em Deus; porque afirmaria a soledade relativamente ao termo ao qual se acrescentasse; donde resultaria ser Deus solitário, o que vai contra o que dissemos. Porém, sincategoremática é a locução, que implica uma ordenação do predicado para o sujeito como a locução todo ou nenhum. E semelhantemente a locução só, porque exclui qualquer outro suposto, da união com o predicado. Assim quando dizemos — Sócrates só escreve — não queremos com isso significar que Sócrates seja solitário, mas que ninguém participa com ele do ato de escrever, embora muitos coexistam com ele. E deste modo nada impede se acrescente a locução só, a algum termo essencial em Deus, excluindo-se todos os outros seres de uma união predicativa com Deus; como se disséssemos, — só Deus é eterno, pois, nada, fora dele, o é.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora os anjos e as almas santas estejam sempre com Deus, todavia, se nele não houvesse pluralidade de pessoas, estaria só ou solitário. Pois, não exclui a solidão o estar associado com um ser de natureza diversa; assim dizemos que alguém está só num jardim embora nele haja muitas plantas e animais. E, de idêntica maneira, Deus estaria só e solitário, embora estando com ele anjos e homens, se não existissem várias pessoas divinas. Logo, a sociedade com os anjos e as almas não exclui de Deus a solidão absoluta, e muito menos a relativa, referente a um atributo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A locução só, propriamente falando, não se emprega em relação ao predicado, que é tomado formalmente; pois, diz respeito ao suposto, por excluir este, ao qual se une, outro suposto. Mas o advérbio somente, sendo exclusivo, pode ser empregado em relação ao sujeito e ao predicado, e assim podemos dizer — somente Sócrates corre, i. é, nenhum outro; e — Sócrates corre somente, i. é, nada mais jaz. Por onde, não se pode propriamente dizer — o Pai só é Deus, ou a — Trindade só é Deus; a menos que em relação ao predicado não se subentenda alguma particularidade, como no dizer a Trindade é o Deus que só é Deus. Ora, quando Agostinho diz que não só o Pai é Deus, mas só a Trindade o é, exprime-se expositivamente como se afirmasse: quando se diz — Ao rei dos séculos invisível, a Deus só — esse dito não se aplica à pessoa do Pai, mas só à Trindade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — De um outro modo a locução só pode se acrescentar ao termo essencial; pois, duplo é o sentido da proposição — só Deus é Pai. — Porque a palavra, — Pai — pode ser predicada da pessoa do Pai, e então a proposição é verdadeira, pois, tal pessoa não é homem. Ou pode significar a relação somente e então é falsa, pois, a relação de paternidade também se encontra em outros seres, embora não univocamente. Do mesmo modo, é verdadeira a proposição — só Deus cria, — mas dela se não segue — logo, só o Pai; porque, como dizem os lógicos, a locução exclusiva imobiliza o termo ao qual se une, de modo a se não poder descer abaixo dele, para nenhum suposto. Assim, não há sequência nestas duas proposições: Só o homem é um animal racional mortal; logo, só Sócrates.

ART. IV. — SE A LOCUÇÃO EXCLUSIVA PODE SER UNIDA AO TERMO PESSOAL, MESMO SE O PREDICADO FOR COMUM


(I Sent., dist. XXI, q. 1, a. 2; in Matth., cap. XI)

O quarto discute-se assim. — Parece que a locução exclusiva pode se unir ao termo pessoal, mesmo se o predicado for comum.

1. — Pois, diz o Senhor, falando ao Pai (Jo 17, 3): Para que te conheçam por um só verdadeiro Deus a ti. Logo, só o Pai é Deus verdadeiro.

2. Demais. — Diz a Escritura (Mt 11, 27): Ninguém conheceu o Filho senão o Pai, o que é como se dissesse: Só o Pai conheceu o Filho. Ora, ter conhecido o Filho é comum. Donde se conclui o mesmo que antes.

3. Demais. — A locução exclusiva não exclui aquilo que pertence à noção do termo ao qual se une; e portanto, não lhe exclui a parte nem o todo. Assim, não há seqüência nestas proposições: Sócrates só é branco; — logo, a sua mão não é branca; ou logo, o homem não é branco. Ora, uma pessoa está compreendida na noção de outra, como o Pai, na do Filho e reciprocamente. Portanto, o dizer-se que só o pai é Deus não exclui o Filho ou o Espírito Santo. Donde se conclui que essa locução é verdadeira.

4. Demais. — Canta a Igreja: Tu só és altíssimo, Jesus Cristo. Mas, em contrário. — A locução — Só o Pai é Deus — comporta duas interpretações, a saber: O Pai é Deus — e — Nenhum outro senão o Pai é Deus. Ora, esta última é falsa, pois, o Filho é outro que não o Pai e é Deus; logo, também esta outra é falsa: Só o Pai é Deus. E assim, em casos semelhantes.

SOLUÇÃO. — Quando dizemos — Só o Pai é Deus — esta proposição pode ter sentido múltiplo. Assim, significando só a soledade em relação ao Pai, é falsa, pois é tomada em sentido categoremático. Mas, se for tomada em sentido sincategoremático, de novo pode ter sentido múltiplo. Se implicar alguma exclusão da forma do sujeito, então é verdadeira e o sentido de — só o Pai é Deus — é: Aquele com o qual nenhum outro é Pai, é Deus. E neste sentido expõe Agostinho: Dizemos que o Pai é só, não que esteja separado do Filho ou do Espírito Santo; mas, assim dizendo, queremos significar que, existindo simultaneamente com ele, não são o Pai. Mas este sentido não resulta do modo habitual de falar, sem se subentender alguma outra proposição como esta: Aquele que só é chamado Pai, é Deus. Pois, no seu sentido próprio, a locução exclusiva repele qualquer união com o predicado.

Assim que, a proposição é falsa se exclui outro, no masculino; é porém, verdadeira se exclui somente outra causa, no neutro; pois, o Filho é outro que não o Pai, não porém outra causa; e semelhantemente o Espírito Santo. Mas, a locução só, dizendo respeito propriamente ao sujeito, como vimos (a. 3, ad 2), mais se emprega para excluir outro que outra coisa. Por onde, tal locução não a devemos aplicar extensivamente, mas, explicá-la como for encontrada em escritura autêntica.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O dito — um só verdadeiro Deus a ti — não se entende da pessoa do Pai, mas, de toda a Trindade, como expõe Agostinho. Ou se se entender da pessoa do Pai, não se excluem as outras pessoas por causa da unidade de essência; pois, só exclui apenas outra coisa, como dissemos. E semelhante é a RESPOSTA À SEGUNDA. — Pois, quando dizemos do Pai algo de essencial, não excluímos o Filho ou o Espírito Santo, por causa da unidade de essência. Por onde, devemos saber que, no lugar citado, a expressão ninguém não é, conforme à significação desse vocábulo, o mesmo que nenhum homem, pois, não poderíamos exceptuar a pessoa do Pai. Mas essa palavra é tomada no sentido usual, distributivamente, para significar qualquer natureza racional.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A locução exclusiva não exclui o que pertence à noção do termo ao qual está unida, se não diferem pelo suposto, como a parte e o todo. Ora, o Filho difere do Pai, pelo suposto; e portanto, a razão não é a mesma.

RESPOSTA À QUARTA. — Não dizemos, em sentido absoluto, que só o Filho seja altíssimo; mas, que só é altíssimo com o Espírito Santo, na glória de Deus Pai.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Questão XXX - Da pluralidade das pessoas em Deus

QUESTÃO XXX. — DA PLURALIDADE DAS PESSOAS EM DEUS


Em seguida se trata da pluralidade das pessoas. E nesta questão discutem-se quatro artigos:
  1. Se há várias pessoas em Deus;
  2. Quais sejam;
  3. Que significam os termos numerais em Deus;
  4. Da comunidade do nome de pessoa.

ART. I. — SE SE DEVEM ADMITIR VÁRIAS PESSOAS EM DEUS


(I Sent., dist. II, 4; dist. XXIII, a. 4; De Pot., q. 9, a. 5; Compend, Theol., cap. L, LV; Quold. VII, q. 3, a. 1)

O primeiro discute-se assim. — Parece que não se devem admitir várias pessoas em Deus.

1. — Pois, pessoa é uma substância individual de natureza racional. Ora, se em Deus há várias pessoas, segue-se que há várias substâncias, o que é herético.

2. Demais. — A pluralidade das propriedades absolutas não gera distinção de pessoas, nem em Deus nem em nós. Logo, com muito maior razão, a pluralidade de relações. Ora, em Deus não há outra pluralidade além da das relações, como antes se disse (q. 28 a. 3). Logo, não se pode dizer que há em Deus várias pessoas.

3. Demais. — Boécio, falando de Deus diz que é verdadeiramente uno o que não é susceptível de número nenhum. Ora, a pluralidade implica o número. Logo, não há várias pessoas em Deus.

4. Demais. — Onde quer que haja número, aí haverá todo e parte. Ora, se em Deus há número de pessoas, será preciso nele introduzir o todo e a parte, o que repugna à divina simplicidade.

Mas, em contrário, Atanásio: Uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo. Logo, Padre, Filho e Espírito Santo são várias pessoas.

SOLUÇÃO. — Do que já estabelecemos (q. 29, a. 4), resulta haver em Deus várias pessoas. Pois, foi demonstrado que o nome de pessoa significa, em Deus, relação, como realidade subsistente na divina natureza. Ora, já provamos (q. 28, a. 1, 3, 4) que há várias relações reais em Deus. Donde se segue a existência de várias realidades subsistentes na divina natureza, e isto é o mesmo que existirem nela várias pessoas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Na definição da pessoa não se introduz a substância como significando essência, mas como suposto; o que é manifesto por se lhe acrescentar individual. E para exprimir a substância, com tal significação, os Gregos têm o nome de hipóstase; por isso, como nós dizemos três pessoas, dizem eles três hipóstases. Nós, porém, não nos acostumamos a dizer três substâncias para se não entenderem três essências, por causa da equivocação do nome.

RESPOSTA À SEGUNDA. — As propriedades absolutas em Deus, como a bondade e a sapiência, mutuamente se não opõem e por isso nem realmente se distinguem. Embora, pois, lhes convenha o subsistir, não são por isso três realidades subsistentes, por onde seriam várias pessoas. Mas, nas coisas criadas, as propriedades absolutas, como a brancura e a doçura, não subsistem, embora realmente entre si se distingam. Em Deus, porém, as propriedades relativas subsistem, e realmente se distinguem umas das outras, como antes se disse (q. 28, a. 3; q. 29, a. 4). Donde, a pluralidade de tais propriedades basta para causar a das pessoas divinas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A suma unidade e simplicidade de Deus excluem toda a pluralidade das atribuições absolutas; não porém a das relações. Porque estas se predicam de uma coisa dependentemente de outra, e assim não importam composição na coisa a que se atribuem, como ensina Boécio no mesmo livro.

RESPOSTA À QUARTA. — Há duas sortes de número: o simples ou absoluto, como dois, três, quatro; e o existente nas coisas numeradas, como dois homens e dois cavalos. Se, pois, considerarmos o número absoluta ou abstratamente, nada impede existir em Deus todo e parte; mas isto só se dá na acepção do nosso intelecto, pois só neste existe o número absoluto, separado das coisas numeradas. Se, porém, considerarmos o número enquanto nestes existente, então, no mundo das criaturas, um é parte de dois, e dois, de três; e um homem, de dois, e dois, de três. Mas em Deus não é assim porque tanto é o Pai quanto toda a Trindade, como a seguir se demonstrará (q. 42, a. 4 ad 3).

ART. II. — SE EM DEUS HÁ MAIS DE TRÊS PESSOAS


(I Sent., dist. X, a. 5; dist. XXXIII, a. 2. ad 1; IV. Cont. Gent., cap. XXVI; De Pot., q. 9, a. 9; Compend. Theol., cap. LVI. LX)

O segundo discute-se assim. — Parece que há em Deus mais de três pessoas.

1. — Pois, a pluralidade das pessoas divinas se funda na das propriedades relativas, como se disse (a. 1). Ora, há quatro relações em Deus, segundo se disse (q. 28, a. 4), a saber, a paternidade, a filiação, a espiração comum e a processão. Logo, há em Deus quatro pessoas.

2. Demais. — Não há em Deus maior diferença entre a natureza e a vontade que entre a natureza e o intelecto. Ora, uma é a pessoa divina procedente ao modo da vontade, como amor; outra ao modo da natureza, como filho. Logo, há também outra procedente ao modo do intelecto, como verbo; e outra procedente ao modo da natureza, como filho. E assim, de novo resulta que não há somente três pessoas em Deus.

3. Demais. — Das criaturas as mais excelentes são dotadas de várias operações intrínsecas; p. ex., o homem é dotado, a mais que os outros animais, do inteligir e do querer. Ora, Deus infinitamente excede toda a natureza. Logo, há nele a pessoa procedente, não somente como vontade e intelecto, mas, de infinitos outros modos. Logo, são infinitas as pessoas divinas.

4. Demais. — Pela sua infinita bondade é que o Padre comunica-se infinitamente a si próprio, produzindo uma pessoa divina. Ora, também o Espírito Santo tem infinita bondade. Logo, o Espírito Santo também produz uma pessoa divina; e esta por sua vez outra, e assim ao infinito.

5. Demais. — Tudo o que contém um determinado número é medido, pois o número é uma medida. Ora, as pessoas divinas são imensas, como está claro em Atanásio: imenso o pai, imenso o Filho, imenso o Espírito Santo. Logo, não estão contidas com número ternário.

Mas, em contrário, a Escritura (1 Jo 5, 7): Três são os que dão testemunho no céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo. E aos que perguntarem — Que três? — responde-se — As Três pessoas, como diz Agostinho. Logo, há só três pessoas divinas.

SOLUÇÃO. — Segundo já dissemos, é necessário admitir em Deus somente três pessoas. Pois, como demonstramos (a. 1), várias pessoas supõem várias relações subsistentes entre si realmente distintas. Ora, a distinção real entre as relações divinas só existe em razão da oposição relativa. Logo, duas relações opostas pertencem necessariamente a duas pessoas; e as relações que não forem opostas forçosamente pertencerão à mesma pessoa. Por onde, a paternidade e a filiação, sendo relações opostas, necessariamente hão de pertencer a duas pessoas. E assim, a paternidade subsistente é a pessoa do Pai, e a filiação subsistente a pessoa do Filho. Quanto às outras duas relações, elas não se opõem a nenhuma destas, mas se opõem entre si; é impossível, portanto, convirem ambas a uma mesma pessoa. Logo, e necessariamente, uma delas convirá a ambas as referidas pessoas, ou uma convirá a uma pessoa e a outra, a outra.

Mas não pode a processão convir ao Pai e ao Filho, ou a um deles; porque do contrário a processão do intelecto, que é a geração em Deus, e na qual se fundam a paternidade e a filiação, nasceria da processão do amor, na qual se fundam a espiração e a processão, se a pessoa geradora e a gerada procedessem da espirante — o que vai contra o já estabelecido (q. 27, a. 3 ad 3). Donde se conclui que a espiração convém à pessoa do Pai e à do Filho, por não ter nenhuma oposição relativa nem com a paternidade nem com a filiação. E por conseguinte há de necessariamente convir a processão à outra pessoa, chamada pessoa do Espírito Santo, procedente como amor, conforme estabelecemos (q. 27, a. 4). Logo há somente três pessoas em Deus, a saber, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora haja em Deus quatro relações, contudo uma delas, a espiração, não se separa da pessoa do Pai e do Filho, mas a ambas convém. E assim, embora seja relação, não se chama contudo propriedade, por não convir a uma pessoa apenas; nem é relação pessoal, i. é., constitutiva da pessoa. Mas estas três relações — a paternidade, a filiação e a processão — chamam-se propriedades pessoais, sendo como pessoas constituintes; pois, a paternidade é a pessoa do Pai, a filiação a do Filho, e a processão a do Espírito Santo procedente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O que procede a modo de intelecto, como o verbo, procede pela razão de semelhança, como também o que procede ao modo de natureza; e por isso se disse antes (q. 27, a. 2; q. 28, a. 4) que a processão do Verbo é a geração mesma, ao modo da natureza. Porém o Amor, como tal, não procede como semelhança daquilo donde procede, embora em Deus o Amor seja coessencial, enquanto divino; logo, a processão do Amor não se chama geração, em Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O homem, mais perfeito que os outros animais, é dotado de mais operações intrínsecas que eles, porque a sua perfeição é a modo de composição. E por isso os anjos, mais perfeitos e mais simples, têm menos operações intrínsecas que o homem, não havendo neles o imaginar, o sentir e faculdades semelhantes. Mas, em Deus, por natureza, só há uma operação que é a sua essência. E como há nele duas processões, já o demonstramos (q. 27, a. 3, 5).

RESPOSTA À QUARTA. — A objeção procederia se o Espírito Santo tivesse uma bondade numericamente diferente da do Pai; pois então seria necessário que, assim como o Pai, pela sua bondade, produz uma pessoa divina, assim também o Espírito Santo. Mas uma mesma é a bondade do Pai e a do Espírito Santo; e só se distinguem pelas relações das pessoas. Por onde, a bondade convém ao Espírito Santo, como recebida de outrem; porém ao Pai, como de quem se comunica a outrem. Mas a oposição de relação não permite que com a relação do Espírito Santo coexista a relação de princípio respeitante à divina pessoa; pois ele procede das outras pessoas que em Deus podem existir.

RESPOSTA À QUINTA. — O número determinado se mede pela unidade, considerando-se um número simples, que só existe na acepção do intelecto. Se porém se considerar nas pessoas divinas, o número expressivo de realidades, então elas são incompatíveis com a de medida, pois a mesma é a grandeza das três pessoas, como a seguir se verá (q. 42, a. 1, 4). Ora, nenhum ser se mede por si mesmo.

ART. III. — SE OS TERMOS NUMERAIS INTRODUZEM ALGUMA REALIDADE EM DEUS


(I Sent., dist. XXIV, a. 3; De Pot., q. 9, a. 7; Quodl. X, q. 1, a. 1)

O terceiro discute-se assim. — Parece que os termos numerais introduzem alguma realidade em Deus.

1. — Pois, a unidade divina é a sua essência. Ora, todo número é a unidade repetida. Logo, todo termo numeral, significando em Deus a essência, nele introduz alguma realidade.

2. Demais. — Tudo o que se diz de Deus e das criaturas, mais eminentemente convém àquele que a estas. Ora, os termos numerais introduzem uma realidade nas criaturas. Logo, muito mais em Deus.

3. Demais. — Se os termos numerais não introduzem nenhuma realidade em Deus, mas se empregam somente para remover, removendo-se assim a unidade pela pluralidade, e por esta, aquela, resulta um círculo para a razão, causa de confusão para o intelecto e que a nenhuma certeza conduz, o que é inconveniente. Donde se conclui que os termos numerais introduzem alguma realidade em Deus.

Mas, em contrário, diz Hilário: O estado de consórcio, que é estado de pluralidade, tira a inteligência da singularidade e da solidão. E Ambrósio: Quando dizemos que Deus é um, a unidade exclui a pluralidade de deuses, sem nele introduzir a quantidade. Por onde se vê, que tais nomes se empregam para remover e não para introduzir nenhuma realidade em Deus.

SOLUÇÃO. — O Mestre das Sentenças ensina, que os termos numerais nada introduzem em Deus, mas somente removem. Outros, porém, dizem o contrário. Mas para esclarecer esta questão devemos considerar, que toda pluralidade resulta de alguma divisão. E esta pode ser de duas espécies. Uma é a material, resultante da divisão do contínuo, e da qual provém o número, espécie de quantidade; e por isso tal número só é próprio às coisas materiais susceptíveis de quantidade. Outra é a divisão formal, que se faz por formas opostas ou diversas, e da qual resulta a multidão, que não se compreende em nenhum gênero, mas pertence aos transcendentais, que dividem o ser em unidade e multiplicidade. E tal multidão só pode existir nos seres imateriais. Alguns, pois, só considerando a multidão, espécie da quantidade discreta, e vendo que esta não existe em Deus, ensinaram, que os termos numerais nada introduzem em Deus mas somente dele removem.

Outros, porém, considerando a mesma multidão, ensinaram, que assim como existe em Deus a ciência, na sua noção própria e não só na sua noção genérica, pois em Deus nenhuma qualidade existe; assim também o número existe em Deus na sua noção própria e não na sua noção genérica, que é a quantidade. Nós, porém, dizemos que os termos numerais, quando predicados de Deus, não provém do número enquanto espécie de quantidade, porque então só se atribuíram a Deus metaforicamente, à semelhança das outras propriedades corporais, como a latitude, a longitude e semelhantes; mas provém da multidão enquanto transcendental. Ora, a multidão assim compreendida está para os seres múltiplos, dos quais se predica, como a unidade conversível com o ser, para o ser. Ora, tal unidade, como dissemos (q. 11, a. 1), ao tratarmos da unidade de Deus, nada mais acrescenta ao ser do que a negação da divisão, pois uno significa o ser indiviso. E assim, dito de qualquer ser, uno o significa enquanto indiviso; p. ex., dito do homem significa-lhe a natureza ou a substância não dividida.

E, pela mesma razão, quando dizemos de certas coisas, que são múltiplas, a multidão assim compreendida as significa com indivisão no tocante a cada uma delas. — Ao passo que o número, espécie de quantidade, acrescenta um acidente ao ser; bem como a unidade, princípio do número. Logo, os termos numerais significam, em Deus, as realidades das quais se predicam, e, além disto, nada mais acrescentam senão a negação, como se disse; e, neste ponto, o Mestre das Sentenças ensinou a verdade. Assim, quando dizemos — A essência é una — uno significa a essência indivisa; quando dizemos — A pessoa é una — significa a pessoa indivisa; quando dizemos — As pessoas são várias — exprimimos tais pessoas com a indivisão que cabe a cada uma delas, pois é da natureza da multidão constar de unidades.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A unidade sendo um transcendental, é mais geral que a substância e a relação; e o mesmo se dá com a multidão. Donde o poderem existir, em Deus, em lugar delas, na medida conveniente ao sujeito a que forem unidas. E contudo tais nomes, em virtude da significação própria, acrescentam à essência ou à relação uma certa negação de divisão, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A multidão, que introduz uma realidade nas coisas criadas, é uma espécie de quantidade e se não aplica à divina predicação; senão somente a multidão transcendental, que às coisas das quais se predica nada mais acrescenta, salvo a indivisão de cada uma delas. E é essa a multidão, que se predica de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A unidade não remove a multidão mas, a divisão, que tem prioridade racional sobre esta e aquela. A multidão porém remove, não a unidade, mas a divisão relativa a cada uma das coisas das quais ela consta. E isto já antes expusemos quando tratamos da unidade divina (q. 11, a. 2 ad 4). E devemos também saber, que as autoridades aduzidas, em sentido oposto, não provam suficientemente a tese. Pois embora a pluralidade exclua a solidão; e a unidade, a pluralidade dos deuses, todavia dai se não segue seja apenas essa a significação de tais nomes. Assim, a brancura, embora exclua a negrura, contudo não exprime somente essa exclusão.

ART. IV. — SE O NOME DE PESSOA PODE SER COMUM ÀS TRÊS PESSOAS


(Sent., dist. XXV a. 3; De Pot., q. 8, a. 3, ad 11)

O quarto discute-se assim. — Parece que o nome de pessoas não pode ser comum às três pessoas.

1. – Pois, às três pessoas só a essência é comum. Ora, o nome de pessoa não significa diretamente a essência. Logo, não é comum às três.

2. Demais. — O comum se opõe ao incomunicável. Ora, por essência a pessoa é incomunicável, como resulta claro da definição de Ricardo de S. Vitor supra mencionada (q. 29, a. 3 ad 4). Logo, o nome de pessoa não é comum às três.

3. Demais. — Se fosse comum as três, essa comunidade considerar-se-ia do ponto de vista real ou racional. Ora, do ponto de vista real, não, porque nesse caso as três pessoas seriam uma só. Nem também do ponto de vista racional só, porque então a pessoa seria um universal. Ora, já se demonstrou (q. 3, a. 5) que em Deus não existe universal nem particular, gênero nem espécie. Logo, o nome de pessoa não é comum às três.

Mas, em contrário, Agostinho diz que, quando se pergunta — Que três? — a resposta é — As Três pessoas — por lhes ser comum o que constitui a essência da pessoa.

SOLUÇÃO. — O próprio modo de falar mostra que, quando dizemos três pessoas as três é comum o nome de pessoa do mesmo modo que, dizendo três homens, queremos exprimir que homem é comum aos três. Ora, é claro que não há comunidade real, como se uma essência fosse comum às três, pois, daí haveria de seguir-se que, sendo uma a essência, uma só seriam as três pessoas. Mas, os que inquiriram a questão de saber qual seja essa comunidade, deram-lhe soluções diversas. — Assim uns disseram, que é a comunidade de negação, por se introduzir, na definição de pessoa, a palavra incomunicável. — Outros porém ensinaram, que é a de intenção, por se pôr na definição a palavra indivíduo, como se se dissesse que ser uma espécie é comum ao cavalo e ao boi. — Mas ambas estas opiniões se excluem por não ser o nome de pessoa nome de negação, nem de intenção, mas de realidade.

E portanto devemos dizer que, mesmo em se tratando do homem, o nome de pessoa é comum por uma comunidade de razão, não como gênero ou espécie, mas como individuo indeterminado. Pois, os nomes genéricos ou específicos, como homem ou animal, são empregados para significar as próprias naturezas comuns, não porém as intenções delas, expressas pelos nomes de gênero ou de espécie. Mas o indivíduo indeterminado, como algum homem, significa a natureza comum com um certo modo de existir próprio ao ser particular que é por si subsistente e distinto dos outros. Ao passo que o nome de um ser, enquanto expressivo de uma designação singular, significa uma determinação distintiva; assim, o nome de Sócrates exprime tais carnes e tais ossos. Mas, entre o nome indeterminado e o de pessoa há a diferença seguinte: aquele significa uma natureza ou um indivíduo natural, com um modo de existir próprio dos seres singulares; ao passo que este é empregado não para exprimir o indivíduo natural, mas uma realidade subsistente numa determinada natureza.

Pois, é comum racionalmente a todas as pessoas divinas, que cada uma delas subsista distinta das outras, em a natureza divina. E assim o nome de pessoa, racionalmente considerado, é comum às três pessoas divinas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção procede quanto à comunidade real.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora a pessoa seja incomunicável, contudo o modo mesmo de existir incomunicável pode ser comum a muitas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora haja em Deus comunidade racional e não real, daí se não segue haja em Deus universal ou particular, gênero ou espécie. Quer porque, tratando-se do homem, nem a comunidade de pessoa é a do gênero ou da espécie; quer porque as pessoas divinas têm uma mesma essência, ao passo que o gênero e a espécie, como qualquer universal, se predicam de vários sujeitos, essencialmente diferentes.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Questão XXIX - Das pessoas divinas

QUESTÃO XXIX — DAS PESSOAS DIVINAS


Depois de termos estudado o que necessário conhecer preliminarmente a respeito das processões e das relações, é mister tratarmos das Pessoas. Primeiro, consideradas absolutamente; depois, relativamente. Do primeiro modo devemos considerar as Pessoas em geral e, em seguida, em particular. Ora, consideradas em geral, dão lugar a quatro questões. A primeira é a significação da palavra pessoa. A segunda é o número das Pessoas. A terceira, a que resulta do número das Pessoas ou se lhe opõe, como a diversidade, a semelhança e coisas semelhantes. A quarta, a que respeita ao conhecimento das Pessoas. Na primeira questão discutem-se quatro artigos:
  1. Da definição de pessoa;
  2. Da relação entre a pessoa, a essência, a subsistência e a hipóstase;
  3. Se o nome de pessoa convém a Deus;
  4. O que nele significa.

ART. I — SE É ACERTADA A SEGUINTE DEFINIÇÃO DE PESSOA: A PESSOA É UMA SUBSTÂNCIA INDIVIDUAL DE NATUREZA RACIONAL


(III.ª, q. 2, a. 2; I Sent., dist. XXV, a. 1; De Pot., q. 9, a. 2; De unione Verbi, a. 1)

O primeiro discute-se assim. — Parece desacertada a seguinte definição de pessoa que dá Boécio: A pessoa é uma substância individual de natureza racional.

1. — Pois, não é possível definir o singular. Ora, pessoa significa um ser singular. Logo, é inconvenientemente definida.

2. Demais. — A substância incluída na definição de pessoa é tomada como substância primeira ou como segunda. Se como primeira, é supérfluo acrescentar individual, porque a substância primeira é individual. Se como segunda, o acréscimo é falso e implica oposição nos adjetivos, pois, as substâncias segundas são os gêneros ou as espécies. Logo, a definição é mal enunciada.

3. Demais. — O nome intencional não deve entrar na definição de um ser. Assim, não faria um enunciado certo quem dissesse — O homem é uma espécie de animal; pois, homem designa um ser, e espécie é o nome intencional. Ora, pessoa, designando um ser, pois significa uma substância de natureza racional, é inconveniente introduzir-lhe, na definição, indivíduo, que é o nome intencional.

4. Demais. — A natureza é princípio de movimento e de quietação no ser em que ela existe essencial e não acidentalmente, como diz o Filósofo. Ora, o conceito de pessoa se realiza em seres imutáveis, como Deus e os anjos. Logo, na definição de pessoa não se deveria incluir a natureza mas, antes, a essência.

5. Demais. — A alma separada é uma substância individual de natureza racional. Ora, não é uma pessoa. Logo, tal definição de pessoa não é acertada.

SOLUÇÃO. — Embora o universal e o particular se encontrem em todos os gêneros, contudo, de certo modo especial, o indivíduo se encontra no gênero da substância. Pois, esta se individua por si mesma, ao passo que os acidentes se individuam pelo seu sujeito, que é a substância; assim, uma determinada brancura denomina-se tal enquanto está num certo sujeito. Por isso, e convenientemente, os indivíduos substanciais diferem dos outros por um nome especial, pois se chamam hipóstases ou substâncias primeiras.

Mas ainda, de modo mais especial e perfeito manifesta-se o particular e o individual nas substâncias racionais, que são senhoras dos próprios atos; e não somente são levadas, como os outros, mas agem por si mesmas; pois, os atos são de natureza singular. E, portanto, entre as outras substâncias, os indivíduos de substância racional têm certo nome especial, a saber, o de pessoa. E por isso, à predita definição de pessoa, acrescenta-se substância individual, para significar o singular no gênero da substância; e acrescenta-se mais — de natureza racional, para exprimir o singular na ordem das substâncias racionais.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora nenhum singular seja susceptível de definição, todavia o que constitui a essência comum da singularidade o é; e assim o Filósofo define a substância primeira, e do mesmo modo Boécio define a pessoa.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Segundo alguns, a substância entra na definição de pessoa como substância primeira, que é a hipóstase. Mas nem por isso é supérfluo acrescentar-se individual. Pois, o nome de hipóstase, ou substância primeira exclui noção de universal e de parte; assim, não dizemos que o homem, em geral, seja hipóstase, nem da mão, que é parte; mas, acrescentando-se individual, exclui-se da pessoa a idéia de assumível; porque a natureza humana, em Cristo, não é pessoa, por ter sido recebida por um ser mais digno, a saber, pelo Verbo de Deus. Mas melhor será dizer, que a palavra substância é usada em sentido geral e se divide em primeira e segunda; e, acrescentando-se-lhe individual, ela usurpa as funções de substância primeira.

RESPOSTA À TERCEIRA. — As diferenças substanciais, não nos sendo conhecidas, ou também, não tendo denominação, é-nos necessário às vezes recorrer às diferenças acidentais, em lugar delas como se disséssemos: o fogo é um corpo simples, cálido e seco. Pois, os acidentes próprios são efeitos das formas substanciais e as manifestam. E, semelhantemente, podemos recorrer aos nomes intencionais para definir certas realidades não susceptíveis de definição adequada. É assim que o nome de indivíduo entra na definição de pessoa para designar o modo de subsistir próprio às substâncias particulares.

RESPOSTA À QUARTA. — Segundo o Filósofo, o nome de natureza foi primeiramente imposto para significar a geração dos seres vivos, que se chama natividade. E porque tal geração provém de um princípio intrínseco, estendeu-se esse nome a significar o princípio intrínseco de qualquer movimento. Nesse sentido é que Aristóteles define a natureza. E porque tal princípio é formal ou material tanto a forma como a matéria se chamam geralmente natureza. Completando-se, porém, pela forma e essência de cada ser, comumente se chama natureza a essência, significada pela definição. E é nessa acepção que aqui se toma a palavra natureza. E por isso Boécio, no mesmo livro, diz que natureza é a que informa pela diferença específica; pois, a diferença específica completa a definição e é tomada da própria forma da coisa. E portanto, foi mais conveniente usar, na definição de pessoa, que é um ser singular de um gênero determinado, o nome de natureza, que o de essência, derivado de ser, que é generalíssimo.

RESPOSTA À QUINTA. — A alma faz parte da espécie humana. Logo, como embora separada, tende por natureza para a união, não pode chamar-se substância individual, que é a hipóstase, ou substância primeira; assim como não o pode a mão nem qualquer outra parte do homem. E portanto, não lhe cabe a definição e nem o nome da pessoa.

ART. II. — SE PESSOA É O MESMO QUE HIPÓSTASE, SUBSISTÊNCIA E ESSÊNCIA


(I Sent., dist. XXIII, a. 1; De pot., q. 9, a. 1)

O segundo discute-se assim. — Parece que pessoa é o mesmo que hipóstase, subsistência e essência.

1. — Pois, diz Boécio que os Gregos davam à substância individual de natureza racional o nome hipóstase. Ora, também para nós isto é significado pelo nome de pessoa. Logo, pessoa é absolutamente o mesmo que hipóstase.

2. Demais. — Como dizemos que há em Deus três pessoas, assim também dizemos que há três subsistências; o que não seria possível se pessoa e subsistência não significassem o mesmo. Logo, pessoa significa absolutamente o mesmo que subsistência.

3. Demais. — Boécio diz: a ousia, o mesmo que essência, significa um composto de matéria e forma. Ora, o que é composto de matéria e forma é o individuo substancial, que se chama hipóstase e pessoa. Logo, todos os nomes referidos parecem significar o mesmo.

Mas, em contrário, Boécio: Os gêneros e as espécies somente subsistem: os indivíduos, porém, não somente subsistem, mas também substão. Ora, como de subsistir deriva a palavra subsistência; de substar, as substâncias ou hipóstases. Ora, como ser hipóstase ou pessoa não convém aos gêneros e às espécies, a hipóstase ou pessoa não é o mesmo que subsistência.

Demais. — Boécio diz: A hipóstase chama-se matéria, mas a ousiosis, isto é, a subsistência, se chama forma. Ora, nem a forma nem a matéria se podem chamar pessoas. Logo, pessoa difere da hipóstase e da subsistência.

SOLUÇÃO. — Segundo o Filósofo, em dois sentidos se emprega a palavra substância. Num sentido, significa a quididade da coisa, expressa pela definição, e por isso dizemos que a definição exprime a substância da coisa; e a essa substância os Gregos chamam ousia, o que nós podemos traduzir por essência. Noutro sentido, chama-se substância ao sujeito ou suposto que subsiste no gênero da substância. E este, em acepção comum, pode receber o nome significativo da intenção; e assim, se chama suposto. Mas também pode receber os três nomes significativos da coisa, a saber: ser de natureza, subsistência e hipóstase, conforme ao tríplice aspecto da substância na acepção presente. Assim, enquanto existente por si, e não em outro ser, chama-se subsistência; pois, dissemos subsistirem por si as coisas existentes, não em outro ser, mas em si mesmas. Enquanto é o suposto de alguma natureza comum, chama-se ser de natureza; como, este homem é um ser de natureza.

E enquanto é o suposto dos acidentes, chama-se hipóstase ou substância. Porém, o que esses três nomes significam comumente em todo o gênero das substâncias, o nome de pessoa significa no gênero das substâncias racionais.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Hipóstase, entre os Gregos, pela própria significação do nome, pode exprimir qualquer indivíduo substancial; mas pelo modo usual de falar, veio a significar o indivíduo de natureza racional, por causa da excelência dessa natureza.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como nós dissemos que há em Deus a pluralidade de três pessoas e três subsistências, assim os Gregos dizem que há nele três hipóstases. Mas como o nome de substância, que pela significação própria corresponde ao de hipóstase, nós o empregamos equivocamente, significando, ora, essência e, ora, hipóstase; preferiram, para não haver ocasião de erro, traduzir hipóstase por subsistência e não por substância.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A essência propriamente é a significada pela definição, e esta abrange os princípios específicos e não os individuais. Por isso, nos seres compostos de matéria e forma, a essência significa não somente a forma ou a matéria, mas o composto da matéria e da forma comum, como princípios da espécie. Ora, o composto de tal matéria e de tal forma é por natureza hipóstase e pessoa. Assim, a alma, a carne, os ossos são da essência do homem, mas tal alma, tal carne e tais ossos são da essência de tal homem. Logo, a hipóstase e a pessoa acrescentam à noção de essência a de princípios individuais; nem são o mesmo que a essência, nos compostos de matéria e forma, como dissemos, quando tratamos da simplicidade divina (q. 3, a. 3).

RESPOSTA À QUARTA. — Boécio diz subsistirem os gêneros e as espécies, enquanto que a alguns indivíduos é próprio o subsistir, por estarem compreendidos em gêneros e espécies inclusos no predicamento da substância. E não que as próprias espécies ou gêneros subsistam, exceto segundo a opinião de Platão, que admitia subsistirem as espécies das coisas separadamente dos indivíduos. Substar, porém, é próprio aos mesmos indivíduos, em relação aos acidentes, que estão fora das idéias de gêneros e de espécies.

RESPOSTA À QUINTA. — O indivíduo composto de matéria e forma pode substar ao acidente, pela propriedade da matéria; por isso Boécio diz: A forma simples não pode ser sujeito. Mas se subsiste por si, é pela propriedade da sua forma, que não se acrescenta à coisa subsistente, mas dá o ser atual à matéria, de modo a poder assim subsistir o indivíduo. E por isso Boécio atribui a hipóstase à matéria, e a ousiosis, ou subsistência, à forma; porque a matéria é o princípio do substar, e a forma, o do subsistir.

ART. III. — SE DEVE SER APLICADO A DEUS O NOME DE PESSOA


(I Sent., dist. XXIII, a. 2; De Pot., q. 9, a. 3)

O terceiro discute-se assim. — Parece que não deve ser aplicado a Deus o nome de pessoa.

1. — Pois, Dionísio diz: Universalmente falando, não devemos ousar dizer ou pensar nada, a respeito da divindade oculta e supersubstancial, exceto o que nos foi divinamente revelado pelas Sagradas Letras. Ora, o nome de pessoa não nos é expresso, na Sagrada Escritura, nem em o Novo nem no Velho Testamento. Logo, não se deve aplicar a Deus o nome de pessoa.

2. Demais. — Boécio diz: O nome de pessoa originou-se das pessoas que representavam certos homens, nas comédias e nas tragédias. Pois pessoa vem de personar, porque necessàriamente numa concavidade o som se desenvolve mais intenso. Os Gregos, porém, chamavam a tais pessoas – prósopa (máscaras), por se colocarem na face e, estando diante dos olhos, ocultarem o vulto. Mas tal nome só metaforicamente talvez possa convir a Deus. Logo, o nome de pessoa só metaforicamente se aplica a Deus.

3. Demais. — Toda pessoa é hipóstase. Ora, o nome de hipóstase parece não convir a Deus; pois, ela é, segundo Boécio, o que substá aos acidentes, que em Deus não existem. E Jerônimo também diz que o nome de hipóstase esconde o veneno debaixo do mel. Logo, o nome de pessoa se não deve aplicar a Deus.

4. Demais. — Ao que não convém uma definição também não convém o definido. Ora, a definição referida de pessoa parece não convir a Deus. Quer por importar a razão o conhecimento discursivo, que, não convindo a Deus, como se demonstrou, não pode Deus ser dito de natureza racional. Quer também porque Deus se não pode chamar substância individual; pois, de um lado, o princípio de individuação é a matéria e Deus é imaterial; e, de outro, Deus, não substando aos acidentes, não se pode chamar substância. Logo, o nome de pessoa não se deve aplicar a Deus. Mas, em contrário, o símbolo de Atanásio diz: Uma é a pessoa do Pai, outra á do Filho, outra a do Espírito Santo.

SOLUÇÃO. — Pessoa significa o que há de mais perfeito de toda a natureza, i. é, o que subsiste em a natureza racional. Donde, como se devem atribuir a Deus todas as perfeições, pois a sua essência as contêm todas, devemos aplicar-lhe o nome de pessoa. Não porém do mesmo modo pelo qual o aplicamos à criatura, mas de modo mais excelente, como se dá com os outros nomes impostos à criatura e atribuídos a Deus, conforme demonstramos quando tratamos dos nomes divinos (q. 13, a. 3).

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora a Escritura, tanto no Velho como no Novo Testamento, não aplique a Deus o nome de pessoa, contudo, o que o nome significa muitas vezes nela o encontramos, aplicado a Deus, a saber, que é por excelência o ser existente por si mesmo e perfeitíssimamente inteligente. Pois, se a Deus somente devêssemos aplicar necessariamente as palavras que dele diz a Sagrada Escritura, seguir-se-ia que nunca poderíamos falar de Deus em língua diversa daquela em que primeiro foi transmitida a Escritura do Velho e do Novo Testamento. Ora, a necessidade de disputar com os heréticos obrigou a fé antiga a buscar novos nomes aplicáveis a Deus. E nem tal novidade se devia evitar, que não é profana, por não se desviar do sentido das Escrituras. Pois, o Apóstolo ensina que devemos evitar as palavras de novidade profana (1 Ti 6, 20).

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora o nome de pessoa não convenha a Deus, considerando-se a origem desse nome, contudo convém-lhe soberanamente pelo seu conteúdo. Pois, de serem representados nas comédias e nas tragédias certos varões famosos, veio a usar-se o nome de pessoa para significar os homens revestidos de certa dignidade; e dai o costume de se chamarem pessoas, nas igrejas, aos que têm alguma dignidade. Por isso certos definem como pessoa a hipóstase com propriedade distinta pertencente à dignidade. E como muito digno é o subsistir em a natureza racional, por isso se chama pessoa todo individuo de natureza racional, como vimos (a. 1). Ora, a dignidade da natureza divina, excedendo toda dignidade, também, a esta luz, convém a Deus o nome de pessoa, por excelência.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O nome de hipóstase, considerada a causa que deu origem a esse nome, não convém a Deus, pois, não é substância de acidentes. Mas, lhe convém se considerarmos o seu conteúdo, pois, foi imposto para significar um ser subsistente. E Jerônimo diz que nesse nome se oculta o veneno, porque antes de claramente conhecida a sua significação, entre os latinos, os helênicos dele usavam para enganar os simples e os levar a admitir várias essências, desde que admitiam várias hipóstases, pois o nome de substância, ao qual corresponde em grego o de hipóstase comumente é tomado, entre nós, no sentido de essência.

RESPOSTA À QUARTA. — Deus pode chamar-se natureza racional, enquanto razão não implica discurso, mas a natureza intelectual em geral. Mas ser indivíduo não pode convir a Deus, considerada a matéria como princípio de individuação, senão somente enquanto implica a incomunicabilidade. A substância, porém, convém a Deus, por significar ela o que existe por si. Alguns, contudo, dizem que a referida definição de Boécio, não é definição de pessoa no sentido em que dizemos haver pessoas em Deus. E por isso Ricardo de São Vitor, querendo corrigir essa definição, disse que a pessoa, quando se trata de Deus, é a existência incomunicável da natureza divina.

ART. IV. — SE O NOME DE PESSOA SIGNIFICA, EM DEUS, RELAÇÃO OU SUBSTÂNCIA


(I Sent., dist. XXIII, a. 3; De Pot., q. 9, a. 4)

O quarto discute-se assim. — Parece que não significa relação, em Deus, o nome de pessoa, mas a substância divina.

1. — Pois, Agostinho escreve: Quando falamos na pessoa do Pai, nada dizemos diferente da substância do Pai, referindo-se pessoa a ele, e não ao Filho.

2. Demais. — A questão o que é se formula a respeito da essência. Ora, como diz Agostinho, no mesmo lugar, quando se afirma que Três são os que dão testemunho no céu, o Pai, o verbo e o Espírito Santo, e se pergunta — Que três? — responde-se: As Três Pessoas. Logo, o nome de pessoa significa a essência.

3. Demais. — Segundo o Filósofo, o que é significado pelo nome é a sua definição. Ora, a definição de pessoa é: substância individual de natureza racional, como se disse (a. 1). Logo, o nome de pessoa significa substância.

4. Demais. — A pessoa, nos homens e nos anjos, não significa relação, mas algo de absoluto. Se, portanto, em Deus, significasse relação, equivocamente se diria dele, dos homens e dos anjos.

Mas, em contrário, diz Boécio, que todo nome concernente às Pessoas significa relação. Ora, nenhum nome concerne de mais perto às Pessoas do que o nome de pessoa. Logo, tal significa relação.

SOLUÇÃO. — A significação do nome de pessoa, em Deus, dá origem a uma dificuldade, por ser predicado, com pluralidade, das três Pessoas, fugindo, assim, à natureza dos nomes essenciais; e, além disso, não se emprega em sentido relativo, como os nomes que exprimem relação. Por isso pensaram alguns que o nome de pessoa, pura e simplesmente, por força do vocábulo, significa a essência divina, como o nome de Deus e o de sábio. Mas, por causa dos ataques dos heréticos, e por ordem do Concílio, conveio-se em que pudesse ser usado em sentido relativo, e sobretudo no plural ou com nome partitivo, como quando dizemos — As Três Pessoas; ou — Uma é a Pessoa do Pai e outra, a do Filho. Porém, no singular pode se tomar absoluta ou relativamente. — Mas, esta razão não é suficiente. Porque se o nome de pessoa, por força da sua significação, não pode exprimir senão a essência divina, quando se diz — três pessoas — não se elimina o erro dos heréticos; antes, dar-se-lhe-á ocasião de fortalecer-se.

E por isso outros disseram, que o nome de pessoa, em Deus, simultaneamente significa a essência e a relação. — E desses, uns ensinaram que ele significa a essência principalmente, e a relação, secundàriamente. Pois, pessoa significa, por assim dizer — por si uma. Ora, a unidade é própria da essência. E o dizer-se — por si — implica relação, secundàriamente; pois, entende-se que o Pai existe por si, como distinto do Filho, pela relação. — outros porém ensinaram, inversamente, que tal nome significa relação, principalmente, e essência, secundàriamente; porque, na definição de pessoa, natureza é posta secundariamente. E estes se achegaram mais da verdade. Ora, para esclarecermos esta questão, devemos considerar que o que é próprio a uma significação menos geral, pode não o ser a outra mais geral; assim, racional se inclui na significação de homem, sem contudo incluir-se na de animal. Por isso, uma coisa é indagar a significação de animal, e outra, a do animal que é homem.

Semelhantemente, uma coisa é indagar a significação do nome de pessoa em geral, e outra, a da pessoa divina. Pois, em geral, pessoa significa uma substância individual de natureza racional, como se disse (a. 1). O individuo, por outro lado, é em si mesmo indistinto, mas, distinto dos outros. Logo, pessoa, em qualquer natureza, significa aquilo que, em tal natureza é distinto; assim, em a natureza humana, tais carnes, tais ossos e tal alma, que são princípios individuantes do homem, e que, embora não pertençam à significação da pessoa, em geral, pertencem contudo à da pessoa humana. Ora, em Deus, a distinção não se faz senão pelas relações de origem, como se disse (q. 28, a. 3). Mas, nele, a relação não é um acidente inerente ao sujeito, mas, a própria divina essência; portanto, é subsistente, como esta. Logo, assim como a deidade é Deus, assim a paternidade divina é Deus Padre, que é uma pessoa divina. Logo, a pessoa divina significa uma relação subsistente; o que é significá-la a modo de substância, que é a hipóstase subsistente na divina natureza, embora desta não difira a sua subsistência.

E assim, é verdade que o nome de pessoa significa a relação, principalmente, e a essência, secundariamente; não contudo a relação, como tal, mas como hipóstase. E semelhantemente, significa a essência, principalmente, e a relação, secundariamente, enquanto essência é o mesmo que hipóstase; e esta, em Deus, é uma relação distinta; e assim, a relação, como tal, secundariamente se inclui em a noção de pessoa. E deste modo podemos também dizer, que essa significação do nome de pessoa não foi percebida antes do ataque dos heréticos. Por isso, só era usado em sentido absoluto. Mas depois foi aplicado em sentido relativo, por congruência com a sua significação. De modo que tal emprego relativo lhe provém não somente do uso, segundo a primeira opinião, mas também da significação.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O nome de pessoa se diz em sentido absoluto e não, relativo, porque significa a relação, não como tal, mas, a modo de substância, que é a hipótese. E neste sentido Agostinho diz, que significa a essência, por ser em Deus a essência idêntica à hipóstase, não diferindo, nele, aquilo que é do pelo que é.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A questão — o que é — ora se formula a respeito da natureza significada pela definição, como quando se pergunta — que é o homem? e se responde — um animal racional mortal. Ora, do suposto, como quando se pergunta — que nada no mar? e se responde — o peixe. E assim a quem pergunta — que três? — responde-se — as Três Pessoas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como se disse, a relação se entende em Deus no sentido de substância individual, isto é, distinta ou incomunicável.

RESPOSTA À QUARTA. — A noção diversa do que é menos geral não gera equivocação, no mais geral. Assim, embora diferente da do cavalo a definição própria do asno, ambas contudo se univocam em o nome de animal, porque a ambas convém a definição geral deste. Donde, embora a significação da pessoa divina implique a relação, e não, a pessoa angélica, ou humana, dai não se segue que o nome de pessoa seja usado equivocamente. Embora também não o seja univocamente; pois, como se demonstrou (q. 13, a. 5), nada se pode dizer univocamente de Deus e das criaturas.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Questão XXVIII - Das relações divinas

QUESTÃO XXVIII. — DAS RELAÇÕES DIVINAS


Em seguida devemos tratar das relações divinas, sobre as quais quatro questões se discutem:
  1. Se há em Deus relações reais;
  2. Se tais relações são a própria essência divina, ou são de proveniência extrínseca;
  3. Se podem existir em Deus muitas relações realmente distintas umas das outras;
  4. Do número dessas relações.

ART. I. — SE HÁ EM DEUS RELAÇÕES REAIS


(I Sent., dist. XXVI, q. 2, 2, a. 1; IV Cont, Gent., cap. XIV; De Pot., q. 8, a. Compend. Theol., cap. LIII; in Ioan., cap. XVI, lect. IV)

O primeiro discute-se assim. — Parece não haver em Deus nenhumas relações reais.

1. — Pois, diz Boécio: Quando usamos dos predicamentos, na predicação divina, tudo o que podemos predicar inclui-se na substância; e absolutamente não pode ser predicado o que importa relação com outra coisa. Ora, tudo o que realmente existe em Deus, dele podemos predicar. Logo, em Deus não existe realmente relação.

2. Demais. — Diz Boécio, no mesmo livro: A mesma relação existente na Trindade entre o Pai e o Filho; e ambos, com o Espírito Santo, é a que existe entre o idêntico e o idêntico. Ora, esta última é relação somente de razão, porque toda relação real exige dois extremos reais. Logo, em Deus não são reais, mas somente de razão.

3. Demais. — A relação de paternidade é uma relação de princípio. Ora, quando se diz — Deus é o princípio das criaturas — não importa isso nenhuma relação real, mas somente de razão. Logo, nem a paternidade, em Deus, é relação real, e pela mesma razão, nem as outras relações que se lhe atribuem.

4. Demais. — A geração em Deus funda-se na processão do verbo inteligível. Ora, as relações nascidas da operação do intelecto são somente de razão. Logo, a paternidade e a filiação que se atribuem a Deus, pela geração, são relações somente de razão. Mas, em contrário, o pai é assim chamado por causa da paternidade; e o filho, por causa da filiação. Se, pois, em Deus não há realmente nem paternidade nem filiação, segue-se que Deus não é realmente Pai nem Filho, mas somente segundo a noção de inteligência, o que é a heresia sabeliana.

SOLUÇÃO. — Certas relações existem realmente em Deus, o que se evidencia considerando que só nas coisas relativas a outras encontram-se relações só de razão e não, reais. O que não existe nos outros gêneros; pois, estes, como a quantidade e a qualidade, na sua noção própria, significam o que é inerente a um sujeito. Ora, as coisas relativas a outras exprimem, na sua noção própria, só tal relação. E tal relação está, às vezes, na própria natureza das coisas; como p. ex., nas que por natureza se coordenam e têm inclinação umas para as outras; e essas relações são necessariamente reais. Assim, p. ex., o corpo pesado tem inclinação e tendência para o centro e por isso há uma relação entre aquele e este; e o mesmo se dá em casos semelhantes. Outras vezes, porém, a relação expressa pelas coisas relativas a outras só existe na apreensão mesma da razão, comparando umas com as outras; e neste caso a relação é somente de razão, como quando, p. ex., a razão compara o homem com o animal e a espécie, com o gênero.

Mas quando uma coisa procede de um princípio da mesma natureza, necessariamente ambos, o procedente e o princípio da processão, devem convir na mesma ordem, e assim é necessário tenham mútuas relações reais.

Ora, como em Deus as processões existem na identidade de natureza, como mostramos (q. 27, a. 3 ad 2), necessariamente serão reais as relações admitidas nas processões divinas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A relação com alguma coisa de nenhum modo se predica de Deus, na noção própria do que é relativo a alguma coisa; isto é; enquanto tal noção própria deriva da comparação com o ser onde existe a relação, mas com outra coisa. Mas nem por isso quis Boécio excluir de Deus a relação, senão apenas significar que dele se não deve predicar a modo de inerência, segundo a relação própria de razão; mas antes ao modo do que é relativo a outra coisa.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A relação que importa a denominação de idêntico é só de razão, se idêntico se toma no seu sentido absoluto; pois, tal relação só pode consistir na ordem que a razão descobre numa coisa para consigo mesma, segundo dois quaisquer dos seus aspectos. É porém diferente o caso, quando certas coisas se dizem idênticas não pelo número, mas pela natureza do gênero ou da espécie. Boécio, pois, assimila as relações existentes em Deus à relação de identidade, não em todos os aspectos, mas só quando tais relações não diversificam a relação de identidade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Procedendo a criatura, de Deus, com diversidade de natureza, Deus está fora da ordem de todas as criaturas; nem é por natureza que com elas mantém relações. Pois não as produz por uma necessidade imposta à sua natureza, mas pelo intelecto e pela vontade, como dissemos (q. 14, a. 8; q. 19, a. 4). E, portanto, em Deus, não há relação real com as criaturas. Ao contrário, estas mantém com Deus relação real, pois estão incluídas na ordem divina, e por natureza dependem de Deus. Ora, as processões divinas existem na mesma natureza. Logo, não há semelhança, na objeção.

RESPOSTA À QUARTA. — As relações oriundas da só operação do intelecto, nas coisas mesmas inteligíveis, são relações apenas de razão, porque esta a descobre entre duas coisas inteligíveis. Mas as relações oriundas da operação do intelecto, e que existem entre o verbo intelectualmente procedente e o princípio donde procede, não são apenas de razão, mas reais; pois, realidade é o próprio intelecto ou a razão e está realmente para o que procede inteligivelmente, como as coisas corporais, para o que procede corporalmente. E assim a paternidade e a filiação são relações reais em Deus.

ART. II. — SE A RELAÇÃO EM DEUS É O MESMO QUE A SUA ESSÊNCIA


(I Sent., dist. XXXIII, a. 1; IV Cont. Gent., cap. XIV; De Pot., q. 8, a. 2; Quodl. VI, q. 1; Compend. Theol., cap. LIV. LXVI, LXVII)

O segundo discute-se assim. — Parece que em Deus a relação não é o mesmo que a sua essência.

1. — Pois, como diz Agostinho: Nem tudo o que se predica de Deus se predica substancialmente; assim, algumas predicações são relativas, como a do Pai, relativamente ao Filho; e estas não se predicam substancialmente. Logo a relação não é a essência divina.

2. Demais. — Diz Agostinho: Tudo o que se predica relativamente tem, além disso, um ser próprio, como, homem-senhor e homem-servo. Se, pois, há em Deus quaisquer relações, necessariamente nele haverá algo mais que elas.

3. Demais. — Um ser relativo é referente a outro, como diz Aristóteles. Se, pois, a relação é a própria essência divina, segue-se que o ser da divina essência consiste em referir-se a outro; o que repugna à perfeição do ser divino, por excelência absoluto e por si subsistente, como se demonstrou (q. 3, a. 4). Logo, a relação não é a própria essência divina.

Mas, em contrário, tudo o que não é a essência divina é criatura. Ora, a relação realmente convindo a Deus, e não sendo a essência divina, será necessariamente criatura. Então, não se deve render-lhe um culto de latria, o que vai contra ao que a Igreja canta num Prefácio: Para que seja adorada, nas Pessoas, a propriedade, e na majestade, a igualdade.

SOLUÇÃO. — Nesta matéria dizem ter errado Gilberto Porretano, que depois retratou o seu erro no concílio Remense. Ensinava ele, que as relações em Deus são acrescentadas ou de proveniência extrínseca. Ora, para esclarecer o assunto, devemos considerar que dois elementos se hão de levar em conta em qualquer dos nove gêneros de acidentes. Um é o ser conveniente a cada gênero, enquanto acidente. E isso é, em geral, em todos, ser inerente a um sujeito, pois o ser do acidente consiste na inerência. O outro elemento a considerar é a noção própria de cada um dos referidos gêneros. Ora, nos outros gêneros que não o da relação, como a quantidade e a qualidade, a noção própria do gênero reside na sua relação com o sujeito; pois, a quantidade se chama medida, e a qualidade, disposição da substância. Ao contrário, a essência própria da relação não consiste em referir-se ao ser em que está, mas a algo de exterior.

Se, portanto, considerarmos criaturas as relações como tais, veremos que são acrescentadas, e não, de proveniência intrínseca. E exprimem uma referência que de certo modo atinge a própria coisa relacionada, para outra. Se porém considerarmos a relação como acidente, então é inerente ao sujeito e neste tem o ser acidental.

Mas Gilberto Porretano a considerou somente do primeiro modo. Ora, tudo o que nas coisas criadas tem ser acidental tem-no substancial quando referido a Deus; pois, nada existe, em Deus, como um acidente num sujeito, porque tudo o que nele existe é a sua essência. Por onde, considerada a relação como tendo um ser acidental, nas coisas criadas, que lhes servem de sujeito, ela, realmente existindo em Deus, tem o ser da essência divina, sempre idêntico a si mesma. Mas quando referente a outro termo, a relação exprime antes uma referência ao termo do que à essência. Por onde, é claro que a relação realmente existente em Deus é, realmente, o mesmo que a essência; e só desta difere racionalmente, porque a relação supõe referência ao termo oposto, o que não está compreendido na denominação de essência. Donde resulta com clareza que, em Deus, não diferem, mas se identificam, o ser da relação e o da essência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As palavras de Agostinho não significam que a paternidade, ou qualquer outra relação essencial existente em Deus, não seja idêntica à divina essência; mas que não se predica substancialmente como existindo no sujeito a que se atribui; senão, relativamente. Por isso só dois predicamentos se atribuem a Deus; pois, os outros supõem relação com o sujeito de que se predicam, tanto quanto ao ser como quanto à noção do gênero próprio. Ora, nada do que existe em Deus pode, por causa da sua simplicidade, ter relação com o seu sujeito ou com o que se predica, senão a de identidade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como nas coisas criadas, assim em Deus, se bem de maneira diferente, as predicações relativas implicam não somente o caráter de relatividade, mas ainda algo absoluto. Pois, na criatura difere a realidade do conteúdo do nome relativo; em Deus, porém, não há diferença, mas tudo é uma mesma realidade, não perfeitamente expressa pelo nome de relação, como compreendida na significação de tal nome. Pois, já dissemos (q. 13, a. 2), quando tratamos dos nomes divinos, que mais contém a perfeição da divina essência do que pode ser expresso por qualquer nome. Donde se não segue, que em Deus, alem da relação, haja realmente outro ser, senão apenas quando se considera a significação do nome.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Se a divina perfeição nada mais contivesse do que significa o nome relativo, o ser divino seria imperfeito, como referente a algum outro; como p. ex., se Deus não contivesse mais do que significa o nome de sapiência, não seria um ser subsistente. Mas de ser a perfeição da divina essência maior do que o conteúdo significativo de qualquer nome, não se segue tenha a divina essência ser imperfeito, pelo fato de o nome relativo, ou qualquer outro, dito de Deus, não implicar sentido de perfeição; pois, a divina essência em si compreende a perfeição de todos os gêneros, como dissemos (q. 4, a. 2).

ART. III. — SE AS RELAÇÕES ATRIBUÍDAS A DEUS REAL E MUTUAMENTE SE DISTINGUEM


(I Sent., dist. XXVI, q. 2, a. 2; De Pot., q. 2, a. 5, 6)

O terceiro discute-se assim. — Parece que real e mutuamente não se distinguem as relações atribuídas a Deus.

1. — Pois, coisas idênticas a uma terceira são idênticas entre si. Ora, toda relação existente em Deus é idêntica à divina essência. Logo, as relações reais mutuamente se não distinguem.

2. Demais. — Como a paternidade e a filiação se distinguem pelo que significam, da essência divina, assim também a bondade e a potência. Mas, por tal distinção, não há nenhuma diferença real entre a bondade e a potência divina. Logo, nem entre a paternidade e a filiação.

3. Demais. — Entre as relações divinas não há distinção real senão quanto à origem. Ora, não parece que uma relação nasça de outra. Logo, as relações não se distinguem realmente umas das outras.

Mas, em contrário, Boécio: Em Deus, a substância contém a unidade, a relação multiplica a Trindade. Se, pois, as relações se não distinguissem, real e mutuamente, não haveria em Deus Trindade real, mas só racional; o que é erro sabeliano.

SOLUÇÃO. — Quando a uma coisa se atribui outra é necessário atribuir àquela tudo o que for da essência desta; p. ex., a quem se atribuir o ser humano há-se se lhe atribuir o racional. Pois, a essência da relação está em referir-se uma coisa a outra, pelo que uma se opõe relativamente à outra, como dissemos. Ora, em Deus havendo relação real, segundo dissemos (a. 1), há necessariamente oposição real. Ora, a oposição relativa inclui por natureza a distinção. Donde o haver necessariamente em Deus distinção real, não por certo quanto à realidade absoluta da essência que é suma unidade e simplicidade; mas, de natureza relativa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Segundo o Filósofo, o argumento segundo o qual coisas idênticas a uma terceira são idênticas entre si, colhe em relação a coisas real e racionalmente idênticas, como túnica e vestuário. E por isso, no mesmo lugar diz, que embora seja o mesmo que o movimento tanto a ação como a paixão, contudo daí se não segue sejam idênticas; pois, a ação implica relação com o agente que causa o movimento do móvel; ao passo que a paixão supõe a receptividade. Do mesmo modo, embora a paternidade e a filiação se identifiquem, por natureza, com divina essência, contudo uma e outra, pelas suas noções próprias, implicam relações opostas. Por isso mutuamente se distinguem.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Potência e bondade não implicam, por essência, nenhuma oposição. Por isso a comparação não colhe.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora as relações propriamente falando, não nasçam nem procedam umas das outras, contudo consideram-se como opostas, no proceder uma realidade de outra.

ART. IV — SE EM DEUS SÓ HÁ QUATRO RELAÇÕES REAIS, A SABER, A PATERNIDADE, A FILIAÇÃO, A ESPIRAÇÃO E A PROCESSÃO


O quarto discute-se assim — Parece não haver em Deus senão quatro relações reais, a saber, a paternidade, a filiação, a espiração e a processão.

1. — Pois, há a considerar em Deus as relações da inteligência com o inteligido e da vontade com o objeto querido; que são relações reais, nem se contém nas supra mencionadas. Logo, não há em Deus somente quatro relações reais.

2. Demais. — Admitem-se relações reais em Deus, quanto à processão inteligível do Verbo. Ora, as relações inteligíveis se multiplicam ao infinito, como diz Avicena. Logo, há em Deus infinitas relações reais.

3. Demais. — As idéias existem em Deus abeterno, como se disse (q. 15, a. 2). Nem se distinguem entre si senão relativamente ao seu objeto, segundo foi dito (Ibid). Logo, em Deus há muitas relações eternas.

4. Demais. — A igualdade, a semelhança e a identidade são relações e em Deus existem abeterno. Logo, nele existem abeterno mais revelações que as supra mencionadas.

Mas, em contrário, parece que são menos. Pois, segundo o Filósofo, o mesmo caminho de Atenas a Tebas é o de Tebas a Atenas. Logo, pela mesma razão, idêntica é a relação entre o Pai e o Filho, chamada paternidade, e a entre o Filho e o Pai, chamada filiação. E assim não há em Deus quatro relações.

SOLUÇÃO. — Segundo o Filósofo, toda relação se funda ou na quantidade, como a que há entre o duplo e o meio; ou na ação e na paixão, como a existente entre um agente e o seu ato, entre o senhor e o escravo, e outras. Ora, em Deus não existindo quantidade, pois, é grande, sem quantidade, como diz Agostinho, resulta que nele relação real só pode existir fundada na ação. Não porém em ações que causem em Deus uma processão extrínseca,; pois, as relações de Deus com as criaturas, nele não estão realmente, como dissemos (a. 1, ad 3; q. 13, a. 7). Por onde, as relações reais, só se podem admitir em Deus mediante ações que causem nele uma processão interna e não, externa. Ora, processão dessa natureza só há duas, como dissemos (q. 27, a. 5); uma, fundada na ação do intelecto, que é a processão do Verbo; outra, na da vontade, que é a do Amor. E, segundo qualquer delas é necessário admitir duas relações opostas: uma, a do que procede do princípio, e outra, a do próprio princípio.

A processão do Verbo se chama geração, na sua noção própria, pela qual convém aos seres vivos. Ora, a relação do princípio da geração, nos seres vivos perfeitos, se chama paternidade; e a do que procede do princípio, filiação. Porém a processão do Amor não tem nome próprio, como dissemos (q. 27, a. 4) e, portanto, nem as relações que nela se fundam. Chama-se contudo espiração à relação do princípio desta processão, e à do procedente, processão. Embora esses dois nomes pertençam às próprias processões ou origens, e não às relações.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Nos seres em que diferem o intelecto e o inteligido, a vontade e o seu objeto, pode haver relação real entre a ciência e a coisa sabida, a vontade e a coisa querida. Mas em Deus, são absolutamente idênticos o intelecto e o inteligido, pois, inteligindo-se, tudo intelige; e pela mesma razão nele se identificam a vontade e a coisa querida. Por onde, tais relações em Deus não são reais, como não são as que existem entre duas identidades. Real é, contudo, a relação com o Verbo, compreendendo-se este como coisa inteligida; assim, quando inteligimos uma pedra, o que o intelecto concebe, da coisa inteligida, se chama verbo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — As relações inteligíveis multiplicam-se em nos ao infinito, pois por um ato inteligimos a pedra, e por outro, essa relação, ainda por outro, esta última, e assim ao infinito se multiplicam os atos de inteligir e, por conseqüência, as relações inteligidas. O que não se dá com Deus, que por um só ato tudo intelíge.

RESPOSTA À TERCEIRA. — As relações são ideais, como inteligidas por Deus. Donde, da pluralidade delas se não segue que haja muitas em Deus, mas que Ele conhece muitas.

RESPOSTA À QUARTA. — A igualdade e a semelhança não são em Deus relações reais, mas apenas de razão, como depois se verá (q. 42, a. 1 ad 4).

RESPOSTA À QUINTA. — Embora o caminho de um termo para outro seja o mesmo que em sentido inverso, contudo as relações são diferentes. Por isso, daí não se pode concluir que seja a mesma relação entre o Pai e o Filho e reciprocamente. Mas poderíamos concluir tal, de um meio termo absoluto que porventura houvesse entre eles.